A sociedade aberta mantém seus amigos perto e seus inimigos mais perto ainda: como a indústria da filantropia pode limitar a luta política da esquerda

A sociedade aberta mantem seus amigos perto e seus inimigos mais perto ainda como a industria da filantropia pode limitar a luta politica da esquerda
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Por Mary Burns – A naturalização do apoio financeiro de fundações filantrópicas internacionais ao trabalho de organizações sociais reduz o horizonte de luta às expectativas das próprias fundações, controlando o trabalho, a imaginação e a experimentação política de movimentos de base para transformá-los em instituições moldadas de acordo com a estrutura capitalista. Esse processo transforma militantes em gestores de projetos e, como se não bastasse, ainda permite aos bilionários sua aparição pública como benfeitores, e não exploradores.

No mundo feito pelo 0,1%, nada é por acaso

Dias atrás visitei um amigo e companheiro de luta para um café. Enquanto esquentávamos a água, abri o armário para pegar canecas e dei de cara com uma nova adição a sua coleção: uma bonita caneca com motivos marajoaras. Para minha surpresa, assim que a virei, a caneca revelou sua verdadeira face: era estampada com um logotipo das Open Society Foundations.

Superado o trauma estético causado pela inserção de um trabalho contemporâneo de design com palavras em inglês sobre a tradição artística marajoara, passei à reflexão do motivo pelo qual aquilo parecia tão ofensivo. À primeira vista, pode parecer uma ação inócua, um brinde qualquer. Mas quero pontuar aqui como esse pequeno ato simbólico materializa (com alça e tudo, para segurar sem queimar os dedos) um projeto de limitação da imaginação e prática política, em especial, da luta dos movimentos sociais e o campo da esquerda popular.

A sociedade aberta mantem seus amigos perto e seus inimigos mais perto ainda como a industria da filantropia pode limitar a luta politica da esquerda

A caneca foi um brinde distribuído em um evento promovido pela Open Society com o propósito de reunir projetos relacionados à região amazônica. O evento agregou pessoas que trabalham em diversas iniciativas – algumas encabeçadas por instituições renomadas nacionalmente, como ONGs, think tanks e veículos de mídia, mas também organizações com caráter de base, vinculadas a movimentos sociais – financiadas pela fundação. Neste contexto, nem os objetos são imparciais: as escolhas estéticas relacionadas a eles movimentam ideias ou, no mínimo, sentimentos (e o que a caneca da Open Society fez comigo foi o equivalente a xingar a minha mãe).

A escolha do objeto não foi um acaso: a cerâmica marajoara é uma das mais antigas tradições conhecidas no Brasil que remonta saberes do período pré-colonial na Ilha de Marajó, na foz do rio Amazonas. Atualmente, a técnica e a estamparia foram altamente difundidas (e modificadas), representando um marco visual da cultura daquele território – itens de estética marajoara são encontrados em diversas lojas de presentes da região norte, e as representações visuais se expandiram para inúmeros objetos, de uso tradicional e popular. É um símbolo de parte dos povos originários e comunidades tradicionais que contribui para o sustento de inúmeros artistas e artesãos da região.

A primeira elaboração do meu incômodo com a caneca marajoara da Open Society foi, portanto, a constatação do óbvio: a apropriação estética com feições coloniais contemporâneas. No momento histórico em que se discute amplamente a descolonização da arte, em debates sobre a presença de objetos pertencentes a países colonizados nos principais museus de nações colonizadoras, – vide, por exemplo, a devolução do manto tupinambá pelo Museu Nacional da Dinamarca ao Brasil – é bastante simbólico que, no campo da luta social, fundações estrangeiras sintam-se à vontade para inserir seus logotipos sobre signos de arte indígena. As elaborações seguintes foram desencadeadas pelo fundo ideológico representado pela distribuição desta caneca: de onde vem, em primeiro lugar, o dinheiro para tudo isso? Em segundo, qual o interesse das fundações em financiar projetos sociais?

Mas afinal, de onde vem todo esse dinheiro e por que ele é doado a projetos sociais?

Fundações como a Open Society (OSF, para os íntimos) – criadas a partir da fortuna de empresas e bilionários – financiam uma gigantesca parcela do trabalho de organizações não-governamentais e de atividades de pesquisa, além de múltiplas iniciativas de organização social ao redor do mundo. A OSF é apenas um dos braços de um complexo de fundações com objetivos semelhantes que começou a surgir muito antes dela. A Ford Foundation merece menção honrosa na prática de financiar pesquisa em ciências sociais, promovendo uma forma de legitimação “científica” de ideais políticos, por ter bancado a criação da Sociedade Mont Pelerin, organização geopolítica que reunia intelectuais como Friedrich Hayek, e Milton Friedman, Ludwig von Mises e Michael Polanyi – grandes ideólogos do neoliberalismo.

