Robespierre: virtude e a violência divina do Terror

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Robespierre: virtude e a violência divina do Terror

Hoje essa coluna fará algo que lhe é inteiramente novo, tratar de uma obra há muito publicada. Não vejo isso como um atraso nosso, afinal, ao mesmo à mim, todo livro nos é novo se ainda não o conhecemos. Se trata de discutirmos sobre “Virtude e Terror”, uma coletânea dos principais discursos de Maximilen Robespierre, que conta também com um grande e excelente prefácio de Slavoj Žižek, apresentador da coleção, da qual faz parte também o livro “Mao: sobre a prática e contradição”. Não se trata aqui de discutir o texto corrido em si, mas sim a mensagem deixada pelo incorruptível Robespierre à todos aqueles que ousaram lutar.

Ainda que hoje relegado por uma Nova Esquerda que se envergonha de seus pilares enquanto tradição política, Robespierre talvez seja a figura mais central de todo o pensamento político de Esquerda ocidental. Entendo aqui, e sempre, como Esquerda aqueles que primam pela soberania popular e pelo igualitarismo radical, horizontes políticos estabelecidos justamente pelo Clube Jacobino. Por essas causas sempre lutou Maximilien François Marie Isidore de Robespierre, advogado, deputado do Terceiro Estado aos Estados-Gerais de 1789 e membro do Comitê de Segurança Pública. Note que não há nenhum outro título de caráter diretivo único que Robespierre tenha ocupado, como a historiografia conservadora finge haver ao chamado de “ditador”. Robespierre nada foi além de um representante do povo, com ideias que foram muito bem aceitas nas deliberações coletivas ao longo da Revolução, é verdade, mas que apenas aconteceram pela própria força das palavras de Robespierre e não por uma questão de outorga feita por ele. Como bem nos deixou Eric J. Hobsbawm:

Ele não tinha poderes ditatoriais formais nem mesmo um cargo, sendo simplesmente um membro do Comité de Salvação Pública, que era por sua vez um mero subcomitê da Convenção — o mais poderoso, embora jamais todo-poderoso. Seu poder era o do povo — as massas parisienses — e o terror, o delas. (HOBSBAWM, 2015, p. 78)

Robespierre era, antes de tudo que já o acusaram, um iluminista. Um leitor assíduo de Montesquieu e de Rousseau, este com capacidade de se fazer presente até na oratória do líder jacobino, quando ele diz “O homem nasceu para a felicidade e para a liberdade, e em toda a parte é escravo e infeliz” (ROBESPIERE, 2008, p. 95). Uma clara alusão à: “O homem nasceu livre, e em toda parte se encontra sob ferros” de Rousseau no Contrato Social. Dessa influência de Rousseau se dará a política da Virtude do governo jacobino. A soberania popular, elemento definidor da Esquerda e, logo, dos jacobinos, enquanto o horizonte político a se perseguir acontece pela generalização do conceito de “vontade geral” elaborado por Rousseau.

É oportuno lembramos, antes que a bandeira de sanguinário seja levantada contra Robespierre, que:

As pessoas puderam acreditar, ou acreditam, como se afirmou tantas vezes, que o sistema do Terror foi obra de um homem ou de alguns homens? (…) Eu não consigo compreender. (…) Robespierre e a Montanha, que foram transformados em bode expiatório dos excessos revolucionários, criaram e desenvolveram voluntariamente o reino do Terror? (…) ninguém sustentará que eles estavam nos planos de Robespierre, já que ele se opôs constantemente a eles e seus autores foram seus inimigos mais cruéis. (LEVASSEUR apud JACOB, 1939, p. 155)

Quando dado o momento de maior influencia de Robespierre no governo francês, a França, além da sua revolução interna, vivia uma guerra externa, contra monarquias restauradoras que tentavam invadir o pais para findar a Revolução. Nesse sentido Robespierre discursou à Assembleia, suas palavras foram:

O governo constitucional se ocupa principalmente da liberdade civil, e o governo revolucionário, da liberdade pública. Sob o regime constitucional, quase basta proteger os indivíduos contra o abuso do poder público; sob o regime revolucionário, o próprio poder público é obrigado a defender-se de todas as facções que o atacam . (ROBESPIERRE, 2008, p. 114)

