A Ucrânia e a volta da multipolaridade geopolítica

multipolaridade FILE PHOTO: Russian President Vladimir Putin meets his Chinese counterpart Xi Jinping in Moscow
Foto: REUTERS/Evgenia Novozhenina
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Por André Luiz dos Reis – Existe muita incompreensão sobre as forças em operação na Ucrânia. E nada pode ser mais enganoso pra entendê-las do que se deixar levar ingenuamente pela questão “mas o que querem os ucranianos?”

A Ucrânia é um país cuja existência independente é muito recente, suas fronteiras incluem elementos religiosos, históricos, culturais, étnicos, linguísticos distintos. Parte considerável do país tem historicamente a ver com a Polônia, por exemplo.

O atual governo chegou ao poder por meio de uma ”revolução” cujo cerne se deu no lado ocidental, politicamente mais próximo do europeísmo e cujos movimentos políticos forjaram um nacionalismo anti-russo.

O Euromaidan depôs, com ajuda determinante dos EUA, o governo eleito e que tinha muito mais aceitação no leste do território, que tem muitas heranças russas do ponto de vista étnico-cultural.

O nacionalismo que domina o governo de Kiev implantou o dogma de que OU se é ucraniano OU se é russo, tentando limar o alfabeto cirílico, a língua russa [a principal de pelo menos 1/4 do país] e até nacionalizar a Igreja Ortodoxa. [que historicamente está na jurisdição do Patriarcado de Moscou e de Todas as Rússias.]

Nenhuma destas medidas é aceita no leste do país, que também teve seus próprios movimentos de protesto e violência em oposição ao Euromaidan, mas que convenientemente não foram divulgados pela mídia ocidental.

Eis a causa da guerra civil e do separatismo. No leste do atual território ucraniano, não há nenhuma contraposição necessária entre ser russo, em determinado nível, e ser ucraniano.

Não à toa o governo de Kiev tem forte apoio de movimentos fascistas de estética neonazi [vide Batalhão Azov], cuja retórica anti-russa se fundamenta em um certo ”indo-europeísmo”. Há uma retórica de ”extermínio” étnico/cultural do legado, regiões, populações russófonas.

Os acordos de Minsk preveem a Ucrânia como uma Confederação mais frouxa, com governos com certa autonomia, para preservar a identidade e os direitos dos povos que compõem o país. O governo de Kiev não aceita pois sua visão de Ucrânia é unitária e homogeneizante.

“O que pensa e o que quer a Ucrânia? Eles devem ser ouvidos!”

Ok. Mas quem é a Ucrânia, quem são os ucranianos? Esta é a questão em jogo.

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As relações da Rússia com o leste europeu são diversificadas e complexas. Alguns povos são pró-russos [eslovenos, bielo-russos, sérvios, parte dos ucranianos etc.], outros tem grande repulsa [húngaros, lituanos, poloneses], e há graus entre esses dois extremos.

Essas simpatias/antipatias sofrem influência da história recente, mas seus fundamentos tem camadas muito anteriores, que remontam até o fim do primeiro milênio da era cristã, quando os eslavos se dividiram gradualmente entre católicos e ortodoxos, um processo que levou a conflitos agudos e radicais.

Mas há de se notar o seguinte:

A antipatia de algum povo do leste pelos russos não os converte necessariamente em ”Ocidentalistas”. Os poloneses, por exemplo, que tem inimizade histórica com os russos, também tem ojeriza e traumas em relação a alemães, austríacos etc.

Existe uma realidade multifacetada. É possível até ver alguns povos ortodoxos que se desagradam da Rússia [como os romenos], e católico-romanos que tem perspectivas geopolíticas comuns [os eslovacos, tão inconformados quanto russos e sérvios com o reconhecimento ocidental da independência do Kosovo].

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Uma das narrativas construídas pelo Ocidente é quanto ao possível medo que a Rússia incutiria no restante da Europa e nos seus vizinhos imediatos. É uma visão unilateral da história.

