Crise na Ucrânia: Os EUA dobram a aposta no uso da arma monetária

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Por Fernando Silva Azevedo – Em conversa por telefone neste sábado (12), Joe Biden advertiu o presidente russo, Vladimir Putin, que um ataque russo à Ucrânia teria “custos severos” a Moscou e “resposta imediata” por parte de Washigton. Por sua vez, Putin reforça que os EUA e o Ocidente, leia-se OTAN, não levaram em considerações as demandas russas por segurança. O impasse parece prevalecer com nenhuma das duas potências disposta a recuar. Logo após a conversa entre os presidentes, a Casa Branca informou que os EUA estão abertos à diplomacia, mas “preparados para outros cenários”. Enquanto isso, Moscou confirmou que o presidente Biden alertou sobre a aplicação de possíveis sanções em caso de invasão. Tudo indica que Washington pretendem aumentar a aposta no uso da bomba-dólar para enfrentar esse desafio geopolítico. A pergunta é: será a estratégia mais adequada?

A aplicação de sanções financeiras ancoradas no poder de sua moeda nacional tem sido algo tentador para as autoridades norte-americanas. Isso ocorre devido a quatro características desse artefato bélico: 1) a grande facilidade: a aplicação das sanções não depende de nenhuma aprovação pelo congresso, tudo é realizado através de Ordem Executivas elaboradas pela Casa Branca; 2) a velocidade: os efeitos sobre os alvos são imediatos, uma vez que o principal mecanismo dessa arma envolve o constrangimento de atores privados do sistema financeiro internacional, como os grandes bancos com operações globais, que atuam imediatamente de acordo com as diretrizes do Departamento do Tesouro para defenderem seus próprios interesses privados, como continuar operando na moeda internacional; 3) baixos custo econômico: a operação das sanções dispensa a mobilização de grandes contingentes de tropas, basta um pequeno grupo de especialistas dentro da burocracia do Estado norte-americano, em especial no Departamento do Tesouro, Departamento de Defesa e no Departamento de Estado; 4) baixo custo político: não há o desgaste de enviar soldados jovens para a morrerem na linha de frente defendendo interesses de difícil entendimento para a população em geral.

Nos últimos anos, essa arma se mostrou funcional. Ela foi utilizada contra a Coréia do Norte, contra o Irã e contra a própria Rússia. De todos esses três casos, o iraniano é o mais dramático e que teve maiores impactos na economia do país alvo. Após a aplicação das sanções financeiras, a economia iraniana sofreu impactos relevantes tais como: retração do PIB, descontrole no câmbio, aumento da taxa inflação e queda nos níveis de produção industrial. A funcionalidade da arma é incontestável. Mas ela tem se mostrado eficiente? Até o presente momento, no caso iraniano, as sanções se mostraram incapazes de modificar o comportamento do país no que se refere ao desenvolvimento do seu programa nuclear. No caso russo, há dúvidas se elas serão capazes constranger Vladimir Putin a recuar de seus objetivos estratégicos de longo prazo.

O uso das sanções na crise ucraniana cria um cenário complemente distinto do que ocorreu no uso da arma monetária contra o Teerã. Ao contrário do Irã, a Rússia é uma grande potência nuclear ressentida que busca retomar um maior protagonismo no tabuleiro internacional. A economia russa é mais de 7 vezes maior do que a iraniana e muito mais integrada com o mundo, em especial com a Europa que tem mais de 30% de seu fornecimento de gás importados de Moscou, com Suécia e Finlândia com dependência de 100%. Os custos para a aplicação das sanções por um longo período podem ser altos demais para Washington e os benefícios são incertos, como mostrado pelo caso iraniano. Além disso, as consequências do uso do dólar como arma contra uma país tão importante podem ser negativas para a economia mundial. Os preços das commodities podem se elevar e afetar os já altos níveis de inflação em todo o mundo, o que dificultaria ainda mais retomada do crescimento econômico pós-pandemia.