O governo revolucionário jacobino se entenderia essencialmente como em um estado permanente de guerra, pois assim de fato era, podendo por isso agir com de maneira especial, em um estado de exceção contínuo. Nisso se enquadrou, por obvio, a lógica da violência pública. O corpo político surgido de uma revolução, como foi a francesa, só sobrevive se conseguir se imunizar, o que requer incorporar a lógica da guerra ao governo:

É preciso sufocar os inimigos internos e externos da República ou morrer com ela; ora, nessa situação, a primeira máxima de vossa política deve ser que se conduza o povo pela razão e os inimigos do povo pelo terror. Se a força moral do governo popular na paz é a virtude, a força moral do governo popular em revolução é ao mesmo tempo virtude e terror: a virtude, sem a qual o terror é funesto; o terror, sem o qual a virtude é impotente. O terror nada mais é que a justiça imediata, severa, inflexível; ele é, portanto, uma emanação da virtude. Mais que um princípio particular, é uma consequência do princípio geral da democracia aplicado às mais prementes necessidades da pátria (ROBESPIERRE, 2008, p. 101)

Essencial nos lembrarmos de que para Robespierre a política do Terror era o exato oposto da prática da guerra. Robespierre era um pacifista, por crer acima de tudo que a guerra entre países era um instrumento para suplantar suas próprias revoluções. Em seu discurso “Sobre a guerra” ele fala contra a militarização causada por ela e contra as tentativas de levar os ideais revolucionários à outros países por meio da luta entre as nações:

Os franceses não sofrem da mania de tornar qualquer nação feliz e livre contra a sua vontade. Todos os reis teriam podido vegetar ou morrer impunes nos seus tronos ensanguentados se tivessem respeitado a independência do povo francês. (ROBESPIERRE, 2008, p. 36)

Além de contar com amplo apoio popular, tendo “para o francês da sólida classe média que estava por trás do Terror, ele não era nem patológico nem apocalíptico, mas primeiramente e sobretudo o único método efetivo de preservar seu país” (HOBSBAWM, 2015, p.76). e ao contrário do que se difundiu, o período do Terror também não foi extenso, mas ficou visto assim porque:

Os conservadores criaram uma imagem duradoura do Terror, da ditadura e da histérica e desenfreada sanguinolência, embora pelos padrões do século XX, e mesmo pelos padrões das repressões conservadoras contra as revoluções sociais, tais como os massacres que se seguiram à Comuna de Paris de 1871, suas matanças em massa fossem relativamente modestas: 17 mil execuções oficiais em 14 meses. (HOBSBAWM, 2015, p. 76)

Evidente que haverá aqueles que acharão tais números absurdos, mesmo que quando comparados a processos revolucionários semelhantes, tal qual o inglês, tenham menos mortes. Para tais pessoas, uma eloquente resposta seriam as palavras simples de Saint-Just à época da Revolução, ao dizer que:

A dialéctica materialista admitirá sem particular alegria que nenhum sujeito político chegou até hoje à eternidade da verdade que apresenta sem momentos de terror. Pois, como pergunta Saint-Just, “Que querem aqueles que não querem nem Virtude nem Terror?” A sua resposta é conhecida: querem a corrupção – outro nome para a derrota do sujeito. (BADIOU, 2006, p. 98)

Ou como dito por ele próprio de forma ainda mais concisa: “Aquilo que produz o bem geral é sempre terrível” (SAINT-JUST, 1968, p. 330). O próprio Robespierre ofereceu resposta à aqueles que pretensamente se preocupavam com a violência da Revolução ao dizer que: “A sensibilidade que geme quase exclusivamente pelos inimigos da liberdade é-me suspeita. Deixai de agitar sob os meus olhos a veste sangrenta do tirano ou julgarei que quereis tornar a pôr Roma a ferros” (ROBESPIERRE, 2018, p. 79), também disse em mesmo sentido mas de forma mais extensa em discurso atacando os moderados:

Cidadãos, queríeis uma revolução sem revolução? Que espírito de perseguição é esse que veio rever, por assim dizer, aquela que quebrou as nossas grilhetas? Mas como podemos submeter a um juízo certo os efeitos que podem arrastar estas grandes comoções? Quem pode, a posteriori, marcar o ponto preciso onde deviam quebrar-se as ondas da insurreição popular? Por esse critério, que povo poderia alguma vez sacudir o jugo do despotismo? Pois se é verdade que uma grande nação não pode levantar-se por um movimento simultâneo e que a tirania não pode ser atacada senão pela porção dos cidadãos que está mais perto dela, como ousariam estes atacá-la se, após a vitória, os delegados vindos das partes mais afastadas do Estado podem torná-los responsáveis pela duração ou pela violência da tormenta política que salvou a Pátria? Devem ser olhados como detentores de uma procuração tácita da sociedade inteira. Os franceses amigos da liberdade, reunidos em Paris no passado mês de Agosto, agiram a esse título em nome de todos os departamentos; é preciso aprová-los ou desarmá- -los por completo. Acusá-los do crime de algumas desordens aparentes ou reais, inseparáveis de um grande abalo, seria castigá-los pela sua dedicação. (ROBESPIERRE, 2018, p. 79-91, grifo nosso)

Uma das principais maneiras pelas quais alguns historiadores do período da Revolução Francesa lidaram com a violência jacobina foi enxergando o Terror como uma tentativa de “regular” a violência soberana, anteriormente popular, explicado nas palavras de Danton como: “Sejamos terríveis para que o povo não tenha de ser” (SCHAMA, 2000, p. 706):

Para Danton, o terror de Estado revolucionário jacobino era uma espécie de ação preventiva cujo verdadeiro propósito não era a vingança sobre os inimigos, mas impedir a violência “divina” direta dos sans-culottes, dos próprios interessados. Em outras palavras, façamos o que o povo nos exige para que não seja ele próprio a fazê-lo. (ZIZEK, 2014, p. 128)

Essa violência dos jacobinos nasceu de a incapacidade da Assembleia Nacional de agir contra os restauradores (WAHNICH, 2012). Longe de ser o resultado inevitável da infinitude do sentimento revolucionário, o Terror é o resultado da ausência de um sistema institucional eficaz para defender a revolução (WAHNICH, 2003) ou como tratou Alain Badiou: “(…) se você diz A – igualdade, liberdades e direitos humanos -, não deve fugir de suas consequências, mas é preciso reunir coragem para dizer B – o terror realmente precisou defender e afirmar A” (ADRESS, 2005, p. 185). Nesse caso, a violência em questão foi vista como uma forma de legítima defesa da população contra a restauração opressora da monarquia absolutista e feudal. Por toda a sua atuação no processo revolucionário, alguns chamarão Robespierre de “a revolução encarnada” e, com razão, Furet dirá que: “a Revolução morreu juntamente com seu líder, Robespierre” (FURET, 1978, p. 96)

À aqueles que ainda assim não entenderam a mensagem deixada por Robespierre coloco aqui como resposta final a frase de C. R. L. James: “Quando a história for escrita como deve ser, os homens ficarão admirados do comedimento e da grande paciência das massas, e não de sua ferocidade” (JAMES, 2010, p. 137).

Referências Bibliográficas:

ADRESS, David. The Terror. Civil War in the French Revolution. Nova York: Farrar, Strauss and Giroux, 2005.

BADIOU, Alain. Logique des mondes. Paris: Seuil, 2006.

FURET, François. Penser la Révolution Française. Paris, Gallimard, 1978.

HOBSBAWM, Eric J.. A era das revoluções: 1789 – 1848. São Paulo: Paz e Terra, 2015.

JACOB, Louis. Robespierre vu par ses contemporains. Paris: Armand Colin, 1939.

JAMES, Cyril Lionel Robert. Os jacobinos negros: Toussaint L‟Ouverture e a revolução de São Domingos. Trad. Afonso Teixeira Filho. 1ª ed. rev. São Paulo: Boitempo: 2010.

ROBESPIERRE, Maximilien de. Virtude e terror. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.

SAINT-JUST, Louis Antoine Léon. Oeuvres choisies. Paris, Gallimard, 1968.

SCHAMA, Simon. Cidadãos: uma crônica da Revolução Francesa, São Paulo, Companhia das Letras, 2000.

WAHNICH, Sophie. In Defence of the Terror: Liberty or Death in the French Revolution. Londres: Verso Books, 2012.

WAHNICH, Sophie. La libérté ou la mort: essai sur la terreur et le terrorisme. Paris: La Fabrique, 2003.

ZIZEK, Slavoj. Robespierre, ou a “violência divina” do Terror.In: ROBESPIERRE, Maximilen de. Virtude e Terror. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.

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