A Ditadura Militar e Jair Bolsonaro: do nacionalismo de fins ao entreguismo

A linha dura e Jair Bolsonaro do nacionalismo de fins ao entreguismo ditadura militar extrema-direita
Botão Siga o Disparada no Google News

A extrema-direita brasileira esteve no poder em dois momentos históricos específicos da história do país: primeiro através da Ditadura Militar (1964-1985) e segundo através de Jair Bolsonaro (a partir de 2019). Apesar de se inspirar direta e declaradamente nos militares golpistas dos anos 1960, Bolsonaro apresenta diferenças relevantes em relação a esses. A diferença que busco debater neste texto é referente a política externa e econômica, sendo os militares representados pelo nacionalismo de fins e Bolsonaro pelo puro e simples entreguismo. Apesar de representarem uma radicalização da direita brasileira, opondo-se a governos progressistas que lhe antecederam, e de terem as Forças Armadas como suporte ideológico e institucional, o golpe civil-militar de 1964 e a vitória eleitoral de Bolsonaro em 2018 estão inseridos em distintas faces do capitalismo. Se em meados dos anos 1960, os ideais neoliberais ainda se mantinham restritos aos círculos universitários de Chicago, em 2018 o neoliberalismo estava amadurecido e vigente em diversos aspectos da vida.

Por isso que os militares de 1964, apesar de alinhados com os interesses do capital estrangeiro, estiveram longe de uma política econômica privatista e entreguista. A fase do capitalismo naquela conjuntura não permitia a venda brusca do patrimônio nacional, que só vai ter início a partir do governo de Fernando Collor e já sob a chamada “Nova República”. Por essa razão, alguns desinformados buscam desvincular o liberalismo da Ditadura Militar, como se os interesses da iniciativa privada e do capital estrangeiro só pudessem ser atendidos através de uma forte e intensa política de redução da máquina pública. É a velha e deficiente dicotomia entre liberalismo e Estado que não faz o menor sentido, principalmente num país de capitalismo dependente onde sua burguesia se desenvolveu atrelada e financiada pelo Estado, vide o período da Era Vargas e a ascensão meteórica da burguesia industrial após 1930.

Com base nas ideias de Moniz Bandeira, extraordinário cientista político e especialista nas relações entre Brasil-EUA, busco mostrar como essa diferença conjuntural repercutiu diretamente na política externa e econômica dos militares e de Bolsonaro. O primeiro ponto a ser dito é que a chamada linha dura (representada pelos governos Costa e Silva, Médici, Geisel e João Figueiredo) se distancia da política externa e econômica de Bolsonaro; enquanto o governo Castelo Branco se aproxima, principalmente no alinhamento aos EUA. Após o golpe civil-militar, as Forças Armadas sofreram um duro racha representado, basicamente, pela linha dura nacionalista de um lado e os militares vinculados a Escola Superior de Guerra (ESG) do outro. Esses militares vinculados a ESG, tendo como representante nomes como Golbery do Couto e Silva e o já citado Castelo Branco, eram simpáticos a aproximação entre Brasil e os EUA, assim como adotavam políticas econômicas mais liberais, chegando a ter Roberto Campos como seu condutor. Essas políticas econômicas significavam arrocho salarial, redução do investimento público e adoção as medidas impostas pelo FMI.

Diante de uma desastrosa política econômica que empobrecia a classe média e gerava revolta entre a classe trabalhadora, acumulada a uma política externa submissa aos interesses norte-americanos, os oficiais nacionalistas da linha dura resolvem se articular e pressionar Castelo Branco. Essa pressão resultou no enfraquecimento deste e na ascensão da linha dura ao poder, que ocorreu diante da subida de Costa e Silva ao Poder Executivo. Sobre a política externa de Castelo Branco, em que muito se assemelha a de Bolsonaro, afirma Bandeira:

O projeto de Castelo Branco, teórica e praticamente, induzia o Brasil a abdicar de sua aspiração ao status de potência, resignando aos seus próprios interesses nacionais, como país capitalista em expansão, em nome da unidade do hemisfério ocidental, uma vez que, de acordo com aquela percepção também totalitária, qualquer dissidência significava o favorecimento do comunismo e da União Soviética (BANDEIRA, 2011, p. 135).

