A busca por um candidato ‘tipo Biden’ acabou?

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Por João P. Boechat – Após as eleições nos Estados Unidos, onde o partido Democrata escolheu o quadro mais experiente e centrista da disputa para combater o lunatismo de Donald Trump, muito se noticiou no Brasil sobre a busca por um candidato com perfil parecido. Pela crença comum de que os Estados Unidos sempre praticariam uma política econômica neoliberal, talvez, esperavam viabilizar quadros como Huck, Dória, Mandetta ou mesmo Sérgio Moro (que, na realidade, é fascista, assim como Bolsonaro).

Acontece que Biden surpreendeu a todos esses pretendentes enterrando de vez o Consenso de Washington, encerrando a hegemonia de 40 anos do neoliberalismo ao anunciar um pacote de investimentos na casa dos trilhões de dólares, sem o fantasma da austeridade fiscal, do estado mínimo que ainda são defendidos, mas com cada vez maior timidez, na mídia brasileira, para não falar da ausência de medo de uma escalada inflacionária. Além disso, prometeu uma reforma na tributação, progressiva, arrecadando menos dos pobres e mais dos ricos, e um aumento no investimento em educação pública e saúde. Em seu último discurso, Biden também deixou claro a importância que o investimento estatal sempre teve na economia e no progresso estadunidense. Entre as realizações mais emblemáticas financiadas pelo estado americano, estão as inovações nas tecnologias nucleares, aeroespaciais e na criação da internet, bem como no investimento em infraestrutura como a Primeira Ferrovia Transcontinental e as Interstate Highways. O setor público estadunidense gasta uma parcela do PIB em sua economia maior do que o próprio Brasil, acusado de ser um estado inchado, gasta. Nominalmente, o investimento público é em outra ordem de grandeza.

Essa mudança de paradigma, na verdade, já teria sido entendida pelos defensores do neoliberalismo se estes acompanhassem a realidade da histórica econômica mundial. Todos as superpotências mundiais do passado e do presente se desenvolveram com o forte investimento estatal, embora as ocidentais tenham vendido aos países periféricos, como o nosso, receitas diferentes para o sucesso. A despeito de todas as evidências que, pelo menos desde a crise de 2008, apontavam para a importância do investimento estatal pesado objetivando reverter a recessão, no Brasil a agenda neoliberal foi intensificada em 2014, com a indicação de Joaquim Levy ao Ministério da Fazenda, e acelerada após o golpe em Dilma, com os governos Temer e Bolsonaro.

De qualquer forma, hoje é impossível ignorar a realidade. Diversos analistas alinhados com o capital financeiro tentarão de tudo para justificar a agenda privatizante e de supressão de direitos dos trabalhadores, aposentados e estrangulamento da máquina pública através do teto de gastos. Mas, assim como Biden deixou claro, não foram os banqueiros que construíram seu país, muito menos o nosso. Foram os trabalhadores. E a receita para sair da crise, que gira em torno da criação de empregos com forte investimento público, diminuição de impostos para os pobres e o aumento da taxação sobre os ricos, sem menosprezar a importância do Estado – soberano, que controla sua própria moeda, taxa de juros e arrecada do contribuinte de forma que o setor privado é incapaz – na indução do desenvolvimento, só um candidato à presidência, hoje, defende: Ciro Gomes.

Ciro defende um projeto nacional de desenvolvimento que em muito se assemelha com o Bidenomics inaugurado neste ano. Em ambos os projetos, existe a defesa do forte investimento estatal na economia para sair da crise, gerando empregos e diminuindo a desigualdade através de uma reforma tributária progressiva e o forte investimento em educação, inovação e saúde. O projeto de Ciro vai além, entendendo as necessidades de um país em desenvolvimento, pois defende a criação de um complexo industrial de saúde, para produzir itens hospitalares e medicamentos cuja tecnologia o Brasil tem acesso, mas importa bilhões de dólares por ano; defende o investimento no complexo industrial petroquímico, para cessar nossa dependência de importar combustível, injustificável num país autossuficiente em extração de petróleo; defende o investimento no complexo industrial agrícola, aproveitando a força do maior setor produtivo brasileiro; defende o investimento no complexo industrial militar, que também é fundamental para nossa soberania – nesse setor, o tamanho do investimento norte-americano dispensa apresentações.

