14 de Julho: dia da Constituição Castilhista
Por João Pianezzola – Neste dia, há 132 anos, era promulgada em nome “da Família, da Pátria e da Humanidade” a Constituição Política do Estado do Rio Grande do Sul. Escrita pelo punho único de Júlio Prates de Castilhos, a carta castilhista foi, ao mesmo tempo, o prenúncio da ideologia trabalhista e a primeira formalização constitucional do republicanismo positivista e, também, de uma já existente tradição autoritária, racionalista e laica da administração pública. O que essa constituição tem de interessante? É o que o texto responderá abaixo.
ANTECEDENTES (À GUISA DE INTRODUÇÃO)
O republicanismo brasileiro não foi inventado aos 15 de novembro de 1889. Antes da fatídica data da Proclamação, as ideias republicanas já eram conhecidas pelo público mais douto e eram até mesmo capazes de tornar-se vetores de movimentos políticos patrióticos e irredentistas. A Conjuração Baiana e a Inconfidência Mineira são exemplos do período pré-independência. A Revolução Farroupilha, ocorrida durante o período regencial, é um exemplo da efervescência de ideias republicanas após 1822. O próprio período da Regência (1831-40), curiosamente, foi descrito como uma “república provisória” por homens autorizados como Joaquim Nabuco.
Todavia, os partidários da propaganda republicana não podem, absolutamente, ser tomados como membros de um grupo homogêneo partilhante dos mesmos contornos ideológicos. Haviam, como na própria administração monárquica, os liberais; e haviam os republicanos antiliberais, positivistas — em verdade, nem mesmo os positivistas concordavam em tudo: haviam os positivistas ortodoxos e os heterodoxos, mas deixemos tais nuances para outro momento.
Da tensão entre o liberalismo e o antiliberalismo surgirá o castilhismo enquanto evocação política própria. Visceralmente republicano, sim, mas pouco tinha em comum com as reivindicações liberais do Manifesto Republicano de 1870. Segundo Ricardo Vélez Rodríguez, as movimentações que produziram o Manifesto pouco ou nada influenciaram o clima político do Rio Grande do Sul. Na verdade, talvez um pouco: o jornal A Federação, órgão oficial do Partido Republicano Rio-grandense (PRR), do qual Castilhos seria o redator chefe por 7anos até tornar-se presidente do estado após a Proclamação, enquanto coligava todos os republicanos gaúchos em prol dos mesmos ideais da República e da Abolição, manifestou, a seu modo, algumas opiniões que podem ser considerados liberais. Contudo, quando Júlio de Castilhos chega à maturidade ideológica, próximo de assumir o governo do estado e de provocar a dissidência de outros importantes republicanos que antes eram seus colegas de partido, o PRR assume as molduras ideológicas pelas quais seria posteriormente conhecido, e em razão das quais pode encontrar antecedentes ideológicos mais claros na chamada “tradição pombalina” de Portugal (séc. XVIII): uma herança de Marquês do Pombal que, agindo como um “déspota esclarecido”, impôs à metrópole (e sua colônia, o Brasil) um Estado laico, técnico, modernizante e ativo, principalmente em matéria econômica. Penso que o castilhismo pode ser melhor compreendido quando interpretado como uma evolução histórica orgânica dessa tradição, posteriormente misturado ao pensamento de Augusto Comte e de outros autores positivistas ou pré-positivistas, num contexto mais explicitamente republicano e de crise do modelo monárquico-parlamentarista do Segundo Reinado.
Todavia, o castilhismo, por seu turno, incorpora tais antecedentes ideológicos à sua maneira, e busca legitimar o poder não no arbítrio do “déspota esclarecido” ou na ditadura pela ditadura, mas na lei e no direito, para que pudesse ter perpetuidade. Durou, é verdade, 40 anos, e teve no trabalhismo de Getúlio Vargas o seu mais importante donatário. Vasculhemos agora os pontos interessantes da Constituição Castilhista.