No Brasil, em particular, a OSF financia um amplo portfólio de projetos, cujos interesses contemplam desde o combate ao racismo e a defesa do meio ambiente até a formação de lideranças de esquerda. Mas por quê? Para não perder a piada, não é porque os bilionários foram um dia iluminados por um senso de justiça social que os fez tomar uma atitude para salvar o mundo, ou mesmo porque são ingênuos demais para perceber que o investimento na luta social pode acabar com a sua própria existência, a partir do momento em que desafiam as estruturas do capital. A verdade é que este modelo de filantropia permite às classes dominantes o controle da produção de conhecimento e a manutenção de seus próprios interesses, ao passo que cerceia os horizontes da inescapável luta de classes. Investir em organizações sociais em sentido amplo permite que as fundações criem seus laboratórios particulares de mudança social, mantendo influência direta sobre o exercício da política.

Para entender as funções políticas e ideológicas da indústria da filantropia, a trajetória pessoal de George Soros e a história do que hoje são as Open Society Foundations são ilustrativas. A formação teórica do jovem George passa pela London School of Economics e é marcada pela admiração por intelectuais como os já citados Friedrich Hayek e Karl Popper. Sua fortuna começa a ser construída a partir de investimentos em hedge funds, primeiramente através da especulação do mercado de petróleo e, depois, de outras fontes de energia. Em 1969 ele cria o Quantum Fund, uma off-shore (empresa de capital internacional) registrada em Curaçao que cristaliza sua vaga no seleto grupo dos bilionários. Em 1991, Soros faz seu primeiro grande empreendimento filantrópico: financia a criação da Central European University com um fundo de 880 milhões de dólares, fazendo da instituição uma das mais ricas da Europa. Seu objetivo era declarado (e segue sendo no site da universidade): fomentar pesquisas que promoveriam o fim do totalitarismo representado pela União Soviética. Em linhas gerais, a CEU foi o primeiro passo de uma longa trajetória que levou ao modelo de fundação representado pelas Open Society Foundations.

A verdade é que este modelo de filantropia, ao contrário de salvar o mundo, permite às classes dominantes o controle da produção de conhecimento e a manutenção de seus próprios interesses, ao passo que cerceiam os horizontes da inescapável luta de classes.

 

Num texto de 1997, chamado “The Capitalist Threat”, Soros compartilha a ideia geral que guia sua vocação para o investimento social privado: “quando eu fiz mais dinheiro do que precisava, decidi criar uma fundação e a chamei de Open Society Fund. Defini como seus objetivos abrir sociedades fechadas, fazer sociedades abertas serem mais viáveis, e promover o pensamento crítico (…) Eu estabeleci fundações no meu país nativo, a Hungria, na China, na União Soviética e na Polônia. Meu engajamento se acelerou com o colapso do sistema soviético e eu estabeleci uma rede de fundações que se estende por vinte e cinco países”. Na prática, Soros financia o dissenso político em várias dimensões (na Universidade, nas organizações sem fins lucrativos e da sociedade civil, nos movimentos sociais), desde que se encaixe nos limites da democracia liberal que representa sua concepção de sociedade aberta – e desde que os projetos financiados auxiliem amplamente na divulgação do logotipo da Open Society.

Por isso, vale retomarmos sua inspiração. Soros batizou a fundação em homenagem a seu mestre intelectual Karl Popper, de quem emprestou o título da obra de dois volumes, A sociedade aberta e seus inimigos. No volume 1, o inimigo era Platão, no 2, Hegel e Marx. De forma conceitual, a intenção de Popper seria criticar um certo materialismo histórico dialético, o qual ele acusa de determinista pelo esforço em identificar na história as amarras no caminho de desenvolvimento da civilização. Popper reivindica, portanto, a rejeição da perspectiva socialista e defende a possibilidade da criação de uma sociedade aberta, baseada em outros ideais, pautados na possibilidade de dar aos sujeitos o poder de determinar livremente seu modelo de organização social. Fato é que George Soros, como Popper, cria sua fundação já com alguns inimigos anunciados, entre eles nós: os marxistas.

Nesse caminho, a sociedade aberta proposta por Popper só é possível quando fundamentada pela negação dos processos históricos que determinam a divisão da sociedade de classes, ideal que, posteriormente, reafirma as estruturas que fundamentam uma sociedade regida pelas fundações. É por isso que um mundo regido pela sociedade aberta é um projeto de reprodução da própria classe dos bilionários. Se isso não é dialético…

 

Militantes ou gestores de projetos?

Retornando ao que motivou esse texto, a caneca marajoara da OSF é um símbolo material e esteticamente violento: o carimbo do logotipo interrompe a continuidade da estampa, é uma inserção disruptiva que redireciona o olhar do traço original para o nome da fundação. Ela materializa as consequências de deixar o financiamento da formulação teórica e prática da luta por mudanças sociais na mão de um conglomerado de bilionários.

