O abandono de Zelensky e a traição da Ucrânia pelo Ocidente

A aberrante traição da Ucrânia pelo Ocidente volodomir zelensky
Botão Siga o Disparada no Google News

Duas mensagens têm sido repetidas insistentemente desde que teve início a invasão da Ucrânia pela Rússia, há pouco mais de uma semana.

A primeira delas vem a ser o insistente pedido do presidente ucraniano Volodimir Zelensky, desde o primeiro dia do ataque russo, para que a OTAN estabeleça uma “zona de exclusão aérea” sobre o território do seu país. Isto é, Zelensky quer que a aliança militar imponha a sua supremacia nos céus ucranianos, vedando o seu controle pela Força Aérea russa e, assim, impedindo os seus bombardeios.

Para conseguir isso, porém, a OTAN teria que entrar em combate direto com a aviação russa, abatendo os seus aviões e destruindo os seus sistemas anti-aéreos. Ou seja, a OTAN teria que entrar em guerra contra a Rússia. Sem qualquer surpresa, a entidade vem se recusando terminantemente a fazê-lo. O norueguês Jens Stoltenberg, seu secretário-geral, declarou que a organização não enviará tropas para lutar ao lado dos ucranianos; e – incrivelmente – que não busca conflito com a Rússia. O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden – quem, em última instância, de fato comanda a organização – descartou de saída o envio de soldados, equipamentos ou aviões estadunidenses para entrar em ação. Já o presidente francês Emmanuel Macron disse: “não estamos em guerra com a Rússia“.

Porquê, então, esses senhores passaram os últimos meses, senão anos, convidando publicamente a Ucrânia a integrar a OTAN? Porquê, se não estão dispostos a mobilizar a organização e a arriscar os seus países para defendê-la?

Diante disso, já nas primeiras 48 horas do conflito, Zelensky havia constatado que o Ocidente tinha “abandonado” a Ucrânia. Mas sem ter a quem mais recorrer, no dia 3 de março, suplicante, disse em entrevista coletiva:

“Eu pedi sanções preventivas antes da guerra. Eu disse: se tivermos um pacote de sanções, eles não vão avançar com a ofensiva”, afirmou, reiterando que os pedidos, porém, não foram atendidos. “Agora, eu estou pedindo a zona de exclusão aérea.” “Já dissemos muitas vezes que a Ucrânia precisa de garantias de segurança. E qual foi a resposta da aliança (Otan, a Organização do Tratado Atlântico Norte)? Esperar. Esperar pelo início da guerra”, afirmou. “Se vocês não podem fechar nossos céus, então me deem aviões”.

Pelo menos até o dia seguinte, Zelensky e os ucranianos não haviam conseguido da OTAN nem uma coisa, nem outra.

Outra dessas mensagens tem sido repetida por Ursula von der Leyen, a alemã que desde 2019 preside a Comissão Europeia. Conforme insistiu no dia 3 de março ao lado do presidente romeno Klaus Johannis, segundo ela, “a Ucrânia é uma de nós”, é parte da “família europeia”. Porém, nos seus já trinta anos enquanto Estado soberano desde que declarou a sua independência da União Soviética em 1991, a Ucrânia jamais foi convidada para ingressar na União Europeia. As vizinhas Polônia e Lituânia já integram a UE desde 2004, isto é, há nada menos que 18 anos. A “ponte” entre o território ucraniano e o europeu já está há muito estabelecida. Dois dias antes, von der Leyen havia dito que a Ucrânia e a União Europeia estavam “mais próximas do que nunca”, mas que ainda assim havia um “longo caminho a percorrer” até a integração plena. E assim, apenas no dia 2 de março de 2022, com a invasão russa já em pleno curso, o Parlamento Europeu recomendou dar à Ucrânia o status de “candidata” ao ingresso no bloco. À luz disso, o mínimo que se pode dizer é que os europeus vêem os ucranianos como uma parte remota, pouco relevante, da sua família.

