Lula III e a consolidação do bipartidarismo “à americana”

Lula III e a consolidacao do bipartidarismo
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Nunca foi segredo para ninguém a absoluta subserviência ou vassalagem de Jair Bolsonaro, demonstrada à exaustão desde a campanha eleitoral de 2018, em relação ao então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Vale elencarmos apenas dois episódios ocorridos naquele período, entre muitos outros desde então, que ilustram essa afirmação: a ida do então candidato a Miami, onde bateu continência para a bandeira e jurou defender os valores estadunidenses; e a assessoria de Steve Bannon, o “guru” da extrema direita e dos trumpistas daquele país, aos filhos e à equipe de campanha de Bolsonaro.

Acontece que, para a infelicidade de Bolsonaro, em 2020 seu patrocinador Trump perdeu a reeleição para o candidato democrata, Joe Biden. Não reconheceu o resultado: promoveu e incentivou uma tentativa frustrada de golpe no assalto ao Capitólio; alegou – e continua alegando até hoje – que as eleições foram fraudadas; logrou preservar uma posição proeminente no Partido Republicano, mantendo a sua influência sobre boa parte dos seus quadros; e lançou, há poucas semanas, uma nova candidatura à Casa Branca.

Portanto, a derrota eleitoral não significou o seu fim, tampouco o do conjunto de ideias e valores que defende. Muito pelo contrário: tudo indica que a eleição perdida tenha sido apenas uma batalha numa guerra que segue ativa e que promete recrudescer na próxima, em 2024. Nesse cenário, era difícil imaginar algo mais inconveniente para Biden do que a perpetuação de Bolsonaro, o principal satélite de Trump no exterior. E foi aí que Lula entrou na estratégia do seu governo quanto ao que fazer com – ou do – Brasil, o país mais importante para a hegemonia estadunidense sobre o chamado “Hemisfério Ocidental”.

Não cabe discutirmos aqui a estranha lógica por trás das circunstâncias sob as quais, em questão de alguns meses, Lula passou da condição de ex-presidente perseguido e condenado à morte política pelo Judiciário para a de operador central e candidato favorito numa nova eleição. O que importa é que, sob a expectativa – formada há, pelo menos, um ano, com o auxílio de uma torrente de pesquisas de opinião antecipadas – da sua provável vitória, foi claro e inequívoco o suporte de Biden ao processo eleitoral brasileiro, desde sempre questionado por Bolsonaro, e à própria candidatura de Lula.

Vejamos alguns exemplos. Em julho de 2021 e novamente em maio desse ano, Biden enviou William Burns, diretor da CIA, ao Brasil para “enquadrar” Bolsonaro, o “instruindo” a parar de questionar as eleições e desencorajando os comandantes das Forças Armadas a aderirem a qualquer “aventura” antes, durante ou depois das eleições. Poucos dias antes do primeiro turno, enviou funcionários do Departamento de Estado, desta vez, para se reunir com Lula e sua equipe na sede do seu instituto em São Paulo, não se sabe exatamente para discutir o que. Ao longo do processo eleitoral, seu governo expressou “confiança” na segurança, na “lisura” e na integridade das instituições, das urnas e dos processos questionados diuturnamente por Bolsonaro. Mal confirmada a vitória de Lula no segundo turno, de pronto Biden a reconheceu em eleições que chamou de “livres, justas e confiáveis”. Finalmente, no início de dezembro veio ao Brasil o conselheiro de Biden para assuntos de segurança nacional, Jake Sullivan, para se reunir com Lula e “acertar os ponteiros” da aliança entre os dois governos, convidando o brasileiro para ir aos EUA já logo após a sua posse, em janeiro.

À luz desses episódios, o que se constata é que poucas vezes na nossa história, se alguma, a interferência estadunidense na política brasileira se deu de forma tão explícita. Não muda este fato que dessa vez, por razões meramente circunstanciais, sua ação tenha se dado em favor do candidato “progressista”.

