A Eleição Presidencial de 2022: Um Concurso de Rejeitados?

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Por Carlos Sávio G. Teixeira[1] – O quadro político nacional apresenta hoje três blocos aglutinadores em termos de candidaturas competitivas para a eleição presidencial que ocorrerá no próximo mês de outubro. O primeiro deles gravita em torno do presidente Jair Bolsonaro. O segundo está localizado na órbita do ex-presidente Lula e do PT. O terceiro é representado pela pré-candidatura do ex-governador Ciro Gomes. A chamada “terceira via”, denominação dada pela imprensa aos pré-candidatos de centro-direita que tentavam desafiar a polarização precocemente ocorrida em torno de Bolsonaro e Lula – iniciada a partir da recuperação dos direitos políticos do ex-presidente – foi paulatinamente desaparecendo. Luciano Huck, Sergio Moro e João Dória saíram da disputa. Sobrou apenas a senadora Simone Tebet, com números de intenção de votos muito piores dos que todos os três que desistiram.

A literatura especializada em eleições afirma que disputas presidenciais costumam assumir o caráter de um plebiscito em relação ao governo incumbente, principalmente quando o presidente concorre à reeleição. Nesses casos, a “pergunta” central do processo eleitoral é se o atual presidente merece continuar à frente do governo. Mas, quando a eleição assume natureza muito polarizada, como vem se afigurando o nosso atual processo sucessório, é possível que a “pergunta” fundamental do pleito seja outra, como, por exemplo, se Lula e o PT devem voltar ao governo. Portanto, a dinâmica propriamente eleitoral, quando o tema central da campanha se conforma (geralmente após a definição formal das candidaturas e, em nosso caso, o início do Horário Eleitoral na TV e no rádio), tende a assumir grande peso na disputa. Isso se explica também pelo fato de as pesquisas revelarem que mais ou menos metade dos eleitores, a esta altura da pré-campanha, ainda não está conectada ao processo eleitoral. Disso decorre a importância que a fricção produzida pelas campanhas pode implicar ao desfecho do processo[2].

A grande questão a ocupar a atenção dos analistas nessa fase da pré-campanha do processo eleitoral é se a polarização atual entre Bolsonaro e Lula será mantida na campanha propriamente dita ou se a comunicação política da campanha, cuja dinâmica promete ser uma das mais violentas de nossa história eleitoral, promoverá reorientação tendo em vista o aumento significativo da atenção do eleitorado às candidaturas presidenciais. Quatro cenários se apresentam como mais prováveis: 1) a continuidade da polarização e com ela a manutenção da alta rejeição de Bolsonaro e seu governo, beneficiando a candidatura Lula; 2) a continuidade da polarização e com ela o aumento da rejeição a Lula e ao PT, transformando a disputa numa batalha de voto a voto entre o atual presidente e o ex-presidente; 3) a continuidade da polarização, embora com intenso desgaste dos beneficiários de sua lógica até agora e a abertura de uma brecha para um tertius que receberia os “votos moles” de Lula e Bolsonaro – esses votos são os que ainda não se consolidaram. Eles traduzem tão somente a lógica da rejeição entre os dois polos atuais e revelam que esses eleitores ainda não conseguem vislumbrar uma alternativa eleitoral viável, levando-os a optar pelo mal menor; 4) o arrefecimento da polarização e a abertura de um espaço para a emergência de um tertius, que receberia uma crescente enxurrada de votos capaz de levá-lo ao segundo turno.

A situação das candidaturas

O presidente Bolsonaro está sendo até aqui o protagonista principal da sucessão presidencial, o que é muito ruim para a sua tentativa de reeleição, já que um número muito elevado dos brasileiros tem respondido negativamente à pergunta sobre se ele merece continuar governando o país. Seu governo é avaliado como ótimo e bom por uma faixa que varia entre 25% a 30% dos entrevistados, a depender da pesquisa, contra 50 a 55% que o consideram ruim e péssimo. São números que nenhum presidente que tentou a reeleição no Brasil ostentou no quinto mês de seu último ano de governo.

Nas inquirições sobre as intenções de voto, Bolsonaro apresenta números que oscilam entre 25 e 30% na resposta espontânea (quando não é apresentado nenhum nome diante da pergunta em quem o respondente votaria) e cerca de 30% na estimulada (quando é apresentado ao respondente um conjunto de possibilidades). À pergunta em quem não votaria de jeito nenhum, Bolsonaro lidera com taxas que, em condições sem a atual polarização, seriam proibitivas para sua pretensão de reeleger-se. Nas simulações de um possível 2º turno, Bolsonaro, no momento, só venceria Simone Tebet.