CONTEXTO HISTÓRICO
Após a proclamação da República, o Governo Provisório baixou o decreto n.º 802 de 4 de outubro de 1890 que convocava assembleias legislativas nos estados para que se levasse a cabo o processo de eleição para assembleias constituintes locais. A “Comissão dos Cinco” (encarregada da Constituição Federal) prescreveu que as constituições estaduais deveriam, obrigatoriamente, contemplar 5 determinações: (1) que houvesse discriminação e idependência dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário; (2) que os governadores e membros da legislatura devessem ser eleitos; (3) que a magistratura não fosse eletiva; (4) que os magistrados não fossem demissíveis, salvo por sentença; e (5) que o ensino fosse livre e leigo em todos os graus, e gratuito na fase primária.Tais disposições foram, então, encaminhadas para uma segunda comissão (“dos Vinte e Um”) que, por influência de um membro, Júlio de Castilhos, suprimiu os incisos propostos em razão de ferir a autonomia dos estados ao estabelecer uma rígida simetria entre as constituições estaduais e a Constituição Federal. Naqueles dias, a influência de Castilhos já era enorme. Uma quinzena depois, no dia 18 de outubro de 1890, o governador em exercício General Cândido da Costa nomeou a comissão encarregada de elaborar o projeto constitucional para o Rio Grande do Sul e, de acordo com o Ato n.º 498, os nomeados foram Ramiro Fortes de Barcellos, Joaquim Francisco de Assis Brasil e Júlio Prates de Castilhos. Todavia, enquanto o segundo recusou-se a assinar o projeto por discordâncias ideológicas, Ramiro Barcellos estava fora, no Rio. O resultado foi que a Constituição, que viria a ser promulgada no dia 14 de julho de 1891, foi de autoria exclusiva de Júlio de Castilhos.
A IDEIA DE UNIDADE COMO FUNDAMENTO DO GOVERNO
Para quem já sabe da história, está claro: o ponto de discordância era o primeiro inciso. Para Castilhos, a tripartição dos poderes “é ilusória e não se funda na natureza das coisas”. No arranjo liberal, taxado de “metafísica dominante”, preconizava-se uma nova “tecnologia” a respeito de como se deve organizar a coisa pública: no lugar da tripartição de poderes, deveriam haver tão-somente “órgãos” ou “funções” de um mesmo e único “aparelho governativo”, segundo a gramática castilhista, que ressignificava o significado dos termos constitucionais clássicos para sancionar a principal marca da Carta: a ampla prevalência das prerrogativas do Executivo sobre os demais poderes-funções-órgãos. Portanto, não se falava na divisão e autonomia dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, mas, de acordo o Artigo 6° da Constituição (importantíssimo, e em torno do qual tudo o mais gravitava), na Presidência do Estado e, subordinadas a ela, a Assembleia dos Representantes (“Legislativo”) e a Magistratura (“Judiciário”).
Art. 6° — O aparelho governativo tem por órgãos a Presidência do Estado, a Assembléia dos Representantes e a Magistratura que funcionarão harmonicamente, sem prejuízo da independência que entre si devem guardar, na órbita da sua respectiva competência, definida nesta Constituição.Para legitimar a importância da unidade do aparelho governativo nos debates que antecederam promulgação da Carta, Júlio de Castilhos fez uso, nas páginas d’A Federação, de uma terminologia fisiológica muito reminiscente do Leviatã, de Hobbes, segundo a qual, a sociedade, que assemelha-se a um corpo orgânico, prescinde da divisão de poderes. O corpo é uno: possui um cérebro, seu centro operativo, e diversos “órgãos” que o auxiliam a executar suas várias e necessárias atividades. Logo, em vez da divisão escrupulosa do Poder, que é uno, em vários “poderes”, seria mais conforme à natureza das coisas que a atividade legislativa ordinária coubesse ao Chefe do Executivo. Segundo Castilhos, ademais, a própria História fornecia exemplos que comprovam que os governantes que tomaram decisões extra-legislativas foram, a rigor, exitosos em suas empreitadas.
A PRESIDÊNCIA DO ESTADO
Investiguemos agora as atribuições do Executivo segundo o presidencialismo científico castilhista.