Além da dinâmica econômica, há para ambos os lados dessa disputa interesses geopolíticos permanentes na região em questão. Essa realidade tem recebido pouca atenção da mídia brasileira. Para os EUA e o Ocidente, é fundamental que o poder terrestre russo seja contido em suas fronteiras e não se expanda a ponto de alcançar mares quentes e abertos, ou seja, mares que não congelam, como o Mar Ártico, e que não sejam mares interiores, como o Mar Negro e o Mar Cáspio. Essa ideia foi a base de análise da famosa conferência de Halford Mackinder, em 1904. Nela, o autor inglês defende a ideia que na história podemos identificar uma rivalidade secular entre dois tipos de potências, uma terrestre (ou continental) e outra oceânica (ou marítima). A contenção russa por forças marítimas ocidentais se encontra dentro dessa lógica. A disputa entre o Império Britânico e o Império Russo durante o século XIX, conhecida como “Great Game”, é um exemplo dessa disputa secular. Para a Inglaterra era fundamental evitar que o Império Russo conseguisse combinar as características de potência terrestre, como todos os recursos humanos e materiais que um vasto território pode prover, com a de potência marítima que, no limite, poderia rivalizar com o poder marítimo inglês. Cabe recordar que um dos eventos mais importantes desse grande jogo foi a Guerra da Crimeia do século XIX. Os atritos entre potências ocidentais e a Rússia são mais antigas do que possa parecer para um observador desatento.

Para a Moscou, a Ucrânia faz parte de seu entorno estratégico imediato, é um espaço de extrema importância geopolítica que possuí profundos laços históricos e culturais com a Rússia. O nascimento do Estado russo ocorreu no espaço onde hoje é a Ucrânia. Foi em Kiev, no século IX, que se estabeleceu uma confederação que reuniu as tribos eslavas do leste europeu de forma organizada e eficiente pela primeira vez. Tanto a Rússia como a Ucrânia se autoproclamam herdeiros do Rus de Kiev. Além disso, a região pertenceu ao Império russo comandado pelos czares e a URSS, tonando-se independente de fato apenas em 1991, com o colapso da experiência soviética. Seria ingenuidade achar que tais laços históricos não serão explorados por Moscou para legitimar um aumento de influência na região. Além disso, o atual movimento russo não começou agora e está lidado diretamente à crise na Ucrânia de 2013-2014, que teve como consequências diretas a anexação da Criméia pela Rússia e a guerra civil no leste e no sul do país. Essa crise é fruto da expansão da OTAN e da União Europeia para o leste ocorridas no pós-guerra fria e da iniciativa cada vez mais agressiva da russa de se contrapor a tal movimento. Cabe lembrar que algumas sanções financeiras contra a Rússia já estão em operação hoje por conta dessa crise e ainda não foram capazes de diminuir o ímpeto de Moscou na busca por defender seus interesses na região.

Não há dúvida que a bomba-dólar é uma ferramenta poderosa. Mas toda arma, por mais poderosa que seja, possui limites estratégicos [1]. Sempre é preciso saber quando, onde e contra quem usar uma determinada arma. No caso da atual crise na Ucrânia, as sanções financeiras da bomba-dólar serão adequadas para enfrentar um desafio dessa magnitude? Será a arma correta para lidar com um processo geopolítico que não começou ontem e nem terminará amanhã?

Tudo indica que exista um certo paradoxo na bomba-dólar, uma vez que seu uso pode enfraquecer seu poder de uso futuro. É pouco provável que as autoridades norte-americanas não estejam cientes dos limites geopolíticos da arma que construíram. O recado que Biden passou a Putin pelo telefone no último sábado certamente dobra a aposta no uso das sanções para manter a irredutível posição ocidental na crise. Os próximos capítulos dessa história mostrarão se o recado do presidente Biden é um blefe ou se os EUA, sua sociedade e seus aliados realmente estarão dispostos a sustentarem os custos econômicos e políticos de usarem essa arma monetária contra uma grande potência por um período de tempo prolongado. Ainda não se sabe qual é o fôlego dos EUA para defenderem seus interesses no Leste europeu. Talvez a única certeza que temos no momento é que o ano de 2022 será agitado no tabuleiro geopolítico das grandes potências.

[1] “A crise na Ucrânia e o desafio americano da bomba-dólar”. Portal disparada

Por Fernando Silva Azevedo, economista, analista de Defesa, mestre e doutorando em Economia Política Internacional pela UFRJ e membro do Instituto da Brasilidade.