E quem são, hoje, os apoiadores de Bolsonaro? Há três grupos distintivos. O primeiro, que podemos designar de “Bolsonaristas raiz”, o segundo formado pelos evangélicos neopentecostais e o terceiro integrado por membros da fronteira agrícola do país. Os “Bolsonaristas raiz” são fundamentalmente homens, com alta escolaridade, têm até 40 anos, vivem nas regiões metropolitanas, e são antissistema e muito críticos a toda forma de regulação. Variam entre 3 e 5% dos apoiadores do presidente. O segundo grupo, os evangélicos, se constitui de membros da classe C, espalhados pelo país, e que ainda enxergam no bolsonarismo a defesa dos valores caros a eles, como a ordem familiar. Variam entre 10 e 12% dos apoiadores do presidente. O terceiro grupo é composto pelas classes A, B e C, de cidades pequenas e médias, sendo essencialmente masculino. Variam entre 9 e 11% dos que apoiam Bolsonaro.

O ex-presidente Lula está sendo até aqui o grande beneficiário dos indicadores ruins da presidência de Bolsonaro. O fato de não ser até agora o protagonista do processo eleitoral (no sentido de que a pergunta principal está sendo sobre Bolsonaro e não sobre a volta do PT ao governo central) tem lhe permitido ser identificado pela maioria dos eleitores como o anti-bolsonaro. À pergunta: entre Lula e Bolsonaro, em quem você votaria se as eleições fossem hoje, Lula atinge melhor posicionamento em todas as pesquisas. Nas inquirições sobre as intenções de voto, Lula também obtém liderança em todas as pesquisas, sempre com índices acima de 40%. À pergunta sobre o candidato em quem não votaria de jeito nenhum, Lula é o segundo colocado também em todas as pesquisas, só superado por Bolsonaro. Nas simulações de um possível 2º turno, Lula vence em todas. São indicadores que, apesar de excelentes, ainda não garantem nem vitória no primeiro turno (que o PT jamais conseguiu, nem mesmo quando estava no governo e com altas taxas de aprovação) e nem vitória no segundo turno se o adversário não for Bolsonaro.

E quem são, hoje, os principais apoiadores de Lula? Há dois grupos distintos. O primeiro, que podemos designar de “povão”, e o segundo formado pelos nordestinos. O “povão” é integrado pela maioria das classes D e E. O segundo grupo, os nordestinos, se constitui de membros da classe C, D e E residentes na segunda região em quantidade de eleitores no país, representando 27% do total de votos. O seu maior desafio está nas regiões metropolitanas da região sudeste, que foi decisiva para a vitória de Bolsonaro em 2018 com o voto massivo dos eleitores que ganham de 2 a 5 salários mínimos e hoje não estão mais com o presidente, embora continuem não arrependidos de ter votado nele na última eleição.

O ex-governador Ciro Gomes se viu beneficiado pelas retiradas progressivas das candidaturas da “terceira via”, menos pela recepção imediata de intenções de votos desses desistentes, e mais pela formação do cenário específico que parece lhe dar chance: ficar como único nome alternativo à polarização no momento em que a campanha propriamente dita se iniciar. Ciro apresenta índices de intenção de voto variante entre 7 e 9% nas inquirições estimuladas. Ostenta uma baixa rejeição que gira em torno de 25%. A composição de sua intenção de voto é muito semelhante ao perfil que obteve na última eleição presidencial: eleitores de até 35 anos, classes A e B, alta escolaridade, grandes cidades – exceto no estado do Ceará, onde recebe também votos da máquina governamental e partidário-eleitoral, geralmente não captados nessa fase da campanha. Nas simulações de segundo turno, vence o atual presidente e perde para Lula, embora chame atenção nessas simulações o alto número de brancos e nulos, que pode indicar bolsonaristas que ainda não vislumbram uma disputa sem o “mito”, mas que podem optar pelo antipetista na reta final da decisão eleitoral caso o embate final seja entre Lula e Ciro.

Projeções

 Faltando ainda dois meses para a definição oficial das candidaturas (mês de agosto), e depois o início da campanha eleitoral, há espaço para reorientações no cenário atual, mas elas estão relacionadas a algumas condições. Examinemos como as variáveis discerníveis podem afetar cada um dos três grupos de candidaturas postas hoje: Bolsonaro, Lula e Ciro Gomes, como “a terceira via” real.