Basta averiguar quanto verbo é gasto na Constituição para cada órgão do aparelho governativo para verificar qual deles é sobrevalorizado: a Presidência do Estado conta com 27 artigos e 47 parágrafos (dentre estes, somente o artigo 20, que trata das atribuições do presidente, conta com 25 parágrafos), enquanto a Assembleia dos Representantes conta com 15 artigos e 12 parágrafos e a Magistratura com 11 artigos e também 11 parágrafos. O primeiro daqueles 25 parágrafos sobre as atribuições do presidente já diz de forma bastante clara: “Art. 20º — Como chefe supremo do governo e da administração, compete ao presidente, com plena responsabilidade:
1º Promulgar as leis, que, conforme as regras adiante estabelecidas, forem da sua competência”.
Além da legislatura ordinária, cabia ao Presidente do Estado escolher no prazo de 6 meses após sua eleição (por sufrágio direto) o seu vice-presidente; cabia a ele também convocar extraordinariamente a Assembleia; expedir decretos, instruções e regulamentos para a fiel execução das leis; preparar o projeto orçamentário do Estado para ser entregue à Assembleia; organizar e mobilizar,de acordo com o interesse do Estado, a força pública (Brigada Militar) dentro dos limites do orçamento; criar e prover cargos civis e militares, dentro dos limites do orçamento, e muitas outras funções. Cabia à Presidência atribuições hoje reconhecidas como de competência do Poder Judiciário, como resolver sobre os limites dos municípios (§ 16) e decidir conflitos de jurisdição que se suscitaram entre os chefes do serviço administrativo (§ 19). Além disso, era o presidente quem escolhia os ministros da Magistratura. Outro conceito importante para o castilhismo era a continuidade administrativa, mediante a reeleição ilimitada. O Presidente do Estado podia ser continuamente reeleito, contanto que obtivesse 75% dos votos a partir da segunda campanha. A lógica da continuidade administrativa é de uma inescrupulosidade escancarada ante à doutrina liberal que, na maioria das constituições hodiernas, limita severamente a possibilidade do chefe do Executivo ser reeleito. Na concepção castilhista, isso prejudica a continuidade da boa administração, pois esta, se houver, deve ser abruptamente interrompida para um revezamento de poder. Segundo Castilhos e, principalmente, Borges de Medeiros (seu sucessor, e aquele que mais usou e abusou da continuidade administrativa), isso “não é conforme à natureza das coisas”.
Seja pelo clima de tensão causado pela guerra civil no estado, pela decidida abstenção de participação política da oposição (maragatos) ou pelas comprovadas fraudes eleitorais perpetradas pela Assembleia dos Representantes (responsável por contar os votos), Borges de Medeiros governou o Rio Grande por 25 anos. A sua longa administração foi marcada, absolutamente, pela austeridade financeira sem precedentes nem sucessores à altura, e isto era reconhecido até mesmo pelos seus mais férreos opositores. A lição da continuidade administrativa seria aprendida e valorizada por Getúlio Vargas.
MUNICIPALISMO CASTILHISTA
No capítulo VI sobre a decretação das leis, o Art. 32º estabelece um curioso e, talvez, paradoxal mecanismo de democracia participativa mediante a ouvidoria municipal. Paradoxal porque para o castilhismo, ao gosto positivista, pouco ou nada valia o conceito caro aos liberais de “representação” política da população; antes, deve o Estado impor de cima para baixo a instrução, condução emoralização da sociedade, por um líder dotado de “imaculada pureza de intenções” — algo que, junto com o sufrágio direto, legitima seu governo. Todavia, o contato imediato do Executivo com a população e com os intendentes da Presidência nas municipalidades era uma prática do agrado de Castilhos, pois seria uma forma de legitimação do aparelho governativo, mas com a vantagem de passar por cima do poder ordinário de representação democrática segundo a consagrada teoria liberal: o Legislativo. O Art. 32º dispõe que, antes da promulgação de uma lei qualquer, o presidente fará publicar com a maior amplitude o respectivo projeto acompanhado de uma detalhada exposição de motivos. O projeto será enviado diretamente aos intendentes municipais (prefeitos), que lhe darão a devida publicidade em seus municípios e, após um prazo de 3 meses, serão enviados ao presidente os projetos de emendas apresentadas por qualquer cidadão, ficando o presidente livre para acatá-las ou não.