Com efeito, na última eleição, vimos no Brasil um espelho da disputa majoritária que está acontecendo ao norte da linha do equador. Tal qual ocorre por lá, foi produzida uma cisão profunda do país em dois blocos radicalmente antagônicos. De um lado, um campo situado entre o profundamente conservador e o reacionário, congregando nas suas margens grupos de orientação abertamente nazifascista, liderado por Bolsonaro e expressando os valores do chamado “bolsonarismo”. Uma espécie de emulação tropical do Partido Republicano sob hegemonia trumpista, um Tea Party “radicalizado” não apenas nas suas posições nos mais diversos temas, mas na própria contestação ao sistema dito “democrático” e aos seus procedimentos eleitorais.

Do outro lado, formou-se sob a liderança de Lula uma espécie de “frente ampla” de caracteres até há pouco improváveis. Nela tomaram parte, no primeiro turno, o PT e seus tradicionais satélites de esquerda; tucanos históricos como Geraldo Alckmin, emigrado para o PSB, e Aloysio Nunes; além de oligarcas tradicionais do MDB como Renan Calheiros e os paraenses Barbalho, aliados de outrora do lulismo. Já no segundo turno, também aderiram a terceira colocada no primeiro Simone Tebet, outra tradicional oligarca do MDB; o PDT do quarto colocado, Ciro Gomes; outros tucanos históricos como José Serra e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso; e até o neoliberal extremista João Amoedo, fundador e então integrante do Partido Novo, declarou o seu apoio.

Em rigor, essa frente representou um grande “guarda-chuva” para “progressistas” de diversos matizes. Não pretendo, absolutamente, identificar esse “progressista” como “de esquerda”, mas contrastar com o polo bolsonarista aquilo que, na prática, significou a agregação de forças diversas que não possuíam espaço na visão de mundo e/ou na coalizão de poder de Bolsonaro. Essa frente que saiu vitoriosa das urnas foi um resultado da consolidação, desde 2018, de uma direita “de fato”, bolsonarista, que tomou de uma direita mais “moderada”, tal qual vinha sendo liderada desde os anos 1990 pelo PSDB, o seu espaço. Assim, a empurrou involuntariamente para o centro onde ela, por questão de sobrevivência política (mútua), se encontrou com o lulismo e seus satélites.

A heterogeneidade na composição dessa frente, assim como as dificuldades e contradições para acomodar todas essas forças e compor um governo coerente a partir delas, ficaram evidentes na formação da imensa equipe de transição, que entre integrantes formais e voluntários, já reúne quase mil nomes. Nela, há de tudo um pouco: de Guilherme Boulos a neoliberais de plena convicção, como Persio Arida, e outros supostamente convertidos à “heterodoxia”, como André Lara Resende. Há também artistas, esportistas, médicos, sanitaristas, educadores, lobistas de ONGs e grupos da educação privada etc. Não obstante, o que interessa registrar aqui é que na “estreia internacional” do novo governo, na reunião da Convenção Mundial do Clima (COP-27) realizada em novembro no Egito, foram privilegiados alinhamentos externos esperados pelo governo Biden e seus aliados europeus e que, tudo indica, o novo governo Lula aceitará estabelecer, como Marina Silva a cargo de uma “Autoridade Nacional para o Risco Climático”, um órgão “independente” gerenciando a questão ambiental e operando, também ele, em estreita “cooperação” com autoridades dos Estados Unidos; e a intenção tornada pública, embora por ora ainda não confirmada, de criar um Ministério dos Povos Originários para tratar da questão indígena.

Mas afinal, o que Biden e os formuladores da política externa dos Estados Unidos esperam de Lula?

