E quem cuidará dos civis de nossa guerra?

E quem cuidara dos civis de nossa guerra
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Nas primeiras semanas do atual governo, as recorrentes viagens do presidente tinham o pretexto de reinserir o Brasil na ordem mundial. Lula seria uma espécie de novo Juscelino numa campanha de asseio da reputação nacional após o lodo em que nos atolamos por quatro anos. Discursou em órgãos internacionais e foi ovacionado. Palmas para o Brasil.

Depois, Lula passou a se meter a conselheiro nos assuntos da guerra entre Rússia e Ucrânia. Queria ser um player de relevo, ostentando a marca do país neutro e pacificador ante os confrontos de um “mesmo povo” (ao menos de acordo Putin, o chefe de Estado de longeva relação com o nosso presidente), fracionado em duas respeitosas nações modernas. Lula seria então uma espécie de Nelson Mandela a dissipar o apartheid alheio ou Mahatma Gandhi a promover a paz sem recorrer a greves de fome. Palmas para o Brasil e para Lula.

Agora, nova guerra deflagrada e Lula envida todas as suas energias em mitigar bombardeios e sequestros de reféns de povos do Oriente Médio. Um conflito sem previsão de cessar fogo entre o Estado de Israel e o grupo terrorista Hamas parece ter suscitado nele os espíritos de Winston Churchill e Che Guevara ao mesmo tempo, condenando a a barbárie de um sem deixar de torcer o nariz pro imperialismo do outro. Palmas para Lula.

Olhando pra cá, o Brasil surfa em favorável maré econômica e toca com alguma habilidade programas sociais exitosos. São dois trunfos para os propósitos eleitorais de qualquer partido e agente político no poder que planeja sua continuidade lá. E, talvez por essa onda alvissareira, o presidente tenha sentido que precisa se ocupar um pouco mais com os problemas dos outros. Afinal, o maior problema nacional não tem sido tratado – não com ênfase, não com vigor, não com contundência – por ele, nem por seus ministros e demais subalternos.

A violência exercida pelas facções e viabilizada pela farra do acesso a armas e munições prospera mais do que a nossa economia. E a confusão gerada pela imprensa nacional, ao culpabilizar as polícias no combate ao crime organizado, agrava o quadro e afasta as soluções, pois atribui equivocadamente a um setor o fator preponderante do fenômeno da violência, tal como o vivenciamos.

Enquanto Lula viaja, seu ministro da Justiça e Segurança Pública performa para essa imprensa, vocaliza platitudes e adota medidas de impacto quase estreitamente retóricos. Configura-se aí uma parceria entre a impressa e os políticos contra as polícias, coisa que mais tem servido, vale dizer, a conferir plausibilidade à extrema direita bolsonarista – justamente, a pior coisa que nos aconteceu historicamente – e para ajudar a remoer um sofrimento desnecessário e já demasiadamente duradouro. Por que há essa confusão?

Vamos ao fato: não há mais violência – policial ou civil – onde há menos crescimento de facções e confronto entre elas. Os números são definitivos quanto a isso. Os Estados com maiores índices de violência policial são os que assistem a um crescimento vertiginoso do número de facções e que vivem as consequências dessa metástase no organismo social. Portanto, o problema não é o do sadismo policial respaldado por um racismo estrutural basilar. O problema é perplexamente contingente e conjuntural. Onde aconteceu de as facções desejarem expandir negócios, dominando territórios e aniquilando direitos e vidas, os dados da violência são mais expressivos. Simples assim: o problema é a existência de facções com seus modos e recursos de operação e com as guerras que elas deflagram, como se fossem Estados dentro do território ou grupos terroristas.

Na raiz do problema está a chuva de pistolas, metralhadoras, rifles e munições que cai no colo de qualquer grupo de bandidos que aceitam ter prazo de vida curto para ostentar as facilidades que o poder da arma e do dinheiro trazem. Quem padece o trauma, como sabemos, somos nós: os civis, penalizados com o acinte meliante, com as balas perdidas, com o medo e com a humilhação.

Somos todos solidários a quem sofre os reveses das guerras alhures. Mas temos a nossa própria guerra a enfrentar. É preciso, portanto, gritar para que o presidente escute: LULA, PARE DE BANCAR O GANDHI, O MANDELA, O CHURCHIL OU O GUEVARA DOS OUTROS E SEJA O PRESIDENTE DO BRASIL.

Tome em suas mãos a tarefa de restringir e mitigar, se não for possível extinguir, o acesso franco da juventude a armas e munições. Porque esse é o recurso de empoderamento dos criminosos. Crie um comitê permanente de enfrentamento às facções. Amplie o quadro da PF e diversifique os dispositivos institucionais de interação entre os órgãos de segurança nos diferentes entes federados. Recrute quem há de mais preparado e providencie o que há de mais sofisticado em matéria de tecnologia de combate ao crime (afinal, quem pode mais providenciar IA, satélites, drones, câmeras e outros instrumentos: instituições de Estado ou qualquer traficante de periferia pobre?). Incentive o refinamento no trabalho cooperativo dos setores de Inteligência das Polícias.

Mais do que isso. Opere pela criação de uma cultura contra as armas. Foque o combate às armas ilegais, porque assim nem a direita mais tosca poderá se opor. Estimule um imaginário de responsabilização penal e moral de quem facilita a circulação desse item que subtrai vidas. Ajude a sociedade brasileira a incorporar o caráter hediondo e chocante desse tipo de ilícito, tanto quanto a ela chocam coisas como estupro, tortura, sequestro, pedofilia ou golpe de estado. Há muita coisa a fazer nesse campo, mas tem faltado liderança. Falta-nos que se tome o problema com a gravidade que ele tem.

Presidente, não somos palestinos ou ucranianos e não podemos elevar a sua vaidade no plano internacional, mas somos o povo que o elegeu pela terceira vez ao maior cargo público no país. Trate de cumprir a Constituição e trabalhar por ele. Lidere o Brasil na guerra que acontece em nosso território e em desfavor de nosso povo. Comece uma campanha contra o tráfico de armas já.