É difícil contabilizar, por causa do cenário caótico e instável do estado após a eleição de Castilhos, quais foram os efeitos concretos de tais disposições legais. Sem dúvidas o contato de Castilhos com as Câmaras Municipais era forte e coordenado, mas para a maioria dos estudiosos, as fraudes eleitorais do período borgista dificultam a credibilidade na crença na democracia direta ou participativa por parte da Carta Castilhista. De uma perspectiva meramente legal, porém, está comprovado a consagração de alguma espécie de municipalismo, ainda que mínimo.
Outro aspecto interessante é que, antes da promulgação da Constituição, a comissão formada para oferecer um parecer sobre a mesma propôs que os administradores municipais fossem nomeados pelo presidente. Contudo, Castilhos determinou sua eleição direta. Provavelmente, para Castilhos, o governo autoritário não dispensa o apoio das municipalidades ou autoridades locais.
O ESVAZIAMENTO DO LEGISLATIVO
Antes de detalharmos o papel da Assembleia dos Representantes, uma vez que esta era colocada a parte do processo legislativo, cumpre esclarecermos umaquestão: se o Executivo legislador (a “ditadura republicana”, de acordo com a gramática positivista), tem origem ou não nas ideias políticas de Augusto Comte. Ao que parece, o francês de fato postulou a “ditadura republicana” como panaceia para momentos de grave crise institucional e social. Em tais cenários, como as revoluções, a sociedade não pode ficar à mercê das discussões e disputas das assembleias legislativas: precisa de um ditador, um líder que tome decisões “por fora” do sistema a fim de organizar novamente a estrutura social. Ocorre, em suma, uma concentração extraordinária de poderes temporais nas mãos do ditador quando os “poderes espirituais” da sociedade enfrentam revezes.
Mas qual era a crise pela qual passava o Brasil, na visão de Castilhos? O próprio sistema parlamentar do Segundo Reinado. Para ele, o parlamentarismo era liberal, artificial e sedicioso; responsável por um jogo de transições de caráter meramente personalista, de tal modo que uma república parlamentarista seria “substancialmente idêntica ao monarquismo”. Em suma, estabelecia o conflito como regra na vida parlamentar, dando lugar a disputas egoístas de facções, em debates que ofuscavam as reais capacidades do homem douto e sábio se este não fosse bom na arte tribunícia: a retórica. Tal repertório de sabor socrático-platônico esclarece como Castilhos enxergava o Império do Brasil: como um gigante inepto para tomar decisões acertadas e necessárias de forma rápida e técnica, como a premente questão da escravidão dos negros. Todavia, retomando o ponto anterior, o Executivo legislador e a Assembleia com funções exclusivamente orçamentárias parecem ser, para Comte, somente um remédio emergencial e transitório para momentos sensíveis e não um receituário político para tempos de relativa estabilidade, como parecia ser, pelo menos potencialmente, o cenário de frescor político após a Proclamação da República e a troca de sistema de governo a nível federal. Segundo Francisco Rogério Madeira Pinto, para Comte, em situações de normalidade, a Assembleia deveria ser um órgão independente, estruturado por eleições indiretas e representado por estratos corporativos da sociedade. Ao que parece, Castilhos passou longe de fazer uma transposição mecânica e automática da filosofia comtiana, mas a interpretou à sua maneira, elaborando uma Carta que consagrou a ditadura republicana no altar da normalidade constitucional, numperíodo em que a monarquia já havia caído e uma nova fase política se arvorava.
Dito isso, a Assembleia dos Representantes, de acordo com a seção 2ª da Constituição, reunia-se ordinariamente todos os anos no dia 20 de setembro (dia da Revolução Farroupilha) e funcionava por 2 meses. O primeiro mês era dedicado à votação da receita e despesa para o ano seguinte, e o segundo mês ao exame das despesas do ano anterior. A Assembleia era composta por 48 membros eleitos por sufrágio direto e não podia ser expandida, somente diminuída.
