Cidadão, não! Escravo contemporâneo, pior que o antigo e o moderno

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A falência do Brasil se enraíza na imponderável, triste e patética condição dos que pensam que são, mas não são nada, dos que pensam que têm, mas não têm nada. Situação bem pior dos que não têm e sabem que, realmente, não têm absolutamente nada, a não ser as exíguas forças de continuar seguindo em frente, um dia após o outro, sabe-se lá até quando.

Imponderável porque ela se manifesta nas sombras e nas luzes dos comportamentos e confundem, às vezes, na difícil condição de se definir como pessoa. E também por conta do enraizamento nos afetos desconexos, na falta de noção de alteridade, no individualismo excessivo como sinônimo de meritocracia. As pessoas perderam a noção em meio ao estrago do obscurantismo que tomou conta do país com o neoliberalismo e o ultraliberalismo.

Não à toa chegamos ao fundo do poço, essa escuridão atroz em que os flashes apontam não mais uma ou outra pessoa, sem teto, nas ruas, pedindo algo para comer, mas dezenas, famílias inteiras. A dificuldade, no caso dos que não têm noção, é porque as pessoas que pensam que são, mas não são, se acham “sujeitos” de alguma coisa. Já os que realmente não têm nada nem pensam o que seria ser sujeito de algo por conta de suas urgências de um dia atrás do outro.

Essas pessoas, como a mulher que humilhou o guarda municipal, com a “carteirada” da meritocracia, ofendendo-se pelo marido ter sido chamado de cidadão, não desconfiam um milésimo da realidade – qual seja, a do seu “assujeitamento” (Deleuze, Gattari, Foucault) como peça de uma engrenagem complexa, como suporte, como correia de transmissão – como nada existencial, enfim, na sua condição cinzenta e vazia à semelhança dos sonâmbulos do romance de Hermann Broch.

Na famosa trilogia, os personagens da história, que se desenrola na Prússia, durante a passagem do século XIX para o XX, são atormentados pela decadência de valores e da própria personalidade, como prenúncio das condições para advento do nazi-facismo. Sim, o Brasil foi tomado por sonâmbulos que não sabem, ou nunca souberam, o que é comunidade, país, nação, pátria. Os sonâmbulos de hoje não são esses maltrapilhos e esfomeados e sem ter onde morar. São os que foram engolfados pelos gadgats de sua ilusão de ser alguma coisa. Têm um diploma que caberia mais enfiado em outro lugar do que emoldurado naqueles quadros que emboloram seus sentidos.

Se engenheiro, médico, advogado, juiz, promotor, empresário, jornalista, qualquer um desses se acha mais do que cidadão é porque o cara não tem noção alguma do que seja coletividade, do que seja estado, instituição, cidade, país, democracia, capitalismo, enfim, esse lugar a que chegamos, não como fim da história, mas como processo em movimento, como luta de classes. Sim, o cerne é a percepção e a consciência de classe, essa é a questão principal. Só somos plenos e reais se conseguimos nos enxergar como classe social. Caso contrário, a viagem é apenas uma abstração que não leva a lugar algum.

Falando curto e grosso: é o que Jessé de Souza vem mostrando nos seus trabalhos dos últimos anos, sobre a indigência e cretinice da classe média – e, aqui, faço coro com Marilena Chauí, gostem ou não dela. Mas, a verdade é que talvez o pior estrato social seja essa turma de gente que pensa que é, mas não é, que pensa que tem, mas não tem, que pensa que exerce o poder, mas não tem a mínima ideia do que seja o exercício do poder. Pior de tudo: não sabendo nada, são pessoas utilizadas pelas elites corruptas da exploração, da rapina e da evasão de divisas para impedir ascensão dos mais pobres.

O episódio do guarda municipal humilhado pela suposta carteira do engenheiro me traz à memória, como oportuna, a representação gráfica da classe média, feita, certa vez, pelo cientista político argentino Marcelo Gullo, num guardanapo à mesa do restaurante, acompanhado do jornalista e doutor e ciência política Helid Raphael de Carvalho.

Em resumo, Gullo lembrou que a classe média é composta de vários segmentos, corroborando o que diz Jesse de Souza em seus trabalhos. Ele desenhou no papel um círculo, dividido ao meio, sendo a parte superior composta pela chamada classe média (ou poderia ser o próprio país) em seus diferentes estratos, e a inferior, compota pelos mais desfavorecidos.

O círculo é invadido por uma cunha, desfigurando-o na parte superior, que vai se abrindo aos poucos. A cunha representaria os valores da dominação imperialista, e sua abertura seria o grau dessa dominação sobre corações e mentes dos que estão em determinados estratos acima dos mais desfavorecidos. Estando acima, essa classe média acaba hegemonizando, como correia segura, a transmissão desses valores imperialistas.

Essa é, enfim, a nossa triste e patética classe média, a embalada com furor pelo lavajatismo, por exemplo, metida à revolucionária contra a corrupção, mas corrupta muitas vezes sem saber, estratificada em valores, funções e status, formada por engenheiros, médicos, professores, jornalistas, juízes, pequenos empresários e outros. Alguns destes se acham mais superiores que outros, dentro dessa mixórdia de ser classe média sem saber o que se realmente é, por diferentes questões de posição, poder, salário, oportunidades, formação.

Dentre outros trabalhos, Marcelo Gullo é autor de um livro com título bastante sugestivo: “A insubordinação fundadora” (2014), no qual traça uma breve história sobre como determinados países ficaram mais poderosos graças aos impedimentos impostos ao desenvolvimento de outros países. Linha convergente com o trabalho de Chang, intitulado “Chutando a escada”.

Mal comparando, é mais ou menos o papel desempenhado por determinados setores da nossa estratificada classe média no conjunto da sociedade brasileira. Mas, o “assujeitamento” a que me referi tem um componente mais sensível e, apesar de tão óbvio, talvez não seja percebido por essa classe média por estar muito próximo dos olhos, qual seja, sua condição de proletariado.

Proletariado não é só o conjunto de operários de fábrica da época de Marx, os operários que lutam contra uma burguesia. Apesar de ter mais recursos que os pobres, essa classe média, em sua grande maioria, vive de salário. Não é detentora dos meios de produção e, portanto, não tem toda influência que pensa ter sobre como a política deve se processar – diferentemente dos representantes da exploração, da rapina e da evasão de divisas, estes sim exercendo o poder econômico e político.

Assim, a tal classe média metida a “empoderada” contenta-se com “carteiradas” e fingimentos simbólicos, um dos quais, a ilusão de que democracia se pratica somente nas urnas de quatro em quatro anos. Ignora, enfim, que vive aquilo que Robert Castel chamou de “sociedade salarial”, na qual tanto o balconista de uma loja, o funcionário ou o gerente de um banco, um professor, um médico, ou um operário de fábrica, como também um engenheiro bem remunerado – todos podem, um dia, levar uma rasteira dos verdadeiros donos de suas vidas e ficar sem emprego.

A “sociedade salarial” consagrou a instituição dos escravos contemporâneos, supostamente livres e iguais aos seus proprietários, condição muito pior da dos escravos da Grécia antiga, dos servos medievais protegidos e dos que, submetidos ao massacre na idade moderna pela acumulação primitiva do capitalismo, pelo menos, mesmo na tragédia, tinham consciência de sua condição e de sua única forma de superação. Hoje, os contemporâneos agradecem por sua própria escravização e ainda por cima escravizam os mais fracos ou os que não querem ser escravizados.

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