A crítica às fundações, que fique claro, não é uma crítica aos projetos financiados por elas ou aos trabalhadores que se dedicam a implementar esses projetos, tanto no interior das fundações quanto nas organizações que recebem os recursos. O crescimento do terceiro setor está intimamente ligado às consequências dos projetos neoliberalizantes, do discurso da austeridade e do esvaziamento do papel do Estado no investimento social. O trabalho de organizações voltadas à promoção da justiça social e da organização de base é ainda mais importante neste tipo de contexto, mas a forma como ele se condicionou ao modelo da filantropia é passível de críticas não pelo objetivo inicial, mas pelas tendências limitantes que surgem da tentativa persistente de monopolização destas iniciativas por parte das fundações.

À primeira vista, parece maluquice negar uma doação em dólares para financiar o trabalho de uma ONG no Brasil. Mas a inserção, por aqui, do trabalho do terceiro setor na lógica da filantropia do norte global vem com uma série de cláusulas em letra pequena: exige, inicialmente, um esforço de institucionalização que não é necessariamente inerente à luta social. Contas bancárias capazes de receber pagamentos em moeda estrangeira, CNPJs (ou fiscal sponsors), pessoas responsáveis pela elaboração de projetos (em inglês) e pela implementação e monitoramento destes projetos, contabilidade auditável, relatórios periódicos à fundação etc. O produto disso é a criação de uma demanda de mercado, em que militantes se transformam em gestores de projetos. Além disso, os projetos em si passam a precisar de objetivos específicos e monitoráveis, de finalidades específicas e reportáveis, sem espaço para experimentação, como se o processo da luta não fosse tão importante quanto os resultados.

O processo entre ser escolhido ou se inscrever numa oportunidade de financiamento por fundações estrangeiras é longo e extenuante. Envolve uma série de reuniões com múltiplos funcionários, o envio de extensa documentação que comprove a idoneidade da instituição, o compartilhamento de informações sobre outros financiadores – inclusive de orçamentos concretos –, sem falar na própria parte de elaboração do projeto. Esta fase inicial, que já demanda o trabalho de múltiplas pessoas mesmo antes da entrada dos recursos, pode durar meses até a aprovação e o recebimento da doação, que implica depois em outras inúmeras atividades burocráticas não relacionadas à implementação do projeto em si, como o envio periódico de atualizações e relatórios ao financiador.

Não é preciso dizer que os projetos financiados não têm acesso algum à contabilidade da fundação, à comprovação documental de sua idoneidade ou sequer a informações sobre outros projetos financiados que não sejam dadas voluntariamente pelo próprio financiador. Enquanto isso, as fundações mantêm controles atualizados da existência, crescimento, planos e orçamento de organizações de justiça social em sentido amplo.

Todo esse processo faz com que as iniciativas financiadas sejam obrigadas a contratar equipes de especialistas em temas alheios ao conteúdo de seu objetivo inicial ou a transformar a sua rede de militantes em equipes de especialistas nas práticas burocráticas que envolvem a aprovação e implementação do projeto financiado, processo que leva tanto tempo que eventualmente ultrapassa a própria carga de trabalho orientada à concretização dos objetivos iniciais. Como se não bastasse, isso faz com que os projetos financiados se moldem à luz de estruturas capitalistas de organização em vez de questioná-las, limitando suas capacidades de imaginação política. Por fim, por obrigação contratual, todos os materiais de comunicação e divulgação relacionados ao projeto financiado devem conter agradecimentos ou alusões ao apoio da fundação. Se colonizar é invadir e controlar, não é exagero dizer que este modelo é sintoma de uma nova espécie de colonização.

As consequências disso não se limitam à regulamentação interna das organizações de luta social ou ao seu monitoramento pelas fundações. Num espectro mais amplo, o que acontece é que as fundações decidem, de acordo com a sua própria agenda, o conteúdo do que essas organizações farão e as tornam financeiramente dependentes deste tipo de recurso, limitam seus horizontes de luta por não financiarem projetos que se pretendam radicais, tomam para si os méritos do trabalho (é o logotipo da OSF na caneca marajoara, não apenas a caneca marajoara) e controlam o dissenso político para que não exceda suas próprias expectativas, além de desviar forças que poderiam ser empregadas em projetos militantes de base para transformá-las em empregados precarizados do terceiro setor.