Como pode ser notado, e conforme já aludimos anteriormente, a Assembleia era incumbida de funções exclusivamente orçamentárias. O que foi descrito até aqui parece induzir o leitor a achar que tal coisa seria um rebaixamento, uma humilhação; todavia, apresentarei um novo ponto de vista para jogar mais um pouco de luz a esta situação: como afirma Ricardo Vélez Rodríguez, para Comte, a composição do orçamento é de importância capital para os Estados e tem prioridade até mesmo sobre a organização ou divisão dos poderes. O endividamento do governo, para o castilhismo-borgismo, era a maior das blasfêmias, e a austeridade máxima era o preâmbulo do catecismo político. Conta-se que Borges de Medeiros exigia até mesmo a contabilidade da quantidade de lápis utilizados nos escritórios das pastas do governo, e a austeridade marcou sua própria vida pessoal, com sua esposa tendo sido obrigada a costurar para fora para completar a renda da família. Logo, tendo as finanças um tópico de importância máxima, uma Assembleia empossada com esta única obrigação teria, na verdade, um poder relativamente alto nas mãos; e, de acordo com a Carta, um dos únicos entraves reais ao poder do Presidente do Estado era a possibilidade de ser processado em virtude do mal uso das contas públicas, sendo competência dos membros da Assembleia dos Representantes dirimir tais questões (Art. 46º, § 7). Por fim, sobre as demais competências da Assembleia expostos nos parágrafos do Art. 46º, constam: criar, aumentar ou suprimir contribuições, taxas ou impostos; autorizar o presidente a contrair empréstimos ou outras operações de crédito; votar todos os meios indispensáveis à manutenção dos serviços de utilidade pública, sem interferir em sua execução; determinar a mudança temporária da capital; fazer a apuração dos votos para a Presidência, entre outras competências.Sobre a Magistratura, não creio que mereça uma avaliação extremamente depurada. Funcionava mediante nomeação dos desembargadores pelo presidente, e levava à fruição questões jurisdicionais ordinárias estabelecidas nos limites dos artigos anteriores, da Presidência e da Assembleia. Cabe notar que, no Rio Grande do Sul borgista, ser juiz de comarca era o primeiro degrau do cursus honorum do serviço público. Getúlio Vargas, antes de tornar-se Presidente do Estado em 1928 foi deputado federal; e, antes disso, foi deputado estadual; e, antes de tudo isso, foi juiz.
O CASTILHISMO: PRÓCER DOS DIREITOS TRABALHISTAS
Um fato: não se pode falar em “direito do trabalho” enquanto num país que ainda tolera em seu seio o trabalho forçado. A luta pela abolição da escravatura foi, certamente, a primeira luta trabalhista do Brasil — uma luta sangrenta que coligou pessoas das mais diversas ideologias, mas o Apostolado Positivista e os positivistas-castilhistas gaúchos merecem um lugar de destaque, posto que foram alguns dos únicos abolicionistas extremamente radicais no Brasil, indispostos a quaisquer concessões. Exigiam, junto da imediata libertação dos escravos, a ausência de indenização aos antigos proprietários e uma justa reparação dos negros libertos, na forma de proteções legais e garantias. Haviam, de fato, muitos republicanos abolicionistas, mas destes, vasta parte defendia a indenização, e/ou pouco caso faziam da necessidade de direitos e amparo ativo a esse estrato social. Já Júlio de Castilhos, segundo Ana Maria Machado da Costa, “mostra que a libertação dos escravos é apenas o primeiro passo de uma equação complexa visando ao fim da exploração do trabalho. Reconhecendo que não basta libertá-los, advoga que neste processo os libertos sejam protegidos. Sem garantias, os libertos (…) apenas trocariam de feitor. Ao invés das senzalas, estariam presos às amarras de uma indústria distante de sua destinação social”.
Quais passos a Constituição Castilhista tomou para concretizar o entendimento de seu autor? Em seu Art. 74°, lê-se:“Art. 74° — Ficam suprimidas quaisquer distinções entre os funcionários públicos de quadro e os simples jornaleiros, estendendo-se a estes as vantagens que gozarem aqueles”.
