A violência como viga de sustentação do sistema

Violência policial no Rio de Janeira Jacarezinho
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Por Juliana Leme Faleiros – Na semana em que Senado Federal dá início às atividades da Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia (CPI da covid), formada somente por homens, acontecimentos como a comoção pela morte de Paulo Gustavo, a operação policial com recorde de número de mortes no Jacarezinho, Rio de Janeiro, e a ultrapassagem do número oficial de 400 mil brasileiros mortos em razão dessa doença se entrelaçam à insistência mórbida do atual presidente em defender o uso ampliado de cloroquina, ofendendo a quem se posiciona pelo uso restrito, e em desinformar sobre a origem do vírus.

Vale destacar que falar em número de mortos é completamente desgastante porque, a cada dia, temos convivido com, no mínimo, 2 mil mortes. Trazer o número de mortes é assumir que em menos de uma semana a informação estará completamente defasada. Talvez estejamos acostumados com as mortes violentas que, muito antes da covid19, já era nossa companheira diária tanto pela debilidade das políticas sociais, em todos os sentidos, quanto pela atuação das polícias – e milícias – tanto nas regiões periféricas das grandes cidades quanto nos conflitos no campo.

Parte da população brasileira se sente impotente, enlutada, atônita e amedrontada por eventual contágio. Outra parte, no entanto, permite que a prepotência seja guia: desmerece a Ciência, valoriza o próprio cansaço para justificar aglomerações, aplaude atos de violência praticados pelos agentes públicos e desdenha da dor alheia. Os membros deste último grupo estão mortos por dentro ou devem ser classificados em alguma patologia catalogada na CID? Penso que nem um nem outro; são todos, em alguma medida, responsáveis pelas mortes evitáveis.

A psicanalista Maria Rita Kehl, em uma obra coletiva sobre violências, reflete sobre a psicologia das massas. Com Sigmund Freud, afirma que o líder mobiliza a partir de mecanismos de identificação com os ideais – paternos – que ele representa e que, por isso, os membros da massa se sentem dispensados da responsabilidade de escolher. Ressalta ela: “a violência da multidão é movida pela paixão da submissão.”

Seguindo seu raciocínio e cingindo seu texto às violências praticadas pelo Estado durante o regime empresarial-militar no Brasil, ela chama a atenção para a impunidade que convivemos a respeito disso. Para ela a impunidade não produz somente a repetição, mas, mais do que isso: passamos a vivenciar a “escalada de práticas abusivas por parte dos poderes públicos” que, em tese, são organizados para proteger os cidadãos.

Assim, nesse sentido, a sociedade brasileira, predominantemente, vivencia a autorização para a violência e a eleição de 2018, mais do que as anteriores, demonstrou isso. A escolha desse mandatário, e não de qualquer outro, mostra que brasileiras e brasileiros decidiram transferir sua capacidade cognitiva e solidária para um grupo que durante toda a sua trajetória deixou clara a defesa das violências – no plural – pois não se trata somente da sua expressão ostensiva, física, mas de todas elas. Sempre se posicionou como machista e racista; sempre foi grosseiro com as palavras; sempre se posicionou pela retirada de direitos dos trabalhadores deixando-os à míngua e à margem. Nunca escondeu seu caráter belicoso.

Dessa feita, a impunidade de inúmeras práticas do mandatário, mesmo antes de assumir o atual cargo, como o episódio que o expulsou do Exército, a colocação de cartaz ofensivo na porta de seu gabinete sobre as investigações da Comissão Nacional da Verdade, a defesa de menores salários para mulheres e tantas outras que qualquer pesquisa rápida pode apontar, transmuta a autorização para práticas violentas para o imperativo da violência. Como diz Maria Rita Kehl, fica clara a “passagem do consentimento à compulsão.”

Certa vez, há muitos anos, num atendimento a um senhor de idade que estava com problemas no casamento e resistia a colaborar para organizar sua dissolução, tentei explicar que mesmo que ele não aceitasse o divórcio consensual em algum momento o juiz determinaria o fim de sua união. Ele me olhou bem no fundo dos olhos e disse: “eu quero fazer uma espécie de ‘judiamento’[1] com ela.” Ele até poderia ter seu casamento desfeito pelo Estado, mas faria qualquer coisa para tumultuar, mesmo que se tornasse violento.

A mesma prática do senhor que declarou guerra à mulher, é vista na CPI da covid: sob comando do Planalto, homens barbados – senadores da República – além de agirem como se estivessem nos bancos escolares do ensino fundamental (com todo o respeito às crianças nessa faixa escolar), impedem as senadoras de atuarem. Como declarou uma delas na sessão de 05 de maio de 2021: “A gente só quer falar, senador.” Mas eles não querem que ninguém fale além deles porque se sentem representantes desse mandato tácito da violência.

Um dos senadores da tropa de choque do Poder Executivo tentou justificar sua recusa em deixá-las falar clamando o Estado de direito. Disse o Senador: o regimento, a regra da Casa, é que deve viger. Como não há previsão para tal, elas, senadoras, devem se recolher. Como se este instrumento legislativo não fosse, desde sua gênese, formulado para manter desigualdades e violências.

Das relações interpessoais às relações público-institucionais, um dos sustentáculos da sociedade brasileira é a violência em seus diversos matizes: o silenciamento, o machismo, o racismo, o negacionismo. O atual governo e seus seguidores representam a síntese disso tudo e carregarão nas mãos todo o sangue e a dor de brasileiras e brasileiros.

[1] Tenho consciência que “judiamento”, do verbo judiar, é tão preconceituoso como denegrir, por exemplo. Faço uso dela a fim de ser literal e fiel à experiência que relato.

Por Juliana Leme Faleiros, mestra em Direito Político e Econômico (Mackenzie). Especialista em Direito Constitucional (ESDC). Bacharela em Direito e em Ciência Política. Professora e Advogada.