1986: Política e arte

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Por Everton Gomes – Foi com surpresa trabalhista que recebi a notícia da proposta de criação do “Dia Nacional da Mulher Sambista” em homenagem à cantora Dona Ivone Lara. Embora reconheça que Dona Ivone é uma artista consagrada e festejada, dentro de minha humildade, penso que exista uma discrepância insuperável entre o sentido da propositura e a personagem a quem se deseja homenagear.

A mulher sambista, a meu ver, guarda atributos que vão além da atuação como artista de samba; reúne, necessariamente, a centralidade da comunidade: defende, com sua alegria, a infância pobre que habita nossos berços do samba. A mulher sambista dá à arte o sentido mais engajado de sua definição – através da contação de história e da tradução oral de sua cultura ancestral – com objetivo de ajudar a promover, com outros atores de igual responsabilidade social, a luta por dias melhores para os seus (objeto maior das ações trabalhistas). Penso que Dona Ivone Lara não contribuiu em alguns destes paradigmas, por escolhas feitas no passado. Certamente teríamos outras muitas sambistas sob as quais estas características vestiriam melhor, a grande Clara Nunes, Tia Ciata, Clementina de Jesus, Beth Carvalho, dentre muitos outros exemplos.

Sei que este meu texto pode reunir uma legião de críticas: de uns, insensíveis com meus argumentos; de outros, estupefatos com minha audácia de discordar. Todavia, ao escolher a militância pública, optei por não me calar ante aquilo que não acho politicamente justo. Decidi, há muito, defender valores de forma independente; muitas vezes destoando de certa intelectualidade colonizada – ou de mão única. Às vezes, é preciso remar contra a maré, com o devido respeito ao contraditório: assim deve ser o jogo democrático.
Neste momento, minha memória remonta ao já distante ano de 1986. Recordo de um dia triste! Marcante. Fui uma criança pobre, criada no morro da Mangueira. Tinha como um dos mais especiais momentos de lazer as idas até a Quinta da Boa Vista, com meu pai, sempre aos domingos, quando me esbaldava brincando.

Mas houve um domingo que nunca me saiu da cabeça. Foi quando meu pai, muito triste, dizia logo após de ouvir uma música, que aquele era o samba culpado da derrota do Brizola e do Darcy. Segundo ele, era uma música da Dona Ivone Lara feita com “mensagem subliminar”. Eu não sabia o que significava aquilo; e, certamente, a tal mensagem subliminar era fruto de teorias da conspiração. Que também não sabia o que era. Mas a tristeza que vi nos olhos de meu velho pai me marcou para sempre. Para ele, que viveu no morro e trabalhou desde pequenino, o governo Brizola era revolucionário; e o mestre Darcy Ribeiro trazia o símbolo da esperança de dias melhores, baseada na utopia de uma educação de qualidade para as crianças pobres. Ele sempre me dizia que “na vida, só levamos a educação. Ela é que nos emancipa!”.
Sem dúvida, a derrota de Darcy e Brizola deixou meu pai arrasado, e todos que colaboraram com o projeto do Moreira eram culpados diretamente. É certo que remoer velhas lembranças produzem incômodos, desconfortos, inquietações e até mágoas. Todavia, a história é feita de fatos. E precisamos conhecê-los para não errar mais.

A causa dos nossos fracassos tem origem certa nos erros do passado aliados às escolhas ruins do nosso presente. O resultado trágico da eleição de 1986 é fruto da guerra de um projeto revolucionário do governo Brizola contra as perenes traições das elites nacionais – associadas aos interesses gringos – que se chafurdavam com Sarney; e, desta vez, com a contribuição de parcela da esquerda, insensível, sectária e elitista. Moreira foi eleito com apoio direto dos comunistas (do PCB e PCdoB) e, indireto, de alguns outros setores ditos progressistas, como os verdes e os petistas (escola não é hotel), que viam no governo popular de Brizola e na mensagem de transformação de Darcy Ribeiro algo anacrônico. Incrível, porém a mais pura realidade.

Onde entra Dona Ivone Lara? Era ela cantora consagrada, mas também militante política ligada aos quadros da cultura no partidão (PCB). Sua escolha não foi meramente comercial – o que, tampouco, a isentaria. Sua escolha selou uma opção política pensada; um achado cultural que simbolizava a uma face popular para maquiar um projeto elitista e autoritário que viria a derrotar o governo mais popular que o Rio de Janeiro já teve.