Os “simples jornaleiros” eram trabalhadores que prestavam serviços braçais ao Estado (dentre eles, muitos eram ex-escravos), que na Constituição Federal de 1891 seus serviços e pagamentos eram contabilizados como parte do gasto material do Estado (!). Eram, assim, desumanizados e, portanto, excluídos de qualquer garantia legal.
A Carta de 14 julho, ao equalizar os “jornaleiros” aos demais funcionários de quadro, lhes estendia alguns substanciais direitos, ainda que poucos, mas que foram sendo paulatinamente estendidos no mandato de Borges de Medeiros. Dentre os quais, direito a férias de 30 dias, aposentadoria por invalidez e auxílio funeral. Isso era ausente em outros estados da Federação na mesma época. Segundo Rocha:
“Regulando questões centrais do Direito do Trabalho como duração da jornada, repousos e critérios para o pagamento de salários dos operários que, direta ou indiretamente, prestavam seus serviços ao Estado, cerca de uma década da abolição da escravidão, a administração de Castilhos o fez de uma forma altamente afinada aos preceitos que orientam ainda hoje o moderno Direito do Trabalho. Em alguns casos, inclusive, a solução então adotada parece mais eficaz que a atual na proteção do hipossuficiente”.
Não deixemos de lembrar que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) foi implementada a nível nacional por Getúlio Vargas, talvez o primeiro homem a autodeclarar-se “castilhista” ao fundar, em 1907 (junto a outros jovens do PRR) o Clube Acadêmico Castilhista para defender a chapa de Borges de Medeiros à reeleição. Os laços de Vargas (e sua família) com Castilhos e, depois, com Borges, eram muito estreitos. Getúlio foi membro orgulhoso do PRR em sua juventude política, e certamente os ideias que o levaram a promulgar a CLT e demais direitos trabalhistas foram inspirados, diretamente e absolutamente, pela Constituição Castilhista e pela administração pragmática de Borges de Medeiros em mais de duas décadas à frente do Palácio Piratini — e não pelo fascismo italiano. Já em 1917, com Vargas assistindo a tudo, Borges senta paranegociar com grevistas em Porto Alegre, faz-lhes 3 promessas e, de acordo com Lira Neto, as cumpre todas:
“Em primeiro lugar, Borges garantiu que a temida Brigada Militar não iria intervir contra a paralisação, desde que os grevistas gaúchos mantivessem a ordem. Em segundo, afirmou que, embora não pudesse obrigar os empresários a aumentar o salário dos seus empregados, o governo baixaria um decreto elevando o vencimento dos operários a serviço do estado, a fim de que a medida servisse de exemplo pedagógico aos demais patrões. Por último, Borges disse que interviria no mercado e proibiria a exportação de bens de primeira necessidade, como arroz, feijão, batata, banhas e farinhas, até que os preços voltassem a um patamar aceitável”. O borgismo nutria, de fato, certa antipatia pela intervenção direta do Estado na forma de direitos trabalhistas, pois isso estabelecia uma intervenção nos direitos particulares e civis que estariam, na concepção positivista, fora da alçada do Estado (que detém o poder temporal), que estaria intervindo no poder espiritual (liberdade de ação e pensamento). Contudo, a necessidade concreta levou a Borges a tomar ações em prol da classe operária, e certamente Getúlio Vargas aprendeu a lição: é dever do Estado intervir, estabelecendo garantias claramente delimitadas em prol da classe operária, tanto para sua proteção, como para a garantia da Ordem.
Portanto, se devemos agradecer a alguma corrente ideológica ou personagem histórico pela moderna legislação do trabalho e da previdência (tão atacadas nos últimos 30 anos), devemos agradecer, para além de Vargas e do trabalhismo, a Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros, toda a “geração de 1907” do Clube Acadêmico e, no plano das evocações políticas, o castilhismo.
