Ciro Gomes e Tasso Jereissati: Os Bad Boys do Ceará

Ciro Gomes e Tasso Jereissati Os Bad Boys do Ceará
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O podcast “Ciro Games” tem servido para o presidenciável do PDT apresentar suas ideias, comentar assuntos da política nacional, criticar adversários, mas também para produzir encontros que são verdadeiros documentos históricos sobre o Brasil. Esse foi o caso da conversa entre Ciro Gomes e Tasso Jereissati, os dois ex-governadores que revolucionaram o Ceará e transformaram o pobre estado do nordeste brasileiro em um paradigma de gestão pública desenvolvimentista social e economicamente, bem como democrática na governança política contra o coronelismo oligárquico do interior do Brasil.

A parceria entre Tasso e Ciro é cheia de idas e vindas com uma divergência central que foi a permanência do primeiro no PSDB e o rompimento do segundo com os tucanos após a chegada ao poder de Fernando Henrique Cardoso. A dupla de cearenses resistia à hegemonia dos paulistas do PSDB, e possuíam um projeto nacional alternativo ao neoliberalismo rentista impulsionado pelo mercado financeiro sediado em São Paulo que elegeu o “Príncipe da Sociologia” da USP como seu preposto no Palácio do Planalto.

A origem de Tasso é parecida com a de Ciro. Os dois são de famílias que ascenderam socialmente pelo trabalho e pela vocação política de transformação social e não pela herança de terras como era comum entre as elites rurais da República Velha marcada pelo coronelismo. O pai de Ciro era um funcionário público que mudou-se para o interior de São Paulo, e posteriormente, volta ao Ceará para ser prefeito de Sobral, berço político da família. Já o pai de Tasso, Carlos Jereissati, era filho de um imigrante libanês, que tornou-se um empresário de sucesso no comércio têxtil e de bacalhau.

Na década de 1950, Carlos Jereissati ingressa no PTB para apoiar Getúlio Vargas no Ceará contra a oposição de Armando Falcão que era aliado de Carlos Lacerda. Rapidamente o pai de Tasso torna-se um dos líderes do trabalhismo no Congresso Nacional e atuou em defesa de pautas importantes como a normalização das relações diplomáticas com a União Soviética, do plebiscito que devolveu os poderes presidenciais para João Goulart, das reformas de base, do monopólio estatal sobre o petróleo, energia elétrica, telecomunicações e transportes. Na eleição de 1962, Jereissati articula a candidatura trabalhista de Adail Barreto ao governo do Ceará, mas termina derrotado pela aliança conservadora do PSD de Armando Falcão para eleger a candidatura coronelista de Virgílio Távora pela UDN. Ainda assim o pai de Tasso consegue se eleger senador pelo PTB, mas morre pouco depois de assumir o mandato em 1963. Nessa época, Tasso ainda era menor de idade, e sua militância política inspirada pelo pai viria somente na década de 1970 durante a crise da Ditadura Militar quando presidiu o Centro Industrial do Ceará (CIC) que reunia setores econômicos e sociais em prol do desenvolvimento regional do nordeste e da redemocratização do país. Antes disso, Tasso tornou-se um dos empresários mais jovens e bem sucedidos do Brasil ao inaugurar o primeiro shopping center do Ceará em 1974, seguido da inauguração de outro grande shopping em 1982.

Em 1986, Tasso Jereissati é eleito governador do Ceará com apenas 38 anos de idade pelo MDB contra Adauto Bezerra, membro de tradicional família oligárquica cearense, que já havia sido governador biônico nomeado pela Ditadura Militar pela ex-Arena e então filiado ao recém-fundado PFL. A campanha de Tasso tinha como mote a ruptura com o clientelismo do coronelismo ainda hegemônico na época e consolidou sua gestão como “Governo das Mudanças”. Dentre outras conquistas que alçaram Tasso a um político prodigioso na época, aquela gestão recebeu um prêmio da UNICEF pela inédita redução da mortalidade infantil que foi um recorde mundial, e também foi reconhecido pela ONU como estado brasileiro que mais cresceu no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).