Um aspecto perverso da dependência econômica é que esse tipo de apoio não permite planejamento financeiro a longo prazo. A organização recebe um grant que exige a contratação de múltiplas pessoas para sua execução, com prazo determinado e sem garantia qualquer de renovação. Após o término do grant, se não foi possibilitada a captação de novos recursos (o que depende do sucesso na implementação do projeto – medido pelos critérios da própria fundação — , mas também de o trabalho seguir alinhado com os objetivos dos financiadores, que mudam de acordo com o zeitgeist), não há dinheiro para manter quem havia sido contratado. O modelo da filantropia precariza os próprios funcionários das instituições apoiadas por ela.

Além disso, as fundações tiram dinheiro que deveria ser público do controle do Estado, porque ganham isenção fiscal sobre os valores inseridos nos fundos de filantropia – são, portanto, uma forma de armazenar patrimônio isento de imposto – dinheiro que poderia ser empregado no financiamento de políticas sociais –, e se transformam em projetos de limpeza da imagem de bilionários –, que não são mais lembrados pela forma exploradora com que construíram, preservaram e aumentaram sua fortuna, mas por sua louvável atuação na promoção de valores sociais e democráticos.

A crítica ao complexo das fundações não é inédita e estes argumentos foram organizados e repetidos uma série de vezes. Sua reiteração e renovação é válida porque a permeabilidade do controle das fundações no terceiro setor no Brasil, especialmente no pós pandemia, é um fenômeno sem precedentes. Esse texto é um convite a pensarmos nas consequências disso a longo prazo. Mas a curto prazo, pensarmos nos termos da relação com as fundações.

É possível que um movimento coletivo das organizações da sociedade civil em torno de mudanças na estrutura dos financiamentos recebidos seja capaz de abrir possibilidades de regulamentação do controle exercido por eles. Nesse sentido, algumas sugestões são:

  1. Demandar mais transparência das fundações em relação a seus propósitos: tornar o processo de aprovação do projeto menos unilateral e mais aberto – se você quer financiar o meu trabalho, preciso saber quem mais você financia, por qual motivo financia, com quanto dinheiro financia, e quais são seus objetivos programáticos. Se as fundações têm acesso à contabilidade dos projetos apoiados, por que os projetos apoiados não podem ter acesso à contabilidade das fundações?
  2. Pleitear mais liberdade na execução dos projetos: se o objetivo das fundações for, de fato, permitir o florescimento de iniciativas sociais que se autodeterminem, e não determinar seus caminhos, que elas exijam menos relatórios e prestações de contas e confiem na idoneidade dos projetos selecionados por elas próprias.
  3. Reivindicar o direito à experimentação: a rigidez dos fins, materializados em contrato, que devem ser atingidos pelo projeto financiado, determina a priori os caminhos que serão seguidos e engessa a possibilidade de investigar outros que apareçam, ao longo do trabalho, como mais viáveis ou importantes para sua realização. Aumentar o número de grants destinados ao financiamento geral de organizações e diminuir aqueles vinculados à implementação de projetos específicos (que hoje são maioria), reconhecendo nas próprias iniciativas financiadas a capacidade de identificar como melhor empregar os recursos de acordo com a sua estratégia de atuação, e tirando da mão das fundações o poder de pautar tão diretamente a sua agenda.
  4. Disputar o protagonismo na execução do trabalho: ainda que as fundações o viabilizem financeiramente, seus resultados são fruto da construção histórica de movimentos de luta, e não da benevolência de seus financiadores. Não precisariam, portanto, servir de suporte material da propaganda destes – desvincular da doação a exigência de ampla divulgação do logotipo ou nome da fundação e, por que não, vincular ao agradecimento pelo esforço dos trabalhadores da fundação no mapeamento das iniciativas e viabilização da doação.
  5. Postular que o comprometimento dos bilionários com a mudança social inclua a redução concreta de sua fortuna: pleitear que os fundos que armazenam o dinheiro destinado à filantropia não sejam em si fontes de investimento que restituem progressivamente os valores doados, e sim que os bilionários os tenham que alimentar com novos recursos a cada doação realizada.

Estas propostas podem ser implementadas se forem massivamente demandadas pelas instituições financiadas, equilibrando um tanto a relação de poder entre elas e as fundações. Ao invés de competir no campo da organização social com outras instituições pelo recebimento de doações, trabalhar em conjunto para que a estrutura seja mais justa para todos. A adoção de tais medidas por parte das fundações significaria um comprometimento com seus objetivos declarados de promoção da mudança social e não com o tácito controle de seus horizontes. Por outro lado, sua rejeição denotaria o consentimento com os elementos que fundamentam as críticas aqui elencadas.

A longo prazo, é claro, não se pode deixar de lado a essencial reflexão sobre outras formas de financiamento e estruturação da luta política que não passem pela indústria da filantropia e, portanto, não prestem contas a ela. Que esse texto sirva de inspiração para lembrar que, na luta de classes, nós também temos os nossos inimigos – entre eles, certamente, os bilionários.

Por Mary Burns