CONCLUSÃO
A Constituição Política do Estado do Rio Grande do Sul de 14 de julho de 1891 é a primeira formalização constitucional do presidencialismo positivista, que gerou no estado gaúcho um clima político de respeito institucional, austeridade, seriedade e respeito pela coisa pública ao ponto de ser, sem sombra de dúvidas, a escola que moldou o pensamento de próceres do trabalhismo brasileiro. Sem querer fazer vista grossa para os males, como o uso violento da Brigada Militar em muitas instâncias e as adulterações das contagens de votos, é necessárioque se reconheça o importante papel da tradição castilhista-borgista, ao mesmo tempo donatária (da tradição pombalina e da filosofia positivista) e doadora de uma doutrina própria, firmemente enraizada nas necessidades particulares do Rio Grande do Sul.
A Carta, de sabor antiliberal, é sui generis em muitos aspectos, como seu Art. 6°, que repudia a tripartição dos poderes e submete à Presidência do Estado (dotada de funções legislativas) os órgãos da Assembleia e da Magistratura, cristalizando sobre bases legais muito sólidas e bem construídas a ditadura republicana como regime ideal, superando o “cesarismo” que surge como válvula de escape somente para tempos de crise.
Paradoxalmente, também institui mecanismos de “democracia direta” e ouvidoria municipal, demonstrando o repúdio de Castilhos pela democracia representativa e pelo parlamentarismo, ambos modelos já suficientemente consolidados no período monárquico, e um aceno, ainda que sutil, ao contato direto do Chefe do Executivo com a população: uma forma de democracia certamente conhecida pelos povos latino-americanos.
Por fim, o Estado ideal castilhista é, como se pode notar, o Estado paternal, que age de cima para baixo. É o Estado moralizador, que se presta à tutela da classe proletária e das classes empresariais visando a integração social e o progresso da Ordem. Alguns exemplos da moralização empreendida pelo Rio Grande do Sul castilhista e nutrida pelo ideário da Carta podem ser a legislação eleitoral republicana e o primeiro sufrágio direto para governador estadual/provincial no Rio Grande, a legislação trabalhista, a legislação para instrução pública do Estado, a legislação para higiene, as legislações para obras públicas, a abolição dos privilégios de títulos e diplomas, a exclusividade do casamento monogâmico, o culto dos mortos, o ensino leigo, a abolição das loterias e jogos de azar, a liberdade de profissão e indústria, a abolição do anonimato, etc. Infelizmente, não foi possível falar sobre todos esses itens. Este Estado moralizador não pode funcionar sem o líder virtuoso, pois a República é o regime da virtude. A virtude do líder é um componente legitimador de seu governo, contudo, não é sua base. Provamos que a Constituição de 14 de julho busca fundamentar sobre bases legais sólidas uma radical tentativa de construção de um “Estado ideal”, longe da (falsa?) modéstiada doutrina liberal de querer sempre realizar o “possível” dentro dos moldes representativos.
O castilhismo é, ou pode ser considerado, paradoxalmente, o mais próximo que o Brasil já chegou do platonismo político. O Patriarca Gaúcho, o “Chefe” Júlio de Castilhos, sonhou, ainda que à maneira cientificista e antimetafísica da doutrina positiva, com a República do Rei-Filósofo e com o mando exclusivo dos sábios e dos capazes.
Idealismo encontra o realismo na gradativa realização histórica do castilhismo; todavia, não para a redução ao liberalismo, mas para a ereção da estátua de mármore mais sólida do ideário político nacional, a ideologia brasileira por excelência: o trabalhismo.
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FONTES E BIBLIOGRAFIA
Como fontes para o presente texto utilizei os artigos A Constituição castilhista de 1891 e a fundação do constitucionalismo autoritário republicano de Francisco Rogério Madeira Pinto (Revista Brasileira de Estudos Políticos, n. 118, jan./jun. 2019); O Apostolado Positivista e o castilhismo na construção do direito do trabalho no Brasil de Ana Maria Machado da Costa (PUCRS, 2006) e o primeiro volume de Getúlio de Lira Neto. Também, obviamente, o jornal A Federação e a própria Constituição Política do Estado do Rio Grande do Sul de 14 de julho de 1891, disponíveis online.
Por João Pianezzola