Na perspectiva russa, há uma forte prevenção contra invasores que vem do Oeste da Europa, e inclusive de seus vizinhos imediatos. A Rússia foi invadida por suecos, poloneses lituanos nos séculos XVII e XVIII. Enfrentou invasão francesa no início do século XIX.

E no século passado teve de enfrentar duas agressões alemãs. A vitória na segunda delas, a ‘Grande Guerra Patríótica’ [como a II Guerra Mundial é conhecida no país], custou vinte milhões de vidas russas.

É impossível entender a ”cortina de ferro” sem levar em conta esse histórico de embates.

Qualquer povo são ficaria extremamente preocupado com mais um avanço de bases militares do Ocidente pra perto de suas fronteiras.

Não existe território inexpugnável, mas os EUA contam com uma vantagem estratégica imensurável neste ponto, já que estão distantes das disputas eurasiáticas pela barreira imposta por dois Oceanos. Os ianques nunca vão entender a necessidade ferrenha que uma potência terrestre/continental tem de defender a todo custo sua integridade territorial.

Putin reconheceu a independências da Repúblicas “separatistas” de Lugansk e Donetsk porque Kiev não cumpre os acordos de Minsk, assinados pra garantir que as diferentes etnias ucranianas falem a própria língua, usem seu alfabeto e pratiquem sua religião sem serem perseguidos pelos ‘nacionalistas’ colocados pela OTAN no governo da Ucrânia.

Uma Ucrânia federalizada, com regiões semiautônomas, em vez de Estado Unitário fascistóide tutelado pelos EUA, era o melhor dos mundos para Putin.

Mas o acordo de Minsk foi assassinado pelo Ocidente. E a Rússia não tem motivo pra se abraçar ao cadáver.

Até porque a ajuda militar da OTAN à Kiev explodiu nos últimos anos, o que só piora a situação a médio e longo prazo. Para a Rússia é uma questão de sobrevivência. Ela precisa resolver o quanto antes as ameaças colocadas pelos EUA ao seu território.

A discussão agora passa a ser sobre as verdadeiras fronteiras dos novos países. Atualmente, Donetsk e Lugansk são menores que os limites administrativos anteriores.

Um dos próximos passos será trazer esse tema à mesa.

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A existência da OTAN, um instrumento da Guerra Fria, é uma excrescência, e só tem um fim: manter a ocupação militar ianque na Europa e expândi-la para dentro da Eurásia a fim de construir uma supremacia militar mundial.

Esta é a discussão mais relevante no momento. Qualquer xeque dado à OTAN, qualquer obstáculo à sua expansão, qualquer medida que significa o desmonte de seu poder é um grito de liberdade para todos os povos do planeta.

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Resultado das sanções ocidentais desde que a Rússia anexou a Ossétia e a Abecázia, em 2008: a Rússia ficou menos dependente do mercado financeiro internacional, sua dívida pública diminuiu e seu mercado interno se incrementou.

Biden anunciou que pretende dificultar empréstimos para a Rússia no mercado financeiro.

Mas a dívida externa russa é pequena. A dívida pública está em 5% do PIB. O país tem mais de U$ 600 bilhões de reservas. E uma aliança sólida com a China.

Ou seja, não vai acontecer nada.

Detalhe: 25% do petróleo e 45% do gás utilizado pela UE vem da Rússia. Uma fonte de riqueza que garante o superávit do país. Que acaba de fazer um senhor acordo pra fornecer gás também pra China.

Biden não vai arriscar uma senhora inflação pra ”salvar a Ucrânia”. E os europeus dificilmente vão se aventurar em uma guerra do lado de casa.

E se tirarem a Rússia do sistema SWIFT? Outros sistemas, que inclusive já existem na Rússia e China, tomariam o seu lugar. Só impulsionaria o fim da hegemonia ianque. No fundo, todo mundo continuaria precisando de trigo, cevada, gás, petróleo etc.

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Não há ”invasão à Ucrânia”, mas a infraestrutura militar do país está sendo atacada pela Rússia a partir de Belarus e do Donbass [que assim vira o jogo, já que tem suportado ataques ucranianos a escolas e hospitais desde 2014].
As armas que a OTAN enfiou na Ucrânia não são funcionais. Não há gente preparada para manuseá-las e os países ocidentais não estão dispostos a entrar em conflito direto com a Rússia.