Todos os outros candidatos defendem uma agenda de austeridade. A única exceção possível ao projeto neoliberal, além de Ciro, poderia ser Lula, cuja justa volta pro jogo político mudou o cenário das eleições de 2022, mas ele deu declarações sugerindo a abertura de capital de empresas públicas como a Caixa Econômica Federal e acenando ao mercado financeiro, ainda não afirmando um compromisso com um projeto de desenvolvimento. Por outro lado, mesmo buscando conversar com partidos de centro-direita para formar alianças eleitorais, Ciro mantém-se irredutível em seu discurso desenvolvimentista, apresentando uma alternativa à hegemonia de 40 anos que fez a economia brasileira estagnar.

Ambos os candidatos têm a oportunidade de protagonizar o primeiro segundo turno da história com dois partidos e projetos de centro-esquerda; entretanto, para que os dois cheguem lá, precisarão fazer concessões às alianças de centro-direita que buscam. Tenho ceticismo quanto à possibilidade de Bolsonaro estar fora do segundo turno; ao mesmo tempo, hoje tenho dificuldade de enxergar as chances de vitória de um candidato que é odiado pela esquerda, pela mídia, pelos intelectuais, pelos empresários, pelos Estados Unidos, pela China e pela União Europeia.

Analistas e políticos já trabalham com a possibilidade real de Bolsonaro estar fora do segundo turno. Depois de Lula, os candidatos viáveis eleitoralmente seriam Sérgio Moro e Ciro Gomes. Sérgio Moro não tem partido, não indica pretender disputar a eleição – embora exista o assédio do Podemos –, e se disputar, precisa ser combatido por todos os candidatos e partidos democráticos. Depois de sabotar a democracia com a fraudulenta operação Lava Jato, com o apoio do FBI, ele seria capaz de terminar de desmontar os avanços sociais que ainda sobrevivem a Bolsonaro, sem herdar sua rejeição. Caso ele não dispute, existem chances reais do embate entre Ciro Gomes e Lula, cuja conciliação parece cada vez menos possível. O que é mais arriscado: o movimento de pinça dos dois partidos de esquerda, que poderão protagonizar os melhores debates da história da política brasileira; ou uma união eleitoral em torno de um projeto puramente progressista? Não tenho dúvidas de que, hoje, a melhor opção é viabilizar mais de um nome para o pleito, ainda mais se algum juiz resolver embargar criminosamente Lula novamente. Quanto mais quadros nacionais de esquerda estiverem debatendo, de verdade, os problemas do Brasil, trazendo boas soluções, melhor é para o país. Por outro lado, a divisão da esquerda causa, desde o início da república, rusgas entre os partidos, políticos e militantes do campo popular.

Será que, em 2022, teremos condições eleitorais de defender um projeto de país desenvolvimentista, ecologicamente sustentável, que defenda os direitos das minorias e os amplie, que estabeleça políticas compensatórias para os povos originários e para o povo preto, que consiga reverter o desmanche dos direitos trabalhistas e o teto de gastos, e que consiga revolucionar a política de segurança pública, menos focada em criminalizar a periferia e, sim, em proteger toda a população da violência? Será que, agora que não existirão mais coligações em eleições proporcionais, poderemos sonhar com um governo que revolucione a educação da forma como Darcy Ribeiro sonhou, que consiga investir no aperfeiçoamento do já milagroso SUS, e que consiga tratar pautas sensíveis como o aborto e a descriminalização da Cannabis, não como questões de justiça criminal, mas sim de saúde pública? Será que conseguiremos reformar nossa justiça criminal, para que não seja mais instrumentalizada contra políticos progressistas, muito menos contra pretos e pobres? Será que teremos um país que reconheça de verdade o espaço das mulheres e das minorias na política, no mercado e na sociedade? Biden dá a entender que implementará um projeto de alto nível, avançando – em que pese às dificuldades, vantagens e à realidade americana – em todos esses temas. Veremos o resultado de suas políticas até 2022. É importante lembrar que isso só será possível pois os democratas venceram ambas as casas no legislativo. Fica essa questão aos políticos e líderes brasileiros: como conseguir transmitir, hoje, em meio à tantas notícias falsas e tanta tragédia, a forma de tornar possível o Brasil ser o país que ele quer ser?

Por: João P. Boechat.
Militante do PDT Niterói.