Paracuellos e as crianças na ditadura de Franco

Paracuellos
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Sexto lançamento da editora Comix Zone, obra escrita e desenhada por Carlos Giménez, Paracuellos é um calhamaço de duzentas páginas de alta gramatura em preto e branco que reúne as memórias dos moradores dos abrigos do Auxílio Social espanhol na época da ditadura do general Franco.

Estes abrigos eram um misto de colégio interno católico, orfanato, hospício e abrigo propriamente dito, onde ficavam crianças desamparadas da Espanha. Uma influência católica muito forte pode ser vista neles e se deve ao fato da aliança entre Franco e a Igreja, interessada em recuperar seu poder que fora perdido durante um breve período de republica laica na Espanha. A administração dos abrigos ficou então a cargo de padres e freiras e dos representantes do partido da situação, a FALANGE, o que gerou um ambiente com o pior da hierarquia militar fundida e da propaganda fascista ao pior do dogmatismo religioso extremo. Se não bastasse isso, as crianças ainda eram submetidas a castigos físicos sistemáticos e fome e sede extremas. A ditadura falhava até em alimentar seus dependentes.

Dado interessante este último, visto que a Espanha não se encontrava em situação de Guerra ou pagando compensações, apesar de ter vivido sua Guerra Civil até 1939, que justificasse esta carestia. A explicação é que os recursos dos abrigos eram drenados durante o caminho pela corrupção de agentes da ditadura, e quem sentia na pele o preço disso eram as crianças abrigadas, que faziam de tudo pelo pão de cada dia: cumpriam desafios um dos outros, prestavam serviços para os funcionários e até vendiam suas almas por um pedaço da encomenda que alguns pais levavam quando iam visitar seus filhos duas vezes por mês. Este se torna outro exemplo da corrupção na ditadura franquista, visto que as encomendas eram proibidas pelas autoridades eclesiásticas que geriam os abrigos, só conseguindo entrar com o devido suborno pago ao inspetor.

A fidelidade e o conhecimento profundo dos meandros do dia a da na instituição, retratados nas páginas, se devem ao fato da obra ser autobiográfica. Giménez realmente viveu em um abrigo, o que nomeia a obra, o de Paracuellos de Jarama, vilarejo na cercanias de Madri. Quando saiu das mãos do Auxílio Social e foi para Barcelona trabalhar com quadrinhos junto de outros futuros grandes nomes da cena espanhola, como Esteban Maroto, a ditadura franquista se encerrava e surgia ali a chance de contar sua história sofrida que lhe vivia engasgada. Esse anseio por tornar pública a situação dos abrigados deu um tom dramático as primeiras histórias, que sem muito interesse das editoras da Espanha, conseguiram ser publicadas apenas na Franca no ano de 1980. O sucesso foi instantâneo, vencendo o prêmio de Melhor Álbum do Festival de Angoulême. Gimenez viria posteriormente a encontrar antigos colegas de Auxílio e outras pessoas que também viveram em diferentes abrigos espalhados pela Espanha na mesma época, desses encontros vieram a segunda e a terceira leva de histórias nos anos entre 1997 e 2003 e 2016 e 2018.

As histórias independentes, as vezes curtas, as vezes longas, emocionam e divertem o leitor por retratarem as situações mais absurdas encaradas pelas dezenas de crianças que as protagonizam (uma delas sendo o alter ego do autor) com uma pureza estóica, e as vezes com uma maldade diabólica. O traço fino do autor casa perfeitamente com o preto e o branco e com a proposta de enredo simples, fazendo a obra figurar desde o lançamento como uma das maiores da cena de quadrinhos espanhola e Giménez como o maior expoente desta. Descobrir Paracuellos foi uma das maiores felicidades como leitor na quarentena. A venda da HQ fica como exclusiva da Amazon no Brasil e logo virá o volume final da saga dos abrigos de Giménez, reconhecida em 2010 como patrimônio cultural do quadrinho europeu.