‘Deus Cuida de Mim’: um grande gesto de Caetano Veloso, um imenso salto para um país cindido

'Deus Cuida de Mim': um grande gesto de Caetano Veloso
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Por Brand Arenari – Negar ou negligenciar grandes transformações na psique individual costuma cobrar um alto preço no futuro. O que não se apresente diferente na psique coletiva quando não damos a devida atenção a mudanças e rupturas que ocorrem na sociedade. Ao negar o contato, o diálogo, enfim, a existência dessas forças novas, produzimos “monstros” difíceis de serem controlados, causadores de medos e tormentos em todos nós. Esta parece ser a história do Brasil nos últimos 40 anos, um país que tem negado uma de suas transformações mais potentes e bruscas de sua existência, isto é, o fato de em poucas décadas ter rompido com uma estrutura de séculos, deixando de ser uma nação inteiramente católica, para ser também uma nação evangélico pentecostal.

Tudo a nossa volta mudou, a paisagem urbana, os jeitos e trejeitos de fala, a ocupação da esfera pública, há uma nova mentalidade em nossas classes populares, porém, tudo isso é em grande parte negado pelo Brasil Velho, especialmente pela chamada parte progressista desse Brasil. Neste 40 anos de vigorosa expansão evangélico pentecostal, o Brasil velho agiu como se isso fosse um fenômeno passageiro, que logo essa massa voltaria para seu lugar, dissolvida pela máquina de sincretismo que é o Brasil. No entanto, isso não ocorreu, nós somos também um país evangélico pentecostal, e nada indica que isso vai mudar em curto prazo. Ao negarmos esse processo de transformação, criamos um “monstro” pouco a pouco alimentado por ódios, ressentimentos, e sobretudo, por silêncios. Hoje, esse monstro se apresenta a nós como um país cindido, se alimentando diariamente de um ódio crescente e com todas vias de comunicação entre os lados completamente fechadas.

Como nos conta a mitologia grega, somente o ato de extrema coragem de um herói, com o auxílio de artimanhas (truques fantásticos) e proteção de certos deuses, pode nos livrar dos “monstros” que construímos e ameaçam nos devorar. Neste último domingo (04/12/2022), através do grande Caetano Veloso, o Brasil velho acenou para Brasil novo. Pode ser que, juntando os cacos de ternura que ainda nos restam em meio uma nação cada vez mais endurecida, tenhamos dado o primeiro passo de uma longa jornada do herói, cujo o começo é restabelecer vias de diálogo e encontros, recriar linguagens de comunicação entre formas de vida coletiva que radicalmente se distanciaram, e não se reconhecem mutuamente como agentes de fala e escuta. Esses brasis não conversam, berram agressões mutuas na escuridão de um labirinto que não sabem como sair, espreitados pelo monstro faminto que criaram. Ao gravar hit de sucesso evangélico com um cantor e pastor negro, lançada no salão nobre do Brasil velho (o programa fantástico da TV Globo), Caetano Veloso nos entrega o novelo de lã (truque fantástico) para não nos perdermos no imenso labirinto que adentramos e, enfim, enfrentar o monstro que criamos, sem sermos devorados por ele.

Através de Caetano, pela primeira vez, uma parte do Brasil começa olhar os evangélicos pentecostais com atenção, com um tipo de atenção específica, aquela voltada pela admiração estética, seduzidos por um tipo de beleza que até então não conseguiam ver. Esse é o “fio de Ariadne” que Caetano nos dá: reconhecer beleza e não somente ameaça no novo, no outro, no diferente que surge em nós, desse modo, nos ofertando um caminho para trazermos ao calor do mundo solar da consciência aquilo que inutilmente queremos empurrar para o sombrio e gelado submundo do inconsciente.

Como quase tudo parece ficar mais bonito quando iluminado pelo sol, e mais terrível e amedrontador no escuro, talvez, o gesto de Caetano, nos permita iniciar a ver beleza onde só se via caricaturas horrendas e distantes. O Brasil que ama e admira Irmã Dulce, Chico Xavier, Mãe Menininha do Gantois deve começar a aprender a admirar e amar (enxergar beleza) neste Brasil evangélico pentecostal que irrompe em nós. Como inicia a letra da música cantada por Caetano e o Pastor Kleber Lucas: “eu preciso aprender um pouco aqui, eu preciso aprender um pouco ali”.

Por Brand Arenari

Doutor em sociologia pela universidade Humboldt de Berlim, Alemanha, professor do departamento de ciência política da Universidade Federal Fluminense (UFF).

  1. Parabéns pelo texto! Muito boa a sua colocação. Talvez agora venhamos a entender o sincretismo religioso que sutilmente ja acontece. Quando pe. Fábio de Melo cantou e gravou essa música talvez ele não tenha aberto essa janela de visualização de que somos um só povo. O povo de Deus! Que devemos ver o que Bom e não de qual crença vem…estamos aqui nesse mundo para agregar, somar e não dividir. Vindo de Caetano, esse reconhecido Artista os olhos, os ouvidos e a compreensão de um pais Cristão e não só de religião A, B ou C e então sem disputas de quem salva mais chegaremos a um desfecho que é melhor agregar valores que nos deixam PESSOAS melhores.

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