Hemingway: No meio do inverno aprendi, finalmente, que havia em mim um verão perigoso

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Hemingway: No meio do inverno aprendi, finalmente, que havia em mim um verão perigoso

Algumas coisas ficam para sempre marcadas em nossas memorias pela complexidade ou simplicidade com que conseguem nos tocar a alma. Uma dessas que não consegui nunca me esquecer foi de uma pergunta do saudoso Abujamra na primeira entrevista dele que assisti, no Provocações, com Vladimir Safatle. A pergunta era “quem foi o grande autor que você descobriu?”. Desde então, a cada novo livro lido, eu também me faço essa pergunta. Ainda é muito cedo para dizer que ninguém mais conseguirá falar comigo de tal maneira, mas acredito que dificilmente alguém impedirá que a resposta no dia de um encontro celestial ou infernal com o velho Abu seja que “o grande autor que eu descobri foi o Hemingway”.

Papa Hemingway foi um homem de uma obra prolifica, jornalista desde a tenra juventude nos Estados Unidos, correspondente de guerras na Europa, contista genial, romancista único pela sua linguagem enxuta e direta, marcada pela sua “escrita do iceberg”, e até autor teatral. Como eu, um homem nascido em um ano 99 de um século e criado totalmente em um novo. Era um apaixonado pela vida, pela virilidade da existência do homem, quase que ofuscando sua obra com as próprias aventuras, suas pescas em alto mar, safáris na África e por sua mais intensa paixão, as touradas.

Hemingway se consagra como escritor com seu primeiro romance “O sol também se levanta” nos anos 1920, um romance ambientado naquele país que o autor dizia mais amar, somente atrás do seu próprio, a Espanha. Não seria o último romance do autor que se passaria em terras espanholas, seu gigante “Por quem os sinos dobram” manteve viva essa paixão pelo local ao contar a saga de Robert Jordan para dinamitar uma ponte durante a Guerra Civil. Mas o que havia de tão especial para que o americano voltasse repetidamente a Espanha e declarasse sempre seu amor por lá? Para além das paisagens exuberantes e da boa comida e bebida, novamente as touradas, e claro seus astros, os toureiros, de quem Hemingway sempre se fez grande amigo.

Em 1932 sua primeira carta aberta, fiel e apaixonada às touradas é publicada na forma de ensaio, Morte ao entardecer, um verdadeiro fiasco de crítica mas um clássico cult instantâneo. Já no último ano da década de 1950 Hemingway voltaria a Espanha, já uma celebridade literária, vencedor do prêmio Pulitzer e do prêmio Nobel de literatura, para acompanhar a histórica temporada de touradas de seu amigo e ídolo Antonio Ordóñez, astro em ascensão, e de seu cunhado e rival Luis Miguel Dominguín, em busca de retomar o antigo brilho. A dramática temporada de espetáculos estupendos fora publicada em uma série três matérias para a revista Life sob o nome de O verão perigoso e don Ernesto endeusado como o padroeiro da tauromaquia pouco antes de sua morte em 1961.

Entretanto diferentemente de seus romances e, principalmente, seus contos, O verão perigoso é uma obra de menor brilho na constelação do homem que fez do machismo um movimento literário. Extenso e repetitivo, o livro se arrasta por todas as touradas de Antonio e Luis com um favoritismo evidente de Hemingway para com Antonio ao descrever os embates entre os cunhados nas plazas de toros, favoritismo esse posteriormente confesso com algum arrependimento. Nos primeiros capítulos os detalhes da arte da tourada, tão pouco difundida fora dos circuitos hispânicos, prende a atenção do leitor, mas o excesso de descrições a cada novo movimento dentro da arena e o emprego de termos específicos da tauromaquia pelos 13 capítulos que compões o livro desvirtuam totalmente do modo de escrita enxuto que tanto consagrou Hemingway com sua obra.

Apesar disso, se ainda mantenho minha resposta à pergunta de Abujamra? Com certeza sim. Nem mesmo o velho Hemingway conseguiria diminuir o peso do restante de sua própria escrita. Se recomendaria a leitura d’O verão perigoso? Somente a quem, assim como eu, já estivesse em idolatria com o restante genial da obra do autor, ou a aspirantes à toureiro que buscassem um bom manual para o exercício da profissão.