No embalo da redemocratização, Tasso participa da fundação do Partido da Socialdemocracia Brasileira (PSDB) em 1988 como uma dissidência mais moderada de centro-esquerda do MDB após a impossibilidade de união de todos os setores de esquerda dentro do PT fundado em 1980 que atuava de forma mais sectária naquela época. Aliás, a proximidade entre PT e PSDB foi tanta que em várias eleições regionais houve aliança entre os dois partidos, sendo até cogitado uma aliança nacional na eleição de 1994 após a fragmentação do campo da esquerda em 1989. Em 1990, Ciro Gomes foi eleito o primeiro governador da história do PSDB em primeiro turno devido ao sucesso da parceria entre ele como prefeito da capital Fortaleza e Tasso como governador.

Fundado sob hegemonia dos paulistas Franco Montoro, Mario Covas e Fernando Henrique Cardoso, o PSDB passa a ser presidido pelo cearense Tasso Jereissati no período de 1991 a 1994, enquanto Ciro Gomes era governador, cargo que deixou para se tornar Ministro da Fazenda e concluir a implementação do Plano Real durante o governo de Itamar Franco. Era o auge dos tucanos do Ceará, e Ciro defendia que o candidato a presidente pelo PSDB deveria ser Tasso. Na fila de quadros com projeção nacional e experiência administrativa, somente o então senador Mario Covas poderia invocar precedência sobre Tasso, tendo em vista que já havia sido prefeito da maior cidade do país e foi o candidato a presidente do PSDB na eleição anterior. Porém, Covas já havia manifestado sua opção de disputar o governo estadual de São Paulo na eleição de 1994, portanto, seria natural que fosse a vez do ex-governador do Ceará que foi premiado pela ONU pelo sucesso de sua gestão e que presidia o partido naquele momento.

Ocorre que após o impeachment de Fernando Collor, o PSDB apoiou a posse de Itamar Franco e ocupou a equipe econômica do novo governo. Nesse momento, é importante lembrar que até o Plano Real, o então deputado federal José Serra vinha em ascensão dentro do PSDB enquanto FHC estava em decadência. Em 1985, FHC concorreu à prefeitura de São Paulo e foi derrotado pelo ex-presidente Jânio Quadros, e Serra foi o tucano escolhido para a disputa municipal seguinte em 1988. Portanto, entre os paulistas, Serra é que era o político ascendente natural para assumir o comando da equipe econômica do PSDB no governo federal, inclusive por já ser um respeitado economista naquela época.

Mas Serra optou por continuar deputado federal e não assumir o risco de enfrentar a hiperinflação em um governo frágil politicamente. Foi a coragem de Tasso como presidente do PSDB, e Ciro como primeiro governador da história do partido, que bancaram a entrada dos tucanos para conduzir a política econômica do Brasil em um momento tão turbulento marcado pela memória recente da Ditadura. Enquanto Serra criticava e previa o fracasso do Plano Real, inclusive sabotando o plano no Congresso, foi FHC que aproveitou a oportunidade para se reabilitar assumindo o cargo de Ministro da Fazenda e acabou capitalizando o sucesso da reforma monetária, que efetivamente acabou com a hiperinflação brasileira.

No entanto, os economistas envolvidos na formulação do Plano Real, dentre outros, Pérsio Arida, André Lara Resende, Francisco Lopes, Gustavo Franco, Pedro Malan, Edmar Bacha e Winston Fritsch, não tinham relação nenhuma com o PSDB paulista. Pelo contrário, a maioria deles era do Rio de Janeiro, principalmente ligados à PUC-Rio. O PSDB nacionalmente presidido por Tasso é que bancou essa equipe tecnocrática de acadêmicos que estavam na fronteira do debate teórico internacional sobre o intenso processo inflacionário pelo qual passavam todos os países periféricos após a crise dos preços do petróleo, o fim do padrão ouro-dólar, e o choque de juros de Paul Volcker no banco central dos EUA. A resolução da hiperinflação no Brasil exigiu tanto uma criatividade teórica para compreender aquele momento de transição da economia política mundial com a crise do fordismo e do nacional-desenvolvimentismo combinado com as particularidades da inércia inflacionária brasileira, como também habilidade política para renegociar as dívidas em dólar no sentido de estabilizar as moedas periféricas. Nada disso saiu da cabeça de FHC, mas foi ele que aproveitou o timing de incertezas para agarrar a condução política da equipe econômica e surfar na onda da recuperação do poder de compra dos brasileiros com a estabilização monetária.