Se é verdade que a vida imita a arte e na contramão a arte imita a vida, tornou-se fato que a presença dos versos cantados por Dona Ivone repercutiram como uma bomba contra a campanha de Darcy Ribeiro. Eu sou daqueles que acreditam no papel político do artista, ainda mais quando temos um artista abertamente militante. A opção de Dona Ivone, portanto, foi o projeto moreirista.

As consequências de atos públicos, positivos ou negativos, destes que são reais representantes da categoria denominada formadores de opinião tornam-se indeléveis para a população. No Brasil, o cantor é uma espécie de farol da sociedade.

A letra cantada por Dona Ivone Lara era de uma perversidade horrenda. Era um atentado contra a dignidade de um governo que tanto fez pelo samba e pelas sambistas, ao garantir escola de qualidade pra seus filhos e promover, como nunca antes, o samba em níveis governamentais, ao criar, entre outras coisas, a Passarela do Samba, tão atacada em matérias e editoriais pelos jornais da época.

Dizia a letra: “O Rio já foi tão bonito e hoje não é mais aquele”. Ora bolas! O Rio anterior ao “vargojangodarçabrizolismo” era o de Chagas Freitas, que promovia o controle de currais eleitorais com uma nefasta política de controle de bicas d’água, negando o acesso universal ao mais imprescindível recurso humano: a água. Ou aquele Rio retratado na capa da revista Veja, meses antes da eleição, que tinha marca na simbologia dos esquadrões da morte que dizimavam nossos pobres e sambistas, especialmente na Baixada Fluminense. Era este o Rio bonito?
Levando-se a um plano nacional, a canção celebrava um Brasil do inconsistente Sarney, da corrupção, do fisiologismo e de seus planos fantasiosos para enganar o povo destruído pelo flagelo da inflação.

O governo que Dona Ivone rejeita, em sua voz, era o de Leonel Brizola, que até hoje não teve paralelo no resgate as populações mais humildes, por meio de uma série de programas e projetos de infraestrutura ou sociais que produzia dignidade – especialmente aos moradores das favelas fluminenses, berço do samba e das sambistas. O Rio defendido por aquela canção terrível propunha o outro Rio: o do Moreira, a quem na época a letra se dirigia como “redentor” (não se distanciando do tratamento dado atualmente pela horda, cega, seguidora de Bolsonaro ao seu “mito”.

Não posso desconhecer a obra de Dona Ivone Lara como militante-artista. Ainda mais sabedor que sou que jamais fez uma mínima autocrítica de sua participação naquele fatídico projeto antipopular. A vitória de Moreira foi a derrota dos CIEPs, dos Direitos Humanos, da valorização da cultura nacional, do respeito ao samba e aos sambistas.

A utopia da igualdade do socialismo moreno foi assassinada pela bala de fuzil “moreirista”, cantada em verso e prosa para acabar com a violência e marginalidade em mentirosos seis meses. E o Eden prometido pela campanha transformou-se, depois da posse, naquilo que passaríamos a conhecer como as megaoperações – que persistem! – como política de uma segurança pública genocida, racista e higienista que atinge nossa gente até os dias de hoje.

Aos seus muitos fãs peço perdão por qualquer excesso que, por interpretação, tenham entendido; mas quero deixar patente que não imprimi a este texto qualquer sentimento de revanchismo. Todavia, para mim, é incompreensível que tal propositura seja realizada; pois bate fundo em minha memória de criança que nasceu na favela, que sonhou com Darcy e Brizola e que foi derrotado por Moreira.

Caso resolvesse relevar a ação de Dona Ivone Lara, eu teria que me indispor com minhas memórias que vão ao encontro da máxima do alemão Boris Groys: “Os artistas podem destruir a sociedade tão completamente quanto o mais cínico dos políticos”.

Por: Everton Gomes.
Cientista político e policial civil. Integrante da Direção Nacional do PDT.

  1. Bom dia, realmente na perspectiva de manutenção da estrutura golpista, foi um desserviço dessa grande representante do mundo sambista, pois, desde Getúlio Vargas, o Trabalhismo sempre prestou grande serviço aos setores populares de nossa cultura, como a organização do desfile das escolas de samba. Então, quando uma grande figura do samba se posiciciona em lado oposto ao projeto de educação de Brizola e Darcy, devemos realmente combater essa posição de homenagem, e como você citou temos grandes personalidades femininas do samba, que com certeza se enquadrariam melhor pra serem homenageadas, como a verdadeira dama do samba nossa guerreira Beth Carvalho, reverenciada por todo mundo sambista.

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