Democracia é um valor universal?

Democracia e um valor universal
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A despeito da admiração que tenho por Carlos Nelson Coutinho, a fórmula que ele popularizou (importando dos comunistas italianos, que, convenhamos, prometeram muito mais do que entregaram), “democracia como valor universal”, nunca fez qualquer sentido. Ou melhor, até fez: se a seguirmos logicamente, é uma das maiores tentativas de refutação que o movimento comunista já conheceu!

Acham um exagero? Então me sigam.

Se, por “universal” entendemos: aquilo que tem força incondicional e trans-histórica, guiando nossas condutas em torno da Verdade, Bem, Justiça (há infinitos nomes na história da filosofia) e por “democracia” compreendemos um conjunto de instituições políticas nascidas do parlamentarismo liberal e expandidas após a luta dos operários (sufrágio universal, constitucionalismo liberal, eleições multipartidárias através das urnas individuais), só resta concluir que todas as revoluções até hoje existentes foram verdadeiras agressões ao universalismo.

Ora, como não? Por acaso alguém votou, lá na solidão da urna, por Robespierre? Lenin foi eleito da mesma forma que Bolsonaro e Hitler foram? Aliás, depois da revolução de Outubro, os bolcheviques não melaram uma eleição para Assembleia Constituinte (havendo protestos dentro do marxismo, como a Rosa Luxemburgo)? Existiu alguma revolução que não foi obra ou de insurreição e guerra civil revolucionária ou guerra popular? Os liberais não criticam Lenin por justamente ter abortado qualquer chance de democracia parlamentar ocidental na Rússia?

Por este critério, qualquer presidente de Israel é fruto de uma situação mais libertária do que a revolução dos sovietes! Vamos ser rigorosos e racionais: se iniciam com um axioma, sigam com ele até o final, não importando as consequências. Por esse critério, vejo mais coerência em qualquer liberal político do que em boa parte de nossos socialistas.

Não precisa nem ir muito longe. Onde eu aprendi a fazer política, no movimento estudantil do Largo São Francisco, havia uma disputa entre duas concepções de democracia sempre que algum movimento contestador estava em ebulição. A esquerda defendia que tudo fosse decidido em assembléias (muitas vezes caóticas e disputadas), enquanto aqueles que desejavam inviabilizar a greve (ou qualquer atividade política do gênero) lutavam por urnas, a fim de convocar a “maioria silenciosa” não presente nas assembléias. Esta é também uma das táticas clássicas do patronato a fim de impedir greves em fábricas.

Entretanto, por algum motivo, há essa dissonância cognitiva, nossos esquerdistas não juntam lé com cré: admite-se que urnas não são o melhor caminho em qualquer circunstância (especialmente nas circunstâncias mais promissoras em termos de mobilização de massa) — aliás, se dependêssemos delas para ciências, arte e moral, ainda estaríamos acreditando no geocentrismo e a arte moderna teria morrido no berçário — para logo em seguida negarem a premissa anterior em nome do casuísmo e da inércia confortável do senso comum.

Então, me desculpe, Coutinho, meu bom, o modelo democrático ocidental não é um valor universal. Ou então concluiremos que EUA são mais democráticos que Cuba. E isto é cruzar uma linha que geralmente determina nossas escolhas essenciais para conceber a política.