Do PND ao PNDS

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Por Marco Túlio de Carvalho Rocha – Ciro Gomes, ao se candidatar à Presidência da República em 2018, elaborou um conjunto de propostas de governo a que denominou Projeto Nacional de Desenvolvimento e o publicou em formato de livro em 2020, sob o título: Projeto Nacional: o Dever da Esperança. Mais do que um simples plano de governo, a obra de Ciro Gomes é elemento essencial do revigoramento do debate dos problemas nacionais, da tentativa de abandono do neoliberalismo e da restauração do desenvolvimentismo no Brasil, recuperando a trajetória de governos como os de Getúlio Vargas, JK e João Goulart. Ciro esclareceu que sua obra é um chamado que “quer despertar as contrapropostas, respostas e contestações de todos, aliados ou adversários…” (Projeto Nacional, p. 29). O presente texto é aceitação a esse convite e visa a contribuir para que a iniciativa essencial de Ciro Gomes seja enriquecida com o realce das ideias ligadas ao meio ambiente e à sustentabilidade.

O planejamento estatal do desenvolvimento, tal como proposto por Ciro, foi uma característica do período de maior evolução econômica e social do Brasil, entre 1930 a 1980. Vários foram os planos elaborados no período desenvolvimentista: Plano de Metas (1956-1961); Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social (1963-1965); Programa de Ação Econômica do Governo (1964-1966); Programa Estratégico de Desenvolvimento (1967-1970); Programa de Integração Nacional (1970); I Plano Nacional de Desenvolvimento (1971-1975); II Plano Nacional de Desenvolvimento (1975-1979).

A partir de 1980, o país começou a ser crescentemente dominado por políticas neoliberais que, em sua adoração irracional ao mercado, confiaram-lhe o papel de gerar o desenvolvimento; no contexto neoliberal, planos de desenvolvimento são considerados empecilhos à espontaneidade do mercado.

Ciro Gomes justificou a adoção de cada um dos elementos que compõem a denominação do “Projeto Nacional de Desenvolvimento”. No tocante ao “desenvolvimento” afirma que significa “o aumento tanto da riqueza produzida por um país como das capacidades e habilidades de seu povo, suas condições de vida e felicidade” (Projeto Nacional…, p. 106).

Essa justificativa afasta a suposição de que a sigla “PND” tenha sido inspirada pelo uso dela pelos governos militares ao denominar dois de seus planos da década de 1970, época em que questões ambientais estavam ainda longe de ocupar o lugar central que passaram a ter a partir da Constituição da República de 1988 e da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Rio-92.

Desde então, tornou-se definitivo o entrelaçamento entre componentes econômicos, ambientais e sociais na busca do desenvolvimento. Noutras palavras, sob a perspectiva das necessidades humanas do século XXI, não mais é legítima a defesa de um desenvolvimento que não seja sustentável.

Essa compreensão está presente na obra de Ciro Gomes. No tópico “Não podemos escolher entre produzir e preservar” ele dedica 3 páginas à constatação de que o problema ambiental deve ser sempre considerado em conjunto com o problema do desenvolvimento e que ambos devem ser compatibilizados. Nesse sentido, afirma que “um novo ciclo de desenvolvimento pode ajudar a deter o desmatamento no país” e alerta para a necessidade de se oferecer “alternativas econômicas para a população amazônica, lançando mão de ferramentas de desenvolvimento sustentável como o zoneamento econômico ecológico”: “se há um país no mundo que pode dar concretude à ideia generosa e nunca praticada até o presente momento no mundo de desenvolvimento sustentável, este é o Brasil” (p. 171). Ao mesmo tempo, adverte que a questão ambiental é “muito instrumentalizada para mobilizar parte das novas gerações contra o desenvolvimento de seu próprio país” (p. 170) e que ONG’s internacionais se espalharam pela Amazônia Legal ameaçando a soberania do Brasil (p. 171).

A questão ambiental volta a ser tratada no tópico do livro que resume diretrizes resultantes da análise empreendida na obra: “Apontamentos para uma nova prática”. No subitem “Ecologia para salvar o planeta”, Ciro Gomes critica o padrão de consumo atual e reconhece a gravidade do problema ambiental mundial (f. 244). Coerente com o intuito de compatibilizar meio ambiente e desenvolvimento afirma que o avanço tecnológico e a eliminação da miséria são partes indissociáveis da “luta ecológica” (f. 244):

Um fato oculto nas disputas em torno da questão ambiental é o papel da desindustrialização na devastação de nossos biomas. Um país que vem reprimarizando aceleradamente sua economia continua a precisar de divisas para equilibrar sua balança de pagamentos. Sem o recurso das exportações de bens manufaturados de maior valor agregado, resta ao país essa contínua pressão que vivemos hoje para a expansão da fronteira agrícola e exploração mineral descuidadas (p. 244-245).

Ciro Gomes reconhece, portanto, a existência do necessário entrelaçamento entre desenvolvimento e preservação do meio ambiente, apesar de o título de seu “Projeto Nacional” não expressar essa compreensão, o que ocorreria com o acréscimo do adjetivo “sustentável”.

O conceito de “desenvolvimento sustentável” foi consolidado na Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da ONU, realizada no Rio de Janeiro, em 1992, conhecida como ECO-92 e expressa a necessidade de o desenvolvimento atual não comprometer o atendimento das necessidades das futuras gerações. Em 2002, a Cúpula da Terra sobre Desenvolvimento Sustentável, realizada em Joanesburgo, fixou as três dimensões interdependentes da sustentabilidade: a econômica, a social e a ambiental.

