Pequenas reflexões sobre o filme “Mulher Maravilha”

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Lançado no início do mês, (01/06/2017) o filme “Mulher Maravilha”, dirigido por Patty Jenkins e protagonizado pela atriz Gal Gadot, começando por sua composição técnica e passando por seu enredo, traz algo raro para os filmes de ação baseados em quadrinhos (HQ’s): a centralidade na história de uma mulher. A fórmula das aventuras que narram heróis lutando para salvar o mundo é antiga, no entanto, os personagens principais nunca são mulheres.

Ainda, a direção de filmes com orçamentos milionários, como é o caso presente (US$ 100 milhões, aproximadamente R$ 358 milhões), são predominantemente exercidas por homens. No ano de 2016, as mulheres representaram 7% de todos os diretores dos 250 filmes de maior bilheteria nos Estados Unidos. A junção destas características ao enorme sucesso que o filme vem tendo desde sua estreia deverá abrir precedentes para a maior produção de filmes de super-heroínas.

Confirmando a falta de obras cinematográficas neste estilo, a recepção pelas espectadoras foi excelente, diversas fotos de meninas fantasiadas com a personagem estão sendo divulgadas na internet, demonstrando a enorme aprovação do público para com o filme, principalmente as crianças. Adentrando às questões de representatividade e considerando a construção social do papel da mulher em nossa sociedade, importante fazer algumas considerações acerca da importância do filme para a quebra de estereótipos machistas.

A imagem das mulheres ainda é comumente atrelada a ideias de fragilidade e docilidade, bem como ao ideal da maternidade e casamento como únicos futuros possíveis e desejados para nós. Tal imagem é diariamente retratada nos filmes, programas televisivos e afins, reforçando o imaginário social de que as mulheres são inferiores aos homens e devem desempenhar um papel específico na sociedade, qual seja o de reprodução e manutenção da esfera doméstica da vida.

Mesmo com o crescente número de mulheres que trabalham fora de casa, a concepção de que os afazeres domésticos são função exclusiva destas faz com que estas desenvolvam jornadas duplas e/ou triplas de trabalho, trabalham fora de casa[1]. exercendo função remunerada, cuidam das tarefas da casa e ainda criam os filhos e filhas.

Assim, ainda há muito o que se conquistar na luta por igualdade entre mulheres e homens, luta esta que vem sendo travada pelo movimento feminista há décadas.

Neste sentido, uma produção hollywoodiana que narra uma mulher guerreira salvando o mundo é muito importante para a desconstrução da imagem da mulher subalterna e frágil que precisa ser socorrida por um homem, que além de salvá-la, também irá cuidar do mundo.

No filme, a fórmula tradicional é subvertida, a mulher provinda de uma linhagem de guerreiras sai de sua pacata ilha para salvar o caótico “mundo dos homens”, mundo este que está em plena guerra. Com muita inteligência, coragem e força ela consegue reestabelecer a paz no planeta.

Essa representação de uma mulher forte, super-heroína é essencial para as meninas que foram assistir ao filme. A possibilidade de se espelhar em uma “mulher maravilha”, saindo do lugar comum das princesas fofas abre uma infinidade de questionamentos sobre os estereótipos que estas, em tese, deveriam seguir.

Deste modo, considerando o alcance mundial que a produção tem, é necessário ressaltar a sua importância para transformações de estereótipos de gênero, ainda que de forma limitada, conforme será abordado a seguir.

 

Ausências e silenciamentos

Apesar dos pontos que foram levantados como positivos, não se pode deixar passar o fato de que o filme aborda a força da mulher e sua emancipação de forma liberal, como uma ação que pode ocorrer de maneira individual partindo apenas da “força de vontade” da própria. No entanto, a emancipação das mulheres não diz respeito apenas a projetos individuais e a questões pessoais. Nesse sentido, importante situar o feminismo como movimento social plural que visa a construção de uma sociedade igualitária, com o fim da desigualdade entre os gêneros, ou seja, os objetivos são de ordem coletiva e suscitam também o questionamento de outras formas de opressão existentes dentro de nossa sociedade.

Desta forma, para falarmos da personagem da mulher maravilha e de sua importância para a quebra da imagem das mulheres “perfeitas”, precisamos também falar que as mulheres são um grupo social diverso, no qual mulheres possuem identidades sociais que podem distanciá-las ou aproximá-las de vivências similares. Nesse sentido, podemos pensar na questão da raça, classe social, orientação sexual e identidade de gênero.

A perspectiva da figura da mulher, portanto, deve ser ampliada, considerando a multiplicidade do grupo social e das questões que podem ou não abarcar determinadas mulheres. Assim, reconhecer o papel que o filme “Mulher Maravilha” possui como influenciador às mulheres que o assistem é um ato importante, porém as críticas às suas ausências e silêncios também se fazem essencial.

Apesar do filme ser inovador por trazer como estrela uma mulher super-heroína, a imagem desta mulher ainda se enquadra em padrões hegemônicos. A personagem principal é uma mulher branca, magra, dentro dos padrões de beleza e que se relaciona com um homem (apenas com base no filme não é possível saber se ela é heterossexual ou bissexual).  Para exemplificar, a atriz que representa o papel principal é uma ex-modelo, ou seja, ainda que o filme coloque uma mulher para salvar o mundo, esta mulher deve se enquadrar nas características citadas acima, não podendo “qualquer uma” ser a heroína da vez.

Desta forma, é importante questionar por que o filme não traz personagens mulheres plurais e até mesmo por qual motivo a “Mulher Maravilha” não poderia ser uma mulher negra, lésbica, fora dos padrões de beleza. Essas ausências de representatividade, também devem ser apontadas para gerar debates que evidenciam que a categoria de mulheres é um espectro amplo, plural e não-estático, devendo, portanto ser retratado de diversas formas para dar conta de suas múltiplas vivências.

É inegável a importância do filme para milhares de mulheres que foram assisti-lo e se sentiram representadas, sentiram que poderiam ser protagonistas de suas próprias vidas, bem como realizar feitos grandiosos para o mundo. Esta conquista deve sim ser comemorada. No entanto, ainda deve-se questionar as ausências nas produções culturais hegemônicas, pois ainda há muito a ser descontruído no que diz respeito a estereótipos, estigmas sociais e a manutenção de opressões, que a indústria cultural vem, historicamente, perpetrando.

Assim, situar o filme “Mulher Maravilha” como uma produção cultural hegemônica é essencial para saber os limites de sua atuação e seus objetivos. De fato, o filme não possui a pretensão de destruir o patriarcado e estabelecer uma sociedade igualitária entre os gêneros, motivo pelo qual necessário apontar suas incoerências e não o colocar como uma produção que irá subverter todas as formas de opressão que recaem sobre as mulheres.  

Referências

Referências
1 Aqui necessário evidenciar que o racismo é um marcador social que influencia as experiências das mulheres negras, as quais, historicamente, trabalham fora de casa para fornecer o sustento de suas famílias. Ou seja, enquanto as mulheres brancas tiveram que lutar para poder trabalhar fora do lar, as mulheres negras já estavam batalhando na esfera pública há muito tempo.