O ensurdecedor silêncio do Brasil perante o roubo da Eletrobras

O ensurdecedor silencio do Brasil perante o roubo da Eletrobras
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Um dos maiores crimes da história de nosso país acaba de ser cometido: o roubo da Eletrobras. Se não bastasse o tamanho do dano feito contra nossa soberania, temos ainda de levar em consideração a paz dos cemitérios que impera nas ruas frente à imensa agressão perpetrada contra o Brasil.

A Eletrobras, patrimônio do Brasil, foi roubada a olhos vistos nesta quinta-feira, 9 de junho. O próximo passo será a emissão das ADRs, espécie de ações por procuração, na sede de nossa metrópole colonial, Nova York. No entanto, essa segunda oferta é mais para sacramentar o que já foi feito. O Brasil já foi espoliado.

O processo de privatização da Eletrobras contém indícios claros de malversação, que podem auxiliar em sua anulação. O ministro do TCU Vital do Rêgo identificou 6 flagrantes ilegalidades no roubo a nosso patrimônio, todas apontando para subprecificação do fruto do nosso trabalho, além de prêmios “secretos” para os compradores por meio da internalização de dívidas de suas subsidiárias – tudo com o intuito de entregá-la mais barato para os cleptocratas financistas.

Como todo processo de privataria, a ladroagem foi escancarada. Não só o governo colonial autorizou o uso de precatórios para a doação da Eletrobras (ainda que estes tenham ficado de fora da primeira rodada de oferta de ações), como ainda permitiu o uso do FGTS como uma espécie de “opção” para compra futura das ações. A intenção é provocar solidariedade em parte da classe média e extratos de alta renda dos trabalhadores para o processo de espoliação, alavancando recursos rápidos para a rapina, como foram os financiamentos do BNDES no assalto a nosso patrimônio nos anos 90. A similaridade com a pilhagem do patrimônio soviético na mesma década não é mera coincidência; é o know-how acumulado pela cleptocracia financista em seus ataques contra o Terceiro Mundo.

O dano vai muito além do aumento na tarifa de energia, como diagnosticado no minucioso estudo do Dieese sobre o tema. No médio prazo, a privatização compromete ainda mais o combalido orçamento federal, já que, somente no período entre 2018 e 2020, o lucro líquido da estatal foi de R$ 31 bi, comparável ao valor pelo qual foi roubada. Prejudica também uma estratégia nacional de compras públicas junto à indústria nacional, pois este elemento de nossa demanda agregada será transferido para transnacionais dos países sede dos compradores. Ademais, em casos de monopólios naturais como a energia elétrica, é comum os acionistas não investirem para a ampliação da rede, ou só o fazerem às custas do orçamento público, como provavelmente será o caso após a pilhagem da Eletrobras, agravando em todo caso o subinvestimento neste setor. Para piorar, o Brasil perde o controle de um instrumento essencial de nossa soberania, o que aumenta ainda mais nossa vulnerabilidade, sobretudo porque implica a entrega do controle de massas hídricas terrestres brasileiras, haja vista o peso relativo da matriz hidrelétrica em nossa rede de geração energética.

O conjunto de “slides” preparado pela AEEL, o sindicato dos trabalhadores da Eletrobras, refuta ponto a ponto as frágeis justificativas do Ministério de Minas e Energia para a entrega do patrimônio nacional. Entre outros pontos, mostra que a relação dívida líquida x Ebitda foi calculada de modo fraudulento a fim de pintar um cenário contábil pior do que a realidade para a estatal. Ademais, o cálculo também desconsidera o valor significativo de recebíveis de curto prazo aos quais a Eletrobras tem direito, principalmente por causa da sangria de suas contas em detrimento das empresas privadas do ramo no chamado RBSE, Rede Básica do Sistema Existente, que se tornou uma forma de subsídio implícito para os rentistas.

 

O ensurdecedor silencio do Brasil perante o roubo da Eletrobras

O ensurdecedor silencio do Brasil perante o roubo da Eletrobras

Os sindicalistas também destacaram que a alegada falta de investimento da estatal para ampliação da produção e distribuição é uma meia verdade. Em primeiro lugar, porque houve expansão nas últimas duas décadas, ainda que em ritmo inferior à capacidade efetiva da estatal. Em segundo lugar, a Eletrobras teve expressiva participação na ampliação da oferta por meio das chamadas Sociedades de Propósito Específicas na qual a empresa estabelecia parcerias com a iniciativa privada. A partir de 2014, por opção política consciente do governo de Dilma Rousseff, a estatal foi impedida de participar dos novos leilões, o que solapou sua participação no mercado em favor das empresas privadas.

