‘Brasil, uma economia que não aprende’: notas críticas

“Brasil, uma economia que não aprende
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Por Ricardo Carlos Gaspar – O livro de Paulo Gala e André Roncaglia, “Brasil, uma economia que não aprende: novas perspectivas para entender nosso fracasso” (São Paulo, Edição do Autor, 2020), foi o 1ª colocado no XVII Prêmio Brasil de Economia, concurso anual realizado pelo Conselho Federal de Economia–COFECON. A relevância do tema e a qualidade intelectual dos autores, aliado à linguagem acessível, torna sua leitura exercício agradável e proveitoso.

A tese principal do ensaio postula a indústria como setor-chave para o desenvolvimento econômico. Este, por sua vez, está fundado em um regime de rendimentos crescentes e acumulação tecnológica, os quais só podem ser alcançados com capacidade produtiva apta a fomentar processos dinâmicos de ganhos de produtividade, complexidade econômica e inovação. Nas condições da contemporaneidade, tais atributos estão concentrados na indústria e nos serviços intensivos em conhecimento.

Tais premissas são irrefutáveis. Sobretudo no Brasil, vítima de políticas neoliberais que destroem o aparato produtivo acumulado no período desenvolvimentista de transformação estrutural de nossa economia, entre os anos 1930 e 1980. Efeitos que o atual governo criminoso só vem agravar. Sim, estamos na mesma trincheira. Contudo, algumas ressalvas se justificam, seja para apontar insuficiências da abordagem, seja para complementar a visão dos autores. Nos limites deste artigo despretensioso, destacamos brevemente os seguintes aspectos:

1. De princípio, cabe esclarecer que o título da obra conduz a uma expectativa que se frustra. Pouco de economia brasileira é apresentado. Das quase duzentas páginas de texto, somente dez são dedicadas ao Brasil e, mesmo assim, centradas na enumeração de casos de sucesso empresarial e na legislação dos genéricos. Os impasses que caracterizam o ajuste brasileiro aos imperativos da revolução tecnológica contemporânea passam ao largo. Bem como as razões da ausência de um plano estratégico apto a lidar eficazmente com os desafios do presente e do futuro. Ficamos sem saber os “porquês” de nosso fracasso.

2. Há uma ênfase excessiva e acrítica na qualidade das grandes corporações de corte transnacional. Seria útil alertar para o caráter não raro predatório – em termos sociais e ambientais – na prática histórica dessas empresas. Jamais com o intuito de demonizá-las, mas visando contribuir para o esforço internacional de regular sua atuação, inclusive no plano tributário, como disciplina necessária ao jogo especulativo das trocas e dos fluxos financeiros.

3. Essas mesmas empresas respondem a estratégias de poder, respaldadas por seus Estados nacionais. Esse vínculo político não fica claro no texto. Talvez aqui fosse pertinente abordar projetos alternativos e viáveis de desenvolvimento, sobretudo pensando-se na periferia e semiperiferia do sistema. Por mais difícil e longínquo que isso possa parecer na presente configuração da economia-mundo.

4. O desenvolvimento preconizado pelos autores, embora fundamentado na dimensão decisiva de processos de alavancagem econômica e transformação estrutural (pois é disso precisamente que se trata para os países retardatários) – isto é, o arcabouço produtivo-tecnológico -, não resgata de maneira adequada o desenvolvimentismo clássico, o qual tem como uma de suas premissas básicas a esfera histórico-estrutural e seu caráter mundial (desigual e combinado). Enfrentar os principais problemas de regiões ou países colocados nessa situação impõe contrapor-se a um estado de coisas prevalecente na economia-mundo capitalista, trazendo para o primeiro plano o caráter político (competição interestatal) do fenômeno. Por outro lado, os autores deixam de apontar as limitações do conceito e da prática do mesmo desenvolvimentismo clássico; ou seja, na visão de Chang (Hamlet without the Prince of Denmark…), as deficiências dessa abordagem no que diz respeito aos aspectos ambientais, tecnológicos, político-democráticos e humanos dos processos de mudança, que carecem de urgente atualização.

5. O raciocínio expresso no livro aceita situações de monopólio como um subproduto natural e desejável da complexificação econômica. O monopólio privado, conforme Braudel, é uma condição típica, que propriamente singulariza o capitalismo. Os ganhos monopolistas constituem um desdobramento inevitável do poder das grandes corporações. Mas isso, em princípio, não é bom. Causa muitas distorções. O componente rent-seeking faz parte delas. De igual modo, a manipulação das empresas de tecnologia (as Big Techs) é um fenômeno mundialmente reconhecido. Assim, uma nova ordem internacional deve se precaver contra práticas dessa natureza. Por seu turno, o capital refaz permanentemente os arranjos espaciais de suas economias de aglomeração, que é uma categoria que os autores trabalham. Porém, economias de aglomeração não são apenas redes de cooperação e sinergia. São campos de luta pelo poder, em diferentes escalas. Geram resistências aqui e acolá. Aliás, a dialética do conflito está inexplicavelmente ausente do raciocínio dos autores. As cidades-regiões globais, em particular, constituem espaços privilegiados desses conflitos (Scott, The constitution of the city…).

6. A industrialização per se não incorpora os atributos positivos que se lhe outorga. Seus “transbordamentos” atingem um raio limitado. E geram efeitos contraditórios. A América Latina – e o Brasil, sobretudo – é exemplo de estratégias de desenvolvimento que cumpriram em parte seus objetivos produtivos sem, porém, resolver nossos dilemas históricos. É preciso um conjunto de reformas de caráter social, econômico e político, incluindo aí as relações de propriedade. Como exemplo, os estudos de Jessé Souza são enfáticos em apontar os déficits de conhecimento (carência de “capital cultural”) de populações mais vulneráveis, desde os primeiros anos de formação. Para atacá-los se requer assumir missões de alto risco, mas urgentes e necessárias.

Em suma, não obstante as limitações apontadas, o livro resgata, com toda a propriedade, o caráter do desenvolvimento econômico como o acúmulo de capacidades produtivas associadas a processos de rendimentos crescentes, sinérgicos e inovadores, setorialmente específicos, vinculados a segmentos industriais de ponta e abertos ao comércio internacional; acerta também ao ressaltar o papel decisivo do Estado na alavancagem e sustentação desses processos; e enfatiza, por fim, o bloqueio a esses efeitos virtuosos advindo da desigualdade prevalecente em nossa sociedade, e exponencial no sistema-mundo contemporâneo. Desse modo, a formulação de um projeto nacional de desenvolvimento para o Brasil precisa incorporar como premissa a constatação expressa no final da obra: “A ótica da complexidade econômica revela que não há caminho possível para o desenvolvimento sem que se siga a rota da sofisticação do tecido produtivo”.

Por Ricardo Carlos Gaspar, professor do Departamento de Economia da FEA-PUC-SP e pesquisador do Observatório das Metrópoles-Núcleo SP