 Bolsonaro:

  • depende da recuperação econômica do país e, mais importante, de que a percepção acerca dessa recuperação seja sentida pela população. A inflação e o desemprego precisam sofrer inflexão para modificar o peso que ambos os indicadores têm tido na avaliação negativa do presidente. O governo tem feito vários movimentos cujos sentidos buscam efeitos eleitorais, sendo o mais explícito a ampliação do valor de um auxílio financeiro aos pobres;
  • Vencer eleição sem aprovação majoritária do governo é tarefa difícil. Um caso relativamente semelhante ocorreu na Argentina, em 2019, quando o então presidente Macri ostentava índices inferiores a 40% de aprovação ao seu governo e foi derrotado no segundo turno em sua tentativa de reeleição, chegando a 40% dos votos. É verdade que ele não contou, como possível aliada, com a polarização aguda contra um ex-presidente com as características de Lula.
  • A reeleição de Bolsonaro parece depender demasiadamente de sua estratégia de comunicação. Para um candidato que se apresente como outsider, isso pode ser bastante funcional. Mas, para um candidato à reeleição, com alta taxa de rejeição, é estratégia arriscada. Nesse cenário, a reeleição de Bolsonaro depende do acerto de conseguir fazer com que a “pergunta central” da eleição seja sobre a volta de Lula e do PT ao poder, revivendo o plebiscito de 2018, em um contexto distinto. Embora o antipetismo ainda seja uma força muito forte em nossa sociedade (cerca de 45% do eleitorado é antipetista, segundo Mauricio Moura, um dos melhores analistas eleitorais do país, em entrevista ao Canal no You Tube Meio), o peso da circunstância econômica e a percepção difundida de que o governo Bolsonaro entregou pouco colocam o presidente em situação desafiadora para se reeleger.

Lula:

  • O ex-presidente Lula experimenta uma situação paradoxal: por um lado, ostenta números de intenção de votos que em nenhuma outra pré-campanha ele alcançou; mas, por outro lado, sabe-se que a grande vantagem atual tem como causa principal a alta rejeição do até agora principal adversário. A enorme proximidade entre as intenções de voto e a rejeição ao seu nome revela objetivamente o paradoxo. A se manter esse quadro, Lula deve torcer para Bolsonaro continuar exatamente como está hoje: relativamente enfraquecido, mas ainda assim bloqueando a passagem de outro candidato ao segundo turno.
  • Um outro aspecto importante a se destacar em relação à candidatura de Lula é o fator Sudeste, que representa 43% do eleitorado brasileiro. Ele foi decisivo para a vitória de Bolsonaro em 2018 (obteve 53% no 1º. turno e 65% no 2º. turno), pois, além de ser a região de maior densidade eleitoral, foi onde o rechaço ao sistema político da Nova República (dominado por PT, PSDB e MDB) se expressou de maneira mais clara. Os escândalos de corrupção envolvendo os ex-governadores Aécio Neves (MG) e Sérgio Cabral (RJ) devastaram as estruturas políticas destes estados (2º e 3º colégios eleitorais do país), abrindo o caminho para a ascensão fulminante do bolsonarismo, cuja intensidade se desdobrou para o plano estadual, elegendo os governadores de ambos os estados. E lembremos que o candidato do PSDB ao governo de São Paulo, João Dória, só venceu a eleição em 2018, por margem muito pequena, com a ajuda providencial de Bolsonaro. Hoje parece improvável a recuperação de Bolsonaro na região, voltando ao status de 2018, mas tampouco parece que o PT e Lula estejam imunizados contra a latência do antipetismo, cujo epicentro foi justamente no Sudeste.
  • As chances de vitória do ex-presidente Lula no pleito de outubro passam muito pela continuidade da condição de protagonista eleitoral de Bolsonaro. Essa circunstância não só afasta a possibilidade de a pergunta central da eleição ser sobre o retorno do PT e de Lula, como também bloqueia o espaço discursivo para a emergência de um candidato que fure a lógica da polarização entre as duas lideranças carismáticas, até agora muito benéfica para Lula. Enquanto o principal adversário do PT for Bolsonaro enfraquecido, a eleição de Lula estará mais próxima.

 Ciro Gomes:

