Um debate entre dois Agostinhos, ou uma Objeção a Pedro Cardoso

Um debate entre dois Agostinhos, ou uma Objeção a Pedro Cardoso
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Por Cláudio Moreira – Agostinho Carrara é gênio, mas até os gênios derrapam.

No dia 23 de novembro, o pré-candidato pedetista Ciro Gomes, dando sequência à sua muito interessante série de entrevistas e conversas com figuras influentes da política, da cultura e da tecnologia, teve uma conversa com o ator e escritor Pedro Cardoso, ativo pensador progressista, hoje residente em Portugal. A conversa é uma das mais assistidas da série ˜Ciro Games˜, nome que foi pego emprestado de uma brincadeira do apresentador Monark, na já antológica entrevista de Ciro ao programa “Flow Podcast˜, em junho deste ano, e a inteligência vibrante dos dois participantes do diálogo gerou momentos memoráveis, reproduzidos às pencas em recortes espalhados por aplicativos de mensagem em todo o país. E sobre as convergências – o elogio ao Trabalhismo, o Nacional-Desenvolvimentismo, o reconhecimento à experiência de Ciro na vida pública – tudo isso já tem sido fartamente abordado por gente muito mais preparada que eu. Meu ponto nesta reflexão é um momento em que Pedro Cardoso, questionado por Ciro sobre qual seria o caminho para começar a resolver as contradições de um Brasil mergulhado no protofascismo, fala que a coisa mais fundamental seria ˜ressignificar o Cristianismo˜ do povo brasileiro.

Ateu convicto, Pedro Cardoso entende que a fé do povo é um problema, e do alto de uma postura que trata os cristãos com superior condescendência, revela uma inquietação com a crença na morte redentora de Cristo. “Não consigo entender em que a morte de Cristo redime alguém dos nossos pecados, já que continuamos pecando. O que nos redime é a Vida de Cristo, não a sua morte˜, diz o ator. O entrevistador e pré-candidato, se não chegou a concordar com aquela curiosa “teologia”, também não discordou, em respeito elegante ao convidado.

Ciro Gomes já teve outras campanhas políticas prejudicadas por observações que, retiradas do seu contexto, lhe trouxeram uma forte antipatia dentre cristãos de modo geral, como o famoso trecho do debate ocorrido na universidade de Oxford em 2019, quando fez uma reflexão pertinente a respeito da relação entre dinheiro e política em países com formação católica e protestante, mas tudo o que as pessoas se lembram é Ciro prometendo “acabar com a ilusão moralista católica˜, Ciente do estrago, João Santana produziu vários videos em que Ciro fala da sua formação franciscana e da relação entre fé e política social, trabalho exaustivo demais para ser interrompido por uma entrevista que, nas mãos do gabinete do ódio, pode virar um video de um minuto com um ateu ensinando sobre como deveria ser a fé dos brasileiros, enquanto o candidato ouve numa postura silente.

O genial Pedro Cardoso, que imortalizou a capacidade de resiliência do brasileiro no seu consagrado personagem Agostinho Carrara, ao abordar a religiosidade do povo brasileiro incorre num erro lamentavelmente comum à intelectualidade progressista: uma incapacidade crônica de compreender o fenômeno religioso, justamente porque tentam enxergá-lo com as lentes do materialismo histórico.

No começo da entrevista, Pedro Cardoso até arrisca um elogio à espiritualidade brasileira, muito amalgamada pelo sincretismo, mas até aí um sociólogo da UFF poderia dizer algo semelhante. Na hora de abordar as crenças e valores metafísicos, o democrata Cardoso fala da necessidade de ˜substituir” dois mil anos de repertório humanista calcado na ressurreição salvífica de Jesus Cristo por uma abordagem materialista sobre sua vida. Quando se trata de religião, todo materialista se torna rapidamente autoritário, por mais democrata que se afirme.

O Materialismo Histórico, método dialético de reflexão de grande parte da tradição progressista, sempre derrapa na hora de abordagens metafísicas. Nesse ponto, Agostinho, o Carrara, pode ser esclarecido com as palavras de outro Agostinho, o de Hipona, teólogo africano do terceiro século quase tão seminal para o Cristianismo quanto o apóstolo Paulo, para quem o ser humano é a síntese perfeita entre corpo e alma, matéria e espírito, ˜pão e arte˜, como diria Arnaldo Antunes. A morte e ressurreição de Cristo são o ponto crucial da fé cristã justamente porque fornecem, na narrativa bíblica, a comprovação de que a vida humana não se esgota no breve lapso entre nascimento e morte, mas perdura pela eternidade. É justamente essa perspectiva generosa – incompreensível para o outro Agostinho, o Carrara – que anima o cristão a perseverar e a não aceitar qualquer fracasso como definitivo.

Com todo respeito ao genial Agostinho (o Carrara), nesse sentido fico com o outro Agostinho, que ao referir sobre seu encontro espiritual com Deus, foi capaz de produzir uma síntese tão profunda: ˜Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova. Eis que habitavas dentro de mim, mas eu é quem estava fora de mim!˜.

Por Cláudio Moreira

Pastor Evangélico, Teólogo, Vice-Presidente do Movimento Cristãos Trabalhistas (PDT) para os Estados do Sul.

  1. Super oportuno a reflexão do Pr Cláudio. Do Agostinho Carrara, fica a necessidade de compreender que a vida de Cristo, sem a sua morte vicária, o converteria apenas em uma biografia de um grande iluminado (como muitos o imaginam). Do Agostinho de Hipona, fica a grande afirmação de que a morte e ressurreição de Cristo é o triunfo do espírito sobre a matéria – coisa que é difícil de ser digerida para aqueles que querem ver o Cristianismo apenas como uma linda, mas efêmera, filosofia de vida.

  2. O cristão sempre quer que o ateu o entenda, mas não quer entender o ateu. O cristão diz que ama o estado laico, mas na primeira afirmação convicta da importância da laicidade, ele discorda da possibilidade de alguém discordar das suas crenças…. Eu sei da dificuldade que Pedro sofre, não se pode ser ateu…. alias…. se pode, mas tem que ser o ateu que o cristão quer….
    Ainda é impossível ser verdadeiramente ateu no Brasil…. isso que ele enalteceu muito Jesus!

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