Para Castelo Branco, nome simpático dos norte-americanos na sucessão de Jango, seria mais válido ser fiel a empreitada dos EUA na Guerra Fria, protegendo o ocidente da ameaça comunista, que colocar o Brasil como país relevante no cenário internacional. Trata-se de uma perspectiva de política externa que se assemelha a ligação entre Bolsonaro e os EUA, nos tempos que em que estes foram governados por Donald Trump. O alinhamento não era apenas ideológico e diplomático, mas também repercutia diretamente na condução da economia. Sobre o favorecimento aos EUA na economia, Castelo Branco foi responsável pelas seguintes ações:

Menos de um mês após sua ascensão à presidência da República, rompeu relações diplomáticas com Cuba. Impôs ao Congresso, humilhado e acovardado pelas cassações de mandatos, a reformulação da lei de remessa de lucros. Pagou pelos acervos da Amforp e da ITT o preço que os norte-americanos pretendiam, apesarda violenta oposição de Lacerda. Estabeleceu nova política de minérios, devolvndo à Hanna concessões de jazidas de ferro, canceladas pelo governo de Goulart, e aceitando entregar-lhe o porto, que ela havia muito tempo pleiteava, no Espírito Santo. E, além de vários ajustes militares e um Acordo Aerofotogramético, firmou com os Estados Unidos o Acordo sobre Seguros de Investimentos Privados, pelo qual as companhias estrangeiras no Brasil adquiriam direitos especiais (BANDEIRA, 2011, p. 137).

Em suma, o governo Castelo Branco sob condução econômica do liberal Roberto Campos, prezava pelo alinhamento diplomático, ideológico e econômico aos EUA. Porém, essa condução entreguista e anti-nacionalista sofreu uma ruptura após a subida de Costa e Silva, responsável pelo AI-5 e o recrusdecimento do regime tão pedido pelos oficiais da linha dura. A partir daí, surgem mudanças tanto na política externa quanto na economia que diferenciam a linha dura não só de Castelo Branco, como do futuro governo Bolsonaro que tem como uma de suas bases ideológicas a reivindicação do autoritarismo dessa corrente. No plano econômico, o investimento público passa a crescer após o governo Costa e Silva. Isso não significa que os militares deixaram de lado as imposições do FMI, muito menos contrariavam os interesses do setor privado. O que ocorreu só foi uma maior presença do Estado na economia, iniciando o que conhecemos como “milagre econômico”.

Apesar desse investimento público estar atrelado ao capital estrangeiro, favorecendo-o em última instância, inexiste uma tentativa de venda do patrimônio público por intermédio de privatizações. Pelo contrário, a linha dura fortalece as principais estatais do país, criando outras diversas em diferenciados setores da economia. Projetos atuais defendidos por Paulo Guedes, como a venda dos Correios e da Eletrobras, não teriam espaço nos governos militares.

Era a condução autoritária do capitalismo monopolista de Estado, desencadeada pelos militares. Na política externa  se desenvolveram certas indisposições do Brasil com os EUA, aguçadas nos governos posteriores. O alinhamento é substituído pela política externa independente, lembrando os tempos de Jânio Quadros e Jango. A oposição do Brasil ao Tratado de Não Proliferação Nuclear foi uma dessas indisposições. Os militares achavam que o tratado visava manter a energia nuclear concentrada em países ricos e privilegiados, sendo um de seus objetivos o desenvolvimento deste tipo de energia no Brasil. Sobre o rompimento da linha dura na política externa e na economia, temos o seguinte:

A necessidade de melhorar a imagem do regime autoritário, que se projetara internacionalmente pelo seu caráter repressivo e reacionário, levou o governo de Costa e Silva a apoiar a luta contra o racismo e o colonialismo, bem como a não se comprometer com a política de Portugal para a África, como Castelo Branco fizera, nas questões de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. As tensões entre o Brasil e os Estados Unidos, porém, afetaram suas relações bilaterais desde o início do governo de Costa e Silva (1967), quando seu ministro da Fazenda, professor Delfim Neto, retificou alguns aspectos da política econômica  e financeira traçada por Campos e Gouvêa de Bulhões, concedendo facilidades de crédito às indústrias e de certa forma abrandando alguns controles sobre os salários a fim de superar a recessão em que o Brasil se empegara desde 1964 (BANDEIRA, 2011, p. 154).