Diante do sucesso do Plano Real, FHC exigiu que fosse ele o candidato a presidente do PSDB. Para indignação de Ciro, Tasso não quis brigar com o empoderado Ministro da Fazenda apoiado pela burguesia financeira de São Paulo e aceitou voltar a disputar o governo do Ceará. Portanto, 1995 é um ano crucial para Tasso e Ciro, pois marca a derrota do grupo cearense na disputa interna pelos rumos da “socialdemocracia brasileira”, jogando-os para a posição de rebeldes dentro do PSDB. Naquele ano também estreou o filme de comédia policial Bad Boys sobre os também rebeldes investigadores Marcus Burnett (Martin Lawrence) e Mike Lowrey (Will Smith), que enfrentam o crime organizado sem se submeter ao burocratismo conservador de seus chefes. Tasso, porém, não tinha o mesmo ímpeto insubordinado do jovem Ciro, assim como o personagem de Martin Lawrence batia cabeça com seu ousado parceiro interpretado por Will Smith. Apesar das divergências, tanto os fictícios policiais de Miami como os Bad Boys do Ceará mantiveram ao longo dos anos (e sequências cinematográficas) uma forte camaradagem e identidade ética mesmo nos períodos de afastamento.

Ciro rompe com o PSDB justamente quando o partido chega ao poder por entender que FHC submeteu o partido e o governo federal aos interesses do rentismo do mercado financeiro em ascensão no Brasil impulsionado pela financeirização da economia mundial sob hegemonia do neoliberalismo dos EUA após o fim da União Soviética. Ele vai para os EUA passar uma temporada de estudos em Harvard com Mangabeira Unger e escrever um pioneiro livro contra a avassaladora onda neoliberal que se instalava no mundo inteiro, e Tasso volta à Fortaleza para governar o Ceará por mais 8 anos e consolidar as conquistas iniciadas por ele e seu talentoso sucessor. Ciro volta dos EUA e se filia ao ex-Partidão, o então PPS e atual Cidadania presidido por Roberto Freire, e disputa as eleições de 1998 contra FHC e Lula.

Em 2002, na sucessão de FHC, Tasso novamente se colocou como pré-candidato do PSDB, e teria tido o apoio de Ciro, porém, o então presidente FHC jogou todo o peso do governo federal a favor do paulista José Serra que havia sido ministro do Planejamento e também da Saúde. Novamente, a oligarquia financeira paulista que hegemonizava o PSDB venceu os Bad Boys do Ceará. Assim, Ciro é que teve o apoio velado de Tasso no Ceará em seu segundo pleito presidencial, dessa vez com apoio do PDT em uma Frente Trabalhista também com o atual PTB tirado de Leonel Brizola por Golbery do Couto e Silva. Além do conterrâneo e então governador cearense, Ciro contou com outros apoios de descontentes internos do governo tucano de FHC, como o então presidente da Câmara dos Deputados, Aécio Neves, que seria eleito governador de Minas Gerais, bem como de importantes aliados do então PFL (posteriormente DEM e atual União Brasil) também acabaram se afastando do péssimo governo de FHC que entregou o cargo com baixo crescimento econômico e altas taxas de desemprego e pobreza, a exemplo do senador por Santa Catarina, Jorge Bornhausen, e o senador Antônio Carlos Magalhães (ACM) da Bahia.

No entanto, se Ciro conseguiu rachar o campo governista e conservador atraindo lideranças importantes como Tasso, Aécio, Borhausen e ACM, por outro lado, a candidatura de Lula galvanizava o sentimento de oposição a FHC, e o restante da esquerda rachou com a candidatura de Anthony Garotinho pelo PSB. Garotinho havia sido eleito governador do Rio de Janeiro em 1998 pelo PDT, mas no meio do governo rompeu com Brizola na disputa pelo controle do partido. Caso tivesse havido unidade entre esses setores não-petistas da esquerda e os setores não-paulistas hegemonizados pelo rentismo do campo mais conservador, o futuro do Brasil poderia ter sido diferente. O resto da história já conhecemos. Lula deu continuidade à política econômica neoliberal de FHC que acelerou a desindustrialização do Brasil e se consolidou com o aumento de políticas sociais compensatórias do Consenso de Washington impulsionadas pelo boom de commodities.