  • A chance de uma “terceira via” passa por um conjunto estreito e rigoroso de condições, mas ela existe objetivamente: A soma das intenções de voto na inquirição espontânea, que apresenta em tese o voto mais cristalizado em Lula e Bolsonaro, não alcança 60%. Levando em conta os 10% dos votos que tradicionalmente compõem os nulos e brancos nas eleições presidenciais brasileiras, temos uma quantidade de eleitores em disputa que pode concorrer com a cifra de Bolsonaro. Há, portanto, demanda, mas ela precisa ser transformada em ativo eleitoral. O fato de Ciro ser o segundo voto majoritário de Lula e de Bolsonaro é um indicativo a ser trabalhado por sua comunicação política.
  • A primeira e, talvez, a mais importante condição é que a candidatura alternativa a Lula e a Bolsonaro seja única. Embora a divisão do eleitorado por opções ideológicas (direita, centro e esquerda) possa fazer sentido classificatório, essa não parece ser a melhor estratégia analítica, tendo em vista o contexto da disputa até agora marcado pela polarização, que não é ideológica, mas sim de fortes rejeições. Assim, a definição convencional e programaticamente correta, que coloca Ciro no espectro ideológico da centro-esquerda, não é o fator mais importante para sua ascensão: seus possíveis eleitores podem se tornar os que rejeitam Lula e Bolsonaro, mas ainda não o enxergam como alternativa real à polarização, o que somente a campanha pode mudar. Ciro tanto pode se beneficiar de um voto estratégico na reta final do primeiro turno como o que beneficiou Aécio Neves contra Marina Silva em 2014, como pode também ser vítima do voto útil de parte de seus atuais apoiadores, que, diante de sua impossibilidade de crescimento nas intenções de votos, migrem para candidaturas da polarização.
  • Ciro, por outro lado, até para ser considerado como possível opção por parte dos eleitores hoje inclinados a votar em Lula somente por enxergarem nele a melhor opção para retirar Bolsonaro da presidência, precisa parecer viável eleitoralmente. Aqui é que o fato de ser o segundo voto de Lula e de Bolsonaro e ter baixa rejeição pode formar o movimento que lhe beneficiaria. Um de seus trunfos, o suporte de um publicitário competente e vitorioso como João Santana, requer o período da fricção da campanha para tentar colher os possíveis frutos. Sua candidatura ostenta dois grandes desafios: a dificuldade de construção de palanques estaduais e o aumento do tempo de TV e rádio. Se sua candidatura conseguisse aumentar o tempo de TV e rádio com a adesão de um dos partidos de centro-direita ainda sem candidatos (União Brasil e a federação partidária entre PSDB e Cidadania), isso tornaria suas possibilidades mais plausíveis. Para isso, esses partidos teriam de apostar no crescimento de Ciro somente na campanha e não agora antes das convenções.

Conclusão

 Ao contrário do que pode supor o olhar desarmado, o grau de indeterminação do processo eleitoral ainda existe em nível considerável. Fatores como o uso dos disparos em massa (de informações e fake news) pelo WhatsApp, a possibilidade de nacionalização dos pleitos estaduais e a primeira eleição para deputado federal sob novas regras compõem um quadro ainda em formação. Soma-se a esses elementos o fato de a região do país mais importante eleitoralmente, o Sudeste, ser aquela que está menos estabilizada em termos de definição política e eleitoral neste momento.

Lula tem sido o grande beneficiário da alta rejeição de Bolsonaro até agora, mas uma campanha de desconstrução intensa pode mudar essa circunstância. Bolsonaro reunirá alguns dos instrumentos para realizar a tentativa de demolição da imagem do ex-presidente, a começar pelo farto tempo de TV no Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral, proporcionado pela coalizão partidária que sustentará a sua candidatura. Bolsonaro, por sua vez, não tem uma imagem de governante realizador e tentará se apresentar novamente como um outsider. Já Ciro precisa se tornar o tertius do processo, para tentar se aproveitar dos índices de rejeição alta proporcionada pela polarização entre Lula e Bolsonaro, e jogar sobre eles. Para isso necessitará de tempo de TV e rádio bem maior do que o seu partido isoladamente fornecerá, e, principalmente, precisará se tornar forte no Sudeste, para contrabalançar a condição avassaladora de Lula no Nordeste e o apoio resoluto que o Sul e o Centro-Oeste fornecem a Bolsonaro.

A circunstância dessa eleição aponta para o que se pode definir como uma estabilidade instável. O seu desfecho dependerá de a estabilidade da polarização, experimentada até aqui na pré-campanha, se manter até o fim do processo eleitoral, ou de as forças da instabilidade, por ora tragadas pela polarização, conseguirem implodir os atuais diques, impulsionadas pelos efeitos do choque de rejeições. A corrida presidencial tem muitos elementos para escalar uma dinâmica caótica em seu momento decisivo. O mês de setembro, quando completaremos 200 anos de independência política e véspera do pleito presidencial, será novamente um momento crítico em nossa história nacional.

[1] Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF).

[2]A eleição presidencial no Brasil é, de longe, a menos controlada pela lógica das máquinas políticas, sejam partidárias ou governamentais – o que não significa que elas ocorram num vácuo de poder, mas que os elementos que a estruturam são mais diversificados e menos previsíveis.