A minha hipótese é a de que desejam que Lula “limpe o terreno” pós-bolsonarismo, atuando como um árbitro – possivelmente o único capaz disso na política brasileira – que “traga a bola para o meio de campo”, devolvendo ao “jogo” todos os setores não-bolsonaristas considerados “responsáveis”. Porém, é claro, pretendem que Lula não transija nenhuma “regra”. Ele procurará realizar suas políticas sociais redistributivas, sua marca registrada, mas não se deve permitir que promova ou busque promover algum tipo de transformação estrutural na sociedade brasileira. É disso, por exemplo, que se trata a disputa em torno da vigência ou não do “teto de gastos” e das condições de aprovação da chamada “PEC da transição”. Quais e quantos meios monetários de comando serão dados a Lula para que possa governar, comandar recursos humanos e materiais na sociedade? Não muitos, pois certamente não foi para que governe “livre, leve e solto” e crie um legado que possa produzir novo padrão de vitórias eleitorais seguidas do PT que o governo Biden e os formuladores da política externa estadunidense decidiram respaldar a sua candidatura, a sua vitória e a sua posse. Tampouco foi para que Lula produza um(a) sucessor(a) com “aspirações desenvolvimentistas” como Dilma Rousseff.

Com efeito, para eles, o que Lula deve fazer é consolidar a sua “frente ampla” tal qual uma representação brasileira do Partido Democrata. Uma frente que congregue liberais diversos em questões sociais, em contraste com o reacionarismo bolsonarista; todavia, comandada inquestionavelmente por neoliberais na Economia Política, seja por convicção pura e simples ou por “necessidade” prática de se adequar aos supostos interesses do “mercado”. Claro que um corolário disso será a redução do pouco que ainda resta dos “progressistas” contestadores do establishment neoliberal, como os nacional-desenvolvimentistas e os comunistas, a grupos minoritários, neutralizados e impotentes no interior desse grande “blocão” como são, por exemplo, os democratic socialists (como Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez) no Partido Democrata.

Em suma, o que querem de Lula é que ele execute um governo sem “aventuras”, de alinhamento com a política externa estadunidense numa conjuntura de grave acirramento das disputas geopolíticas e de transição e consolidação, no plano interno, de um bipartidarismo “à americana”, ainda que de caráter informal. Lá na frente – não tão na frente assim, dada a sua idade –, espera-se que Lula transfira a liderança dessa frente para alguém como Simone Tebet – já claramente sendo preparada para tal função pela mídia formadora da “opinião pública” – ou o próprio Geraldo Alckmin. Ou seja, lideranças mais organicamente alinhadas com a implantação do programa neoliberal e com o papel destinado pelo “Primeiro Mundo” para o Brasil: dominado pelo capitalismo dito “financeirizado”; primário-exportador e fornecedor de matérias-primas, embora sem ser um predador ambiental, dada a importância desse patrimônio brasileiro para o equilíbrio climático global; e claro, sem qualquer projeto nacional de desenvolvimento, no máximo comportando medidas de reindustrialização pontuais.

A hipótese aqui lançada se confirmará? É claro que Lula pode não conseguir, inclusive por razões pessoais, desempenhar o papel dele esperado; ou pode não querer desempenhar, embora não tenha até aqui dado qualquer indicação disso, mesmo porque parece estar plenamente ciente e de acordo com o seu papel nessa ordem. Por outro lado, o Brasil, país profundamente heterogêneo e complexo, pode não comportar um esquema bipartidário, ainda que informal como esse que aqui sugiro. Ademais, fatos imponderáveis podem transformar radicalmente o cenário: por exemplo, o bolsonarismo pode perder força nos próximos anos, abrindo fissuras e, eventualmente, fragmentando esse “partido”. Ou ainda, a correlação de forças pode ser alterada pelo eclipse do bolsonarismo “radicalizado” por outra direita de perfil mais “pragmático” sob o comando, por exemplo, de Tarcísio de Freitas, que antes mesmo de assumir o governo do estado de São Paulo já declarou a sua independência ideológica e operacional.

Obviamente, somente o futuro poderá confirmar, ou não, essa hipótese. Em todo caso, a deixo aqui registrada.