O Brics vale uma peregrinação a Meca. O que significa expansão (também) religiosa do Brics?

O Brics vale uma peregrinacao a Meca que significa expansao religiosa do Brics
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Por Brand Arenari – O anúncio da nova formação do BRICS é, no que se refere ao tema da geopolítica mundial, um dos fatos mais importantes do século XXI. Por mais que a cautela e polidez da retórica diplomática, sempre atenta em dissimular qualquer movimento agressivo, procure tratar essa expansão como mera cooperação econômica, é claro para os mais atentos que estamos diante de um movimento desafiador de uma determinada ordem mundial. O mundo que acumula tensão de uma nova Guerra Fria, vai, ao mesmo tempo, desenhando uma rede de alianças internacionais similares àquelas que precederam a primeira guerra mundial.

Após o anúncio, surgiu rapidamente entre os comentaristas a comparação com o compreendido bloco opositor, a saber, o G7, composto por EUA, Canadá, Inglaterra, França, Alemanha, Itália e Japão. Em algumas outras análises, este bloco opositor seria representado pela OTAN, uma espécie de G7 expandido no que se refere a geopolítica. Muito foi comentado a respeito das diferenças e competições referentes a economia, demografia, reservas naturais energéticas, poderio militar entre os blocos, como também foi destacado a iniciativa de substituição do dólar nas transações comerciais entre estes países do Brics. No entanto, quase não se falou de um traço marcante dessa primeira expansão, a comparação e as mudanças relativas ao componente religioso.

No que se refere a este traço, caber ressaltar que, mesmo em sua formação original, o Brics já era composto por uma maior diversidade religiosa em relação ao G7. Com a exceção do Japão (maioria Xintoísta), o G7 é um bloco cristão, variando entre cristãos católicos e protestantes. Já a formação original do BRICs era composta por além cristãos católicos, protestantes e ortodoxos, também por Hinduístas, religiões tradicionais chinesas, Budistas e outras minorias de menor importância. O que chama atenção é o fato de que o segundo maior grupo religioso do mundo não estava integrado a nenhum dos blocos, isso mudou com a nova expansão do BRICs, que passou a ser também uma aliança de maciço componente islâmico.

Dentre os 6 novos membros do BRICS, apenas a Argentina (católica) não é um país de forte componente islâmico. A Etiópia, de maioria cristã, tem mais de 30% da população que se declara muçulmana. Os outros 4 são países confessionais, tendo o islamismo como religião oficial, sendo que o Egito, Arábia Saudita e Irã podem ser consideradas como potências islâmicas. Ainda é digno de nota que, a diversidade de tradições islâmicas presente nestes países, contemplando sunitas e xiitas, potencializa ainda mais o alcance do BRICS.

Mas afinal, o que significa a expansão religiosa do BRICS? Como análises preliminares podemos destacar dois pontos iniciais: o primeiro deles se refere ao papel exercido pelo elemento da identidade coletiva religiosa, e o segundo, é a possibilidade da formação de uma coalizão de valores em oposição as novas crenças e ideologias dominantes do Atlântico Norte.

Um dos elementos mais poderosos da política é a criação de um sentimento de pertencimento, a construção de uma determinada identidade coletiva, aquilo que define o que “somos nós” em oposição o que consideramos ser “os outros”. Boa parte dos sentimentos e percepções do que “somos nós” é o que configura a matéria-prima da luta política, que direciona contra quem, e também, pelo que nós iremos lutar. A definição de quem é meu “irmão”, meu aliado e meu inimigo passa por estes poderosos artefatos simbólicos da construção da identidade de grupos, a intensidade deste processo varia, podendo ser desde uma sinalização de reconhecimento do “outro” até um sentimento de identificação de uma unidade. E neste ponto que a religião exerce um papel decisivo, as vezes ao lado, outras vezes em concorrência com as noções de nação, tribo ou “sangue”. A religião define contornos de pertencimento, como também dá sentido e narrativa para interesses dispersos de determinados grupos.

Nesta corrida armamentista simbólica, a formação original do BRICS já desfrutava de relativa vantagem, porém, em sua nova formação, essa vantagem se ampliou significativamente, configurando-se quase como um cerco operacional à aliança do Atlântico Norte. Além de seus impactos mais imediatos no Oriente Médio, seus efeitos poderão ser sentidos nas novas tensões políticas no continente africano. A onda de um sentimento anti-europeu que tem se espalhado na África, especialmente na região do Sahel, pode encontrar no novo BRICS seu ponto de identidade nas disputas globais, auxiliado pelo sentimento de pertencimento religioso das massas islâmicas que compõem a maioria da população nesta região. Este elemento auxiliar da identidade religiosa, mesmo não sendo tão importante como outros interesses, pode desempenhar papel decisivo em cenários de disputa equilibrada, ou mesmo intensificar vantagens ou desvantagens no campo de disputa.

Por outro lado, uma nova frente de embates começa a se desenhar entre os blocos, referente a últimas inovações do Atlântico Norte no que tange ao comportamento humano, em especial aos papeis tradicionais de gênero e família. Baseadas nas noções de progresso e atraso que sempre fizeram parte das narrativas desse bloco frente ao mundo, e claro, de suas estratégias de dominação, na qual se colocam como a vanguarda da humanidade não só no ponto de vista tecnológico, mas sobretudo quanto à padrões de comportamento, o ocidente pressiona o mundo com sua proposta de revolução comportamental, a maneira de um “maio de 68” para todo globo. Esta empreitada, conduzida por elites culturais que em sua maioria vem dos meios acadêmicos, encontra forte resistência em setores populares, especialmente os religiosos.

No entanto, no plano global, este conflito também tem ganhado forma. China e Rússia, cada um à sua maneira, tem tomado medidas contra aquilo que entendem ser “invasões culturais externas” que poderiam desestabilizar a identidade e a ordem em seus países, alguns analistas já falam em nova revolução cultural chinesa. Na África, lideranças nacionalistas reúnem discursos homofóbicos ao discurso anti-europa, como se determinados comportamentos fossem introduzidos na África pela colonização europeia. Com a chegada das potências islâmicas no BRICS, cada vez mais vai se desenhando um bloco a fazer frente as ambições ocidentais no plano da disputa moral a respeito dos padrões de comportamento humano, aqueles que resistirem ou questionarem a visão atlanticista não se sentirão como selvagens frente a civilizados iluminados, terão um polo de potência global para sustentar suas visões de mundo e identidade.

Por Brand Arenari, doutor em sociologia pela Universidade Humboldt, Berlim, Alemanha e Professor e pesquisador do departamento de Ciência Política da UFF