O objetivo russo continua o de evitar que a Ucrânia entre para a OTAN. Anexação territorial dá trabalho, dor de cabeça, consome recursos e tem custo humano. O lance é debater as fronteiras das Repúblicas de Lugansk e Donetsk, cuja independência Putin reconheceu. E arrancar um novo acordo de Minsk, exigindo dessa vez sua implementação imediata.

Evidente que a Rússia vai usar a força caso seja necessário.

Para além disso, o objetivo maior é discutir uma nova comunidade de segurança no leste europeu para fazer frente e estancar de vez a expansão da OTAN.

Todos os passos de Putin foram bem estudados. Na verdade, estamos no ponto alto de todos os seus vinte anos no poder. Aquela situação para a qual ele se preparou em toda a vida política: a sobrevivência do Estado Russo como potência eurasiática.

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Putin ordenou o ataque à Ucrânia no momento em que o Conselho de Segurança da ONU estava reunido pra debater a crise.

O recado não poderia ser mais claro. A arquitetura institucional de relações internacionais ruiu de vez, não passa de um cadáver putrefato.

Foi assassinado pelo unilateralismo ianque, e principalmente pela “independência” de Kosovo.

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Existe um sujeito oculto na maioria das análises geopolíticas atuais. O nome dele é Xi Jinping. A China está quieta em público, mas os movimentos na Ucrânia não seriam possíveis sem sua anuência. E os resultados da ousadia de Putin serão analisados com cuidado pelos chineses.

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Os tempos da ”única superpotência restante”, capaz de posar de ”policial global” à vontade, e manipular as instituições de ”governança global” a seu favor, e até invadir países em decisões unilaterais contra a vontade de seus próprios parceiros europeus, que financiavam suas guerras, chegou definitivamente ao fim.

Os anos 1990 e o início dos anos 2000 estão cada vez mais distantes. A mídia Ocidental assiste chocada à debacle de suas expectativas de ”aldeia global liberal”, com todos falando inglês e ouvindo Beyoncé.

Os passos fundamentais dessa virada do jogo se iniciam, até onde vejo, com a intervenção russa na Geórgia em um momento de fragilidade e atoleiro norte-americano no Afeganistão e no Iraque. Se estendem pela Guerra da Ucrânia, de 2014, o fracasso em acuar o Irã, e depois pela derrota dos EUA na Síria e sua retirada de tropas da Ásia Central, entregando o país para o Talibã.

A guerra é sempre um desastre, mas 2022 é o marco que faltava.

Quer dizer, ainda falta um. A expansão da China pelo Mar do Sul da China e a retomada de Taiwan, que colocariam fim a um século de supremacia militar norte-americana no Sul do Pacífico e daria ao ”Império do Meio” capacidade de projetar poder mundial.

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Quando da invasão do Iraque, boa parte dos analistas internacionais, engabelados pela miragem de uma sociedade global, apostavam na pressão que grandes protestos nas metrópoles do Ocidente poderiam exercer sobre o unilateralismo dos EUA.

Sonhavam com um grande Vietnã, episódio fundamental da Guerra Fria em que gênios estratégicos vietnamitas conseguiram manipular com destreza a opinião pública norte-americana.

Óbvio que era um delírio. Mas que persiste em todos aqueles progressistas idealistas em Relações Internacionais. Protestos diante da Embaixada Russa não tem efeito nenhum. O Estado russo está se lixando.

Um pouco de realismo não faz mal a ninguém.

Voltando ao Iraque, Bush deu uma banana imensa pros jovens que gritavam por multilaterismo e invadiu o Iraque com uma justificativa mequetrefe.

As Relações Internacionais, no fim das contas, são determinadas pela força, pois não há nenhum paradigma universal de valores e interesses. Vou além: a existência de um paradigma universal é impossível.

O que se aproximaria disso é uma brutal tirania global.

É justamente o cenário que os mais conscientes pensadores da multipolaridade desejam evitar.

Por André Luiz dos Reis