De resto, a história de Ciro Gomes já é mais bem conhecida devido a pujança de seu currículo político tão bem divulgado à exaustão por sua apaixonada militância. Para mais detalhes, recomendo a leitura de outros textos que tratam da biografia de Ciro confrontada com o mau uso dos conceitos da ciência política como populismo e o preconceito contra nordestinos nas acusações despolitizadas sobre coronelismo.

A essa altura, me interessava mais elucidar a trajetória de Tasso Jereissati como exemplo de uma figura empresarial e política herdeira do trabalhismo anti-oligárquico e forjada durante a transição pós-Ditadura na utopia de um Brasil desenvolvido, soberano e democrático, que, assim como nosso país, teve sua “construção interrompida” na expressão de Celso Furtado. Vale a pena assistir a conversa de Tasso e Ciro sobre o passado, mas também sobre o futuro. O Brasil precisa dos Bad Boys do Ceará.

  1. Tasso Jereissati pós trabalhista? É sério mesmo que eu estou tendo de ler isso. Vá lá que o meu nobre articulista queira ser Cirete ou encontrar algum nexo ou construção de alguma coisa como um lastro intelectual e ideológico de Ciro Gomes no trabalhismo, mas vamos maneirar no contorcionismo circense retórico e intelectual aqui.

    Ciro Gomes nunca foi um trabalhista: ele é um aventureiro na política, no sentido de que tem suas ambições e seus valores e transita no meio político com base nos valores dele evitando cair em contradições ou de se perder no caminho. Ele é mesmo o que ele sempre disse ser: um social democrata ou social liberal com tendências a centro esquerda o que nada tem a ver com as tradições militares, positivistas, católicas e castilhistas que fundam, são e deveriam ser e andam bem esquecidas pelo PDT e quem se considera trabalhista.

    A ascensão dele e de Tasso ao poder no Ceará e o enfrentamento das velhas oligarquias do Ceará (Távora, Acciolly, Montenegro e tantas outras famílias mais que não sei e não me lembro) são muito mais uma briga e uma cisânea de 2 perfis diferentes de classes dominantes da Terra da Luz, mas sem se desgarrar desse ideal de democracia liberal. Ponto. Nunca ouvi dizer de Tasso Jereissati ter qualquer simpatia ou proximidade com a cosmovisão política e social de Brizola ou Júlio de Castilhos. E ainda é um tucano histórico, coisa também da qual nunca se afastou, de sua sonhada social democracia.

  2. A quais tradições específicas você se refere, dentro de cada um desses conjuntos que estão longe de ser homogêneos e inteiriços:
    Militarismo/Positivismo/Catolicismo
    & Castilhismo – ao apresentar em um bloco parece indicar um dado viés “uspiano” – sempre focando em Castilhos apenas pelo viés de apoiador de regimes fortes e centralizados para dizermos muito pouco e fecharmos os olhos para várias “di 66 t9” na lida com a oposição (dentro da sua própria unidade da Federação!). E o “catolicismo” parece mais o do Concílio de Trento que o da Rerum Novarum e outras.

    Mas “pergunto” apenas como introdução, sem querer desenrolar o exame desses aspectos, pois há gente bem mais competente para isso… Portanto, sem esperar qualquer detalhamento para supor alguma diferença da “versão oficial” ou, melhor, “hegemônica” sobre os 4 apoios do Trabalhismo, apenas gostaria de saber se o comentarista se enxerga a si mesmo como trabalhista para ter uma melhor noção da crítica ao CG e suas perambulações partidárias, que vejo mais como um nômade forçado, que as de um aventureiro (buscando aí um sentido “positivo” que vislumbro no seu texto – a não ser que por “aventura” em nome da própria coerência interna, haja um gosto peculiar pelo desterro…

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