O ensurdecedor silencio do Brasil perante o roubo da Eletrobras

O ensurdecedor silencio do Brasil perante o roubo da Eletrobras

Como sempre, o argumento de que a Eletrobras seria um cabide de empregos é pura e simplesmente uma mentira e os dados agregados pelo Dieese são inequívocos em demonstrar a queda no número de trabalhadores da estatal.

O ensurdecedor silencio do Brasil perante o roubo da Eletrobras

Por tudo isso, é necessário que discutamos seriamente modelos para renacionalizar os ativos brasileiros roubados.

As nacionalizações da Vale, da Eletrobrás, dos poços do pré-sal, das refinarias entregues e da Petrobrás serão difíceis, mas imprescindíveis para nossa soberania. O instrumento de devolução do que foi pago envolverá criatividade institucional e jurídica, porque os cleptocratas que roubaram nosso patrimônio ardilosamente inventaram instrumentos para rapidamente dissipar o dinheiro das privatizações criminosas. No leilão dos “excedentes do pré-sal“, por exemplo, foi rapidamente dissipado na forma de bônus para os municípios e estados localizados na província petrolífera, que por sua vez transferiram esses valores para os rentistas financistas para girar a dívida pública em meio a um cenário de juros escorchantes e antieconômicos.

Como as nacionalizações envolvem expropriações que requerem pagamentos, a emissão de moeda é uma solução que concede poder decisório para os plutocratas financistas, eventualmente redundando em fuga de capitais, especulação financeira (como no caso dos subsídios para alguns campeões nacionais) e até mesmo inflação, dado o volume. A emissão de títulos públicos para este fim pode pressionar ainda mais o orçamento federal no médio prazo. No entanto, se houver uma regra específica para seu pagamento, que derrube os juros reais efetivamente pagos, pode ser uma solução.

Outra hipótese são expropriações sem a devolução do que foi pago, que soa tentadora, mas esbarra em empecilhos práticos. Efetivamente é o que vem sendo feito em parte da Rússia atualmente como resposta às agressões imperialistas na Ucrânia. No caso brasileiro, podemos com isso melindrar potenciais aliados (a China comprou o primeiro poço entregue, Libra) ou contar com a presença de um porta-aviões estadunidense na Guanabara. O atual cenário geopolítico e geoeconômico é propício, no entanto, para este tipo de movimentação. Em seu mais recente livro sobre novo padrão monetário internacional, Sergey Glaziev propõe que a substituição do padrão dólar flexível pela multipolaridade monetária pode abrir espaço para moratórias da dívida externa de países de Terceiro Mundo. Essa mesma conjuntura pode ser aproveitada para empregarmos novas instituições necessárias para as nacionalizações estratégicas que precisamos fazer. O professor Gilberto Bercovici defende uma estratégia calcada na revisão das amplas provas judiciais de fraude nos processos privatizantes, a começar por um dos mais notórios: o roubo da Vale.

De todo modo, a recente derrota mexicana em sua tentativa de recuperar o controle sobre seu setor energético nos ensina o quão temerário é permitir a entrega de setores estratégicos. A cleptocracia rentista se encastela na juristocracia e outras instituições que se furtam à soberania popular do voto, escondida atrás do véu da “neutralidade técnica”, e usa essas posições para frustrar programas patrióticos que visem recobrar o patrimônio roubado. Para piorar, o imperialismo age de modo cínico, manobrando um ecoimperialismo hipócrita enquanto por baixo dos panos usa de ameaças para achincalhar governos soberanos. Essa experiência deixa claro o que o campo nacional-popular sabe há muito tempo: não é possível tocar um programa nacionalista sem ampla mobilização popular constante. Não à toa, os intelectuais mercenários do imperialismo e do financismo difamaram esse estado de mobilização incessante como “totalitarismo” ou “populismo”. Eles temem seu potencial – e com toda razão.

Na privatização da Eletrobras, o silêncio das ruas é ensurdecedor. É impossível deixar de comparar a total desmobilização neste caso com a verborragia da retórica supostamente “radical” nas Jornadas de Junho de 2013 e ou no movimento francamente anti-patriótico contra a Copa do Mundo no ano seguinte. Enquanto o Brasil fica distraído com pautas absolutamente secundárias e com a estratégia de guerra híbrida patrocinada a partir de Washington, nossa energia elétrica, esteio central de nossa soberania, é roubada a olhos vistos – sem uma única manifestação, um piquete, uma greve, uma estrada bloqueada, uma ocupação, um manifesto de oficiais…

Até quando vamos assistir em silêncio a destruição de nosso país?