Com efeito, durante anos, os governos do “Ocidente” – se assim desejarmos intitular o eixo norte-atlântico composto pelos Estados Unidos, seus satélites e a União Europeia – procuraram aliciar os ucranianos com promessas de desenvolvimento e prosperidade, via União Europeia; e segurança e proteção militar, via OTAN. Pelo menos desde 2014, Henry Kissinger, absolutamente insuspeito de sentimentos russófilos, tem afirmado que os ocidentais não deveriam insistir em tentar fazer da Ucrânia um “posto avançado” contra a Rússia, ao mesmo tempo que esta não deveria procurar fazer o mesmo daquela. Ao mesmo tempo, conforme relembrado recentemente pelo cientista político estadunidense John Mearsheimer, um “neorealista” igualmente insuspeito de russofilia, Vladimir Putin reiterou ao longo desses anos que seu governo não aceitaria passivamente que a Ucrânia fosse incorporada, principalmente, à aliança militar transatlântica. Também declarou diversas vezes – da forma mais inequívoca possível, sem dar margem a erros ou dúvidas – que a Rússia encararia este fato como uma “ameaça existencial”. É possível questionar livremente se tais alegações eram verídicas ou apenas justificativas para ações imperiais, expansionistas, pré-planejadas pelos russos. Na prática, porém, pouco importa: a prudência recomendava levá-las a sério, pois Putin detinha os meios para agir contra o que afirmava explicitamente perceber como ameaças.

Nas origens deste problema, encontramos os fatos de que o objetivo do “Ocidente” nunca foi trazer a Ucrânia para o seio dessa suposta “família europeia”, o que nunca realmente interessou aos europeus ocidentais, mais preocupados em fazer bons negócios com os russos. Muito menos foi arriscar o bem-estar material e a segurança dos seus países para defender, de fato, a Ucrânia da Rússia. O que sempre esteve em jogo ali foi o anseio de, simplesmente, arrancar a Ucrânia da órbita dos seus vizinhos a leste, em cujo entorno por razões históricas, demográficas e mesmo geográficas, sempre se situou.  Os Estados Unidos, em particular, apenas pretenderam usar a Ucrânia como um “pivô” avançado da sua estratégia de cerco e contenção da Rússia pós-soviética. A Ucrânia em si nunca foi o objetivo da sua ação, mas um instrumento empregado com vistas a desestabilizar a Rússia e cindir a Europa. Essa estratégia estadunidense levou os russos a um impasse que, agora, Putin decidiu romper com o emprego da força. Nessa disputa entre grandes potências tendo a Ucrânia como mero objeto, um dos lados estava blefando enquanto o outro, não.

Agora que Putin resolveu, ao menos em tese, impor a “neutralidade” e a “desmilitarização” da Ucrânia, o que acontece? O “Ocidente” não entrega à Ucrânia o que prometeu. Ao contrário, a entrega à própria sorte diante de um adversário muito mais poderoso e, ao menos por enquanto, inflexível. Não há possibilidade real de que a Ucrânia derrote a Rússia militarmente, pois a desproporção de forças entre ambas é imensa, tanto em número de efetivos quanto em quantidade e qualidade dos equipamentos (isso para ficarmos apenas nas forças convencionais, ignorando as nucleares). Em vez de lutar, os “ocidentais” estão fornecendo aos ucranianos armas – e não exatamente as mais modernas, por receio de que caiam em mãos russas. Estadunidenses, canadenses, alemães, franceses, italianos, holandeses, espanhóis, poloneses, tchecos, suecos, finlandeses, lituanos e outros mais estão fomentando uma resistência representada como heróica, mas virtualmente fadada ao fracasso.

O que pretendem? A impressão que se tem é que buscam levar os russos a cometer um massacre. Pois quanto maior a resistência ucraniana, mais violentos serão os meios empregados pelas Forças Armadas russas para suplantá-la. Assim, maior será a destruição da Ucrânia e maior também será o número de baixas ucranianas, embora também as russas (seguramente em menor proporção). Recusando-se a enfrentar a Rússia militarmente, sobrou ao “Ocidente” procurar derrotar Putin moralmente, o representando como um ditador, um tirano, um assassino sanguinário. Numa tentativa nada menos que esdrúxula de fazer desta guerra cuidadosamente arquitetada pelas partes envolvidas uma obra de um único homem desequilibrado, a mídia ocidental vem até mesmo pondo em dúvida a saúde mental de Putin. Para compor essa narrativa ocidental, quanto mais vítimas ucranianas – principalmente civis –, melhor. O papel destinado aos ucranianos nela é o de sofrer uma derrota militar virtualmente inevitável;  morrerem aos milhares; assistirem impotentes à destruição do seu país; e espalharem-se mundo afora, aos milhões, como refugiados.

Em suma, o “Ocidente” quer fazer dos ucranianos heróis mortos contra a tirania  de Putin – e tem tudo para conseguir. Se não há dúvidas de que esta invasão é uma das maiores tragédias dos nossos tempos, tampouco há de que a atitude do “Ocidente” neste episódio é uma das suas mais aberrantes traições.