A virada de chave no governo Costa e Silva descrita acima, é continuada por Médici. Seu governo foi responsável pelo desenvolvimento do nacionalismo de fins, ou seja, a busca do desenvolvimento através dos meios que fossem necessários. O projeto Brasil Grande, visou projetar o país como potência emergente, cumprindo um papel a nível internacional semelhante ao que hoje cumpre a Rússia de Vladimir Putin. Esse nacionalismo de fins buscou desenvolver o país, “crescendo seu bolo”, mesmo que isso significasse endividamento e atendimento aos interesses do capital estrangeiro. O mais importante eram as taxas de crescimento que tornaram o Brasil uma das maiores economias capitalistas do mundo, com forte presença do Estado (em aliança com o setor privado nacional e estrangeiro) nesta empreitada. Em suma, “O que importava, fundamentalmente, ao nacionalismo-autoritário não eram os meios e sim os fins, ou seja, o desenvolvimento a qualquer preço, de modo que o Brasil se transformasse em grande potência, no mais curto espaço de tempo” (BANDEIRA, 2011, p. 172).

No governo Geisel, as tensões entre Brasil-EUA aumentaram, tendo em vista a busca do Brasil por projeção internacional. Foi neste período que o país passou a estreitar relações comerciais com a África e o Oriente Médio; reconhecendo a independência dos países africanos, mesmo tendo conhecimento da influência marxista nesses países recém-independentes, e exportando armamento para Muammar Kadafi, um forte rival dos norte-americanos. Foi também durante este período que o Brasil investiu pesado na busca pelo desenvolvimento da energia nuclear, firmando parceria com a Alemanha Ocidental que fizeram os EUA impor várias sanções e restrições comerciais ao Brasil. Com Figueiredo, o país passou a estreitar relações com os vizinhos latino-americanos, chegando a oferecer ajuda aos argentinos diante da Guerra das Malvinas. Apesar dessas indisposições, os militares sempre estiveram refém dos interesses estrangeiros, isso porque seu modelo de desenvolvimento dependente gerava ao país endividamento.

Essa posição nacionalista dos militares, econômica e politicamente, os aproximou de um anti-imperialismo contraditório típico de tendências fascistas (e os militares, tomando as reflexões de Theotônio dos Santos, representaram uma expressão nacional do fascismo dependente) de extrema-direita. Isso pode ser identificado pela fala de um desses militares, o ex-presidente João Figueiredo, que assim se manifestou na abertura da Assembleia-Geral da ONU, em 1982:

A interdependência entre as nações parece, por vezes, degenerar em tentativas de reconstrução de quadros hegemômicos ou sistemas de subordinação, que em nada contribuem para a prosperidade, seja no mundo industrializado, seja do mundo em desenvolvimento. Como em muitos casos praticada, a interpendência parece reduzir-se a um novo nome para a desigualdade (BANDEIRA, 2011, p. 226).

Diante da ONU, estava lá Figueiredo em oposição a políticas econômicas comandas por entidades como FMI, que buscavam manter uma divisão internacional do trabalho que beneficiava um punhado de países. Como podemos perceber rapidamente durante o texto, os militares da linha dura com base em seu nacionalismo de fins, se diferenciam não só de Castelo Branco e seus contemporâneos da ESG, como também do bolsonarismo que anos depois se coloca como continuador da política dos militares. O bolsonarismo pode até ser uma expressão política da extrema-direita brasileira, assim como os oficiais da linha dura, mas seu entreguismo e submissão aos interesses estrangeiros permite uma diferenciação pouco vista por análises políticas apressadas. A linha dura que comandou o Brasil com menor ou maior influência de 1967 a 1985, através do seu nacionalismo de fins, mais se aproxima do velho e falecido Enéas Carneiro que do entreguismo encarnado por Bolsonaro. As reflexões presentes neste texto é um convite para o entendimento não só da direita brasileira e suas várias subdivisões, como também anseia instigar o leitor a estudar profundamente a obra Brasil-Estados Unidos: a rivalidade emergente (1950-1988), responsável por mostrar com riqueza de detalhes os antagonismos desenvolvidos entre brasileiros e norte-americanos.