Referida conceituação tornou-se central para efeito de estabelecimento de objetivos em todas as esferas da sociedade. Ganhou status normativo na ordem jurídica internacional e foi admitida na ordem jurídica interna dos países e na prática das empresas.

Durante a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (CNUDS), conhecida como Rio+20, realizada no Rio de Janeiro em 2012, os 193 Estados membros da ONU deram conteúdo concreto ao conceito de desenvolvimento sustentável ao estabelecer 17 objetivos a serem cumpridos até 2030, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) ou Agenda 2030:

1. Erradicação da pobreza: acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares;

2. Fome zero: acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura;

3. Boa saúde e bem estar: assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades;

4. Educação de qualidade: assegurar a educação inclusiva, equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos;

5. Igualdade de gênero: alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas;

6. Água limpa e saneamento: assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos;

7. Energia acessível e limpa: assegurar o acesso confiável, sustentável, moderno e a preço acessível à energia para todos;

8. Emprego digno e crescimento econômico: promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todos;

9. Indústria, inovação e infraestrutura: construir infraestruturas resilientes, promover a industrialização inclusiva e sustentável e fomentar a inovação;

10. Redução das desigualdades: reduzir a desigualdade dentro dos países e entre eles;

11. Cidades e comunidades sustentáveis: tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis;

12. Consumo e produção responsáveis: assegurar padrões de produção e de consumo sustentáveis;

13. Combate às alterações climáticas: tomar medidas urgentes para combater a mudança climática e seus impactos;

14. Vida debaixo d’água: conservação e uso sustentável dos oceanos, dos mares e dos recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável;

15. Vida sobre a terra: proteger, recuperar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentável as florestas, combater a desertificação, deter e reverter a degradação da terra e deter a perda de biodiversidade;

16. Paz, Justiça e instituições fortes: promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis;

17. Parcerias em prol das metas: fortalecer os meios de implementação e revitalizar a parceria global para o desenvolvimento sustentável.

Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, como se vê, extrapolam o âmbito exclusivamente ambiental ou exploram toda a amplitude e abertura do conceito de meio ambiente, como o conjunto de influências que permitem a vida em todas as suas formas (art. 3º da Lei n. 6.938/1981). Essa ampliação da pauta foi a solução encontrada para o problema da inexistência de instituições internacionais e internas de cada país voltadas à disciplina do conjunto dos problemas que envolvem a sustentabilidade.

Os princípios e objetivos adotados pela ONU em matéria de desenvolvimento sustentável coincidem integralmente com os princípios da Constituição da República do Brasil (arts. 3º, 4º, 5º, 6º), que o estabeleceu no art. 225:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo para as presentes e futuras gerações.

O desenvolvimento sustentável é, portanto, conceito vinculante na ordem jurídica brasileira tanto em razão do que dispõe o próprio texto originário da Constituição, quanto pela adesão do Brasil aos importantes tratados internacionais que cuidam de implementá-lo em âmbito mundial.

É fundamental notar que a sustentabilidade do desenvolvimento prevista em normas internacionais e nacionais tem alcançado grande efetividade prática na sociedade brasileira, induzindo a atuação concreta de instituições privadas e públicas de todos os níveis da federação. Como exemplo da força vinculante do referido conceito é suficiente lembrar a Meta 9 do CNJ, aprovada no XIII Encontro Nacional do Poder Judiciário, realizado em 2019, que estabelece: “Integrar a Agenda 2030 ao Poder Judiciário: realizar ações de prevenção ou desjudicialização de litígios voltadas aos objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS), da Agenda 2030”. Em torno desse princípio, os órgãos do Poder Judiciário brasileiro têm criado práticas para identificar a gênese dos problemas e atuar na prevenção da fonte de litígios por meio da solução pacífica de conflitos. São inúmeras as ações já concretizadas para cumprimento da Meta 9 do CNJ. Os Poderes Executivos da União, dos estados e dos municípios, igualmente, têm atuado para a implementação dos ODS. No âmbito da União o Decreto n. 8.892/2016 criou a Comissão Nacional para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável com a finalidade de internalizar, difundir e dar transparência ao processo de implementação da Agenda 2030. No âmbito municipal, as práticas adotadas em todo o Brasil podem ser conhecidas na página da Confederação Nacional de Municípios (ods.cnm.org.br).

A ausência do conceito de “sustentabilidade” como caracterizador do desenvolvimento objetivado pelo Projeto Nacional é, nesse contexto, um silêncio eloquente capaz de induzir a ideia de negação do muito que as sociedades mundial e brasileira têm produzido sobre a matéria.

A caracterização do desenvolvimento buscado pelo Projeto Nacional como sustentável celebraria verdadeira união entre a proposta de governo do candidato Ciro Gomes e as instituições internacionais e nacionais no âmbito das quais a referida proposta pretende atuar. Num tempo de tantas cizânias e incompreensões não é aconselhável dispensar a simpatia de tantos segmentos sociais relevantes que apoiam o projeto de desenvolvimento sustentável propugnado pelo conjunto das nações representadas pela ONU. O desenvolvimento sustentável e os ODS tornaram-se pauta comum às nações. Provam a necessidade de existência de planejamento do desenvolvimento da comunidade internacional. Corroboram a ideia de projeto, tal como propõe o candidato.

“Projeto Nacional de Desenvolvimento Sustentável – PNDS” é denominação que denotaria que as propostas do candidato Ciro Gomes caminham no sentido de colaborar com os maiores avanços da sociedade contemporânea aos que ainda não tiveram a satisfação de conhecê-las.

Por Marco Túlio de Carvalho Rocha

Mestre e Doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da UFMG. Procurador do Estado de Minas Gerais. Presidente do Ecotrabalhismo-MG.