Paulo Freire e a educação pública segundo o PT

Paulo Freire e a educacao publica segundo o PT
Botão Siga o Disparada no Google News

Por Rafael Valladão Rocha – Quando se está cego pela luz da ideologia, é fácil trocar gato por lebre – ou Anísio Teixeira por Paulo Freire. O petismo celebra Paulo Freire como símbolo da educação pública no Brasil. Desconsiderando as frases de efeito inócuas (a educação não transforma o mundo, a educação transforma as pessoas…), o progressista simpático a Freire costuma pensar no pedagogo pernambucano como defensor ardoroso e infatigável da educação [1]. É esse Freire paz-e-amor que porta-vozes do PT costumam mencionar, cheios de satisfação íntima e seguros de que estão “do lado certo da história”. Acontece, porém, que Paulo Freire, nas poucas vezes em que, de fato, defendeu a escolarização universal e gratuita no Brasil, não fez mais que repetir as palavras de Anísio Teixeira. As palavras, não as obras.

Foi Anísio Teixeira quem batalhou bravamente pela educação pública, gratuita e de qualidade neste país de miseráveis e analfabetos. O mestre de Caetité bateu-se com políticos oposicionistas, dedicou-se a estudos e planos de ação efetiva, desafiou a hegemonia católica, projetou e implementou políticas educacionais sólidas e duradouras cujos frutos são colhidos até os dias de hoje. Perante a ignorância maciça que grassava na vastidão interiorana do Brasil, Anísio Teixeira lutou como pôde e estabeleceu as bases institucionais necessárias para um audacioso projeto civilizatório baseado na educação qualificada das pessoas comuns, nascidas do Oiapoque ao Chuí, despossuídas e destituídas do direito elementar à educação escolar. Tamanha foi a influência exercida pelo educador pragmático-liberal Anísio, que até mesmo o socialista libertário Paulo Freire eventualmente lhe rendeu aplausos. Freire, no entanto, pôs-se sempre na posição pouco lisonjeira de um herdeiro agradecido pelo trabalho dos antepassados e, ao mesmo tempo, incapaz de acrescentar lenha nova à fogueira.

Freire adquire notoriedade pública e influência decisiva no início da década de 70, mesmo decênio em que se apagou o vulto de Anísio Teixeira. Nesse período, o país caía no governo autoritário dos militares. Freire exilou-se em diversos países, sendo, em certo sentido, impedido de oferecer sua contribuição à continuação do trabalho iniciado por Anísio Teixeira (e pela geração privilegiada de intelectuais escolanovistas). Porém, ao retornar ao país em 1980, o pedagogo manteve parte importante de suas ideias ingênuas e inconsequentes da década anterior – como um menino imaturo que, chegando à idade adulta, insiste nas fantasias infantis. É sabido que o pedagogo clamou por uma revolução jamais concretizada, e condicionou a realização educacional do país à irrupção sumária de um movimento revolucionário. A Pedagogia do oprimido pode ser lida de muitas maneiras, mas dificilmente se poderá extrair dela qualquer contribuição à criação de instituições educacionais robustas, pois o núcleo argumentativo da obra está na recusa à aceitação das regras do jogo governamental. O livro poderia ser descartado em seguida à restauração da democracia constitucional no país, mas não foi o que ocorreu.

Vieram as eleições municipais de 1988 e a petista Luiza Erundina obteve vitória em São Paulo. Àquela altura do campeonato, era preciso limpar o entulho arenista e colocar no comando da Secretaria Municipal de Educação um nome expressivo e, por que não?, um nome subversivo. Erundina convida Freire a assumir a pasta, e então o pedagogo tem a oportunidade irrecusável de pôr as mãos na massa. As medidas adotadas pelo ícone petista não fizeram mais que criar conselhos e conselhos, no vão intento habermasiano de trocar transformação por participação. Como “símbolo da educação pública no Brasil”, Freire possui tão somente o valor totêmico a ele atribuído por intelectuais e lideranças petistas que pouco ou nada propõem de consistente para enfrentar os desafios da nossa educação escolar. A prova disso está em que o próprio partido de Freire, ao ascender ao poder, não acolhe o paulofreireanismo. Quando buscava um ministro conselheiro em assuntos educacionais, a petista Dilma Rousseff foi buscar um anisiano pragmático, e não um freireano diplomado pela USP e aplaudido por auditórios lotados de jovens militantes. Foi assim que Roberto Mangabeira Unger chegou ao governo Dilma, para dele dele sair somente quando ousou propor um plano nacional de medidas educacionais viáveis e de elevadas expectativas. A mediocridade, contudo, já havia conquistado o governo [2].

As ideias institucionais de Freire são anti-estado, dispensam ou desprezam o poder governamental como instrumento efetivo de mudança progressiva do mundo. A esse respeito, é curioso lembrar uma anedota contada pelo biógrafo Sérgio Haddad. Segundo o autor, às vésperas de Erundina bater o martelo sobre a composição de seu secretariado, Freire não estava convencido de que seria capaz de corresponder às expectativas do partido. Depois de décadas conclamando os pedagogos a uma revolução silenciosa nas salas de aula (já que a revolução armada naufragou nas águas salgadas da realidade), Freire seria jogado aos leões: estaria responsável por conduzir a educação governamental. Daí, ao receber um telefonema contendo o convite para assumir a pasta, Freire recusou a chamada, deixou o aparelho tocar sem resposta. Nesse pequeno gesto, Freire assinou um atestado de impotência diante dos problemas concretos da educação paulistana. Não por acaso, quando secretário de governo, Paulo Freire defendeu publicamente a manutenção de escolas comunitárias independentes do poder público, como se pode ler no indigesto livreto Educação e Política. Escola paralela à escola pública, sem ser um estabelecimento particular de ensino, é o quê?

Mas o vate foi persuadido e sentou-se na cadeira de secretário municipal. Em vez das armas, havia canetas; em vez dos planos de ataque, havia orçamentos; em vez do suor heroico da guerra, havia a batalha miúda e constante das atas e dos atos discricionários. Empossado secretário de educação, Paulo Freire enfrentou a oposição reacionária da imprensa, e, com essa resistência obstinada ao palavrório conservador das elites paulistas, Freire encenou seu grande ato final. Para quem não consegue propor nem realizar, resta somente fincar pé e “resistir”. A obra deixada pelo educador sequer foi finalizada, pois Paulo Freire não se acomodou na cadeira de governo e renunciou ao cargo. As teses legadas por Freire têm sido, desde então, objeto de numerosas teses e dissertações tecidas nos salões universitários. Enquanto isso, a obra institucional legada por Anísio Teixeira permanece em órgãos como a Capes e o Inep, em universidades como a UnB e a UENF, em projetos escolares como os CIEPs do Rio de Janeiro etc. Mais recentemente, o modelo praticado no Ceará, e mais especificamente no município de Sobral, é lembrado como exemplo de sucesso executado por meio das instituições governamentais, combinando competência técnica, programas de longo prazo, e coragem.

Não é razoável supor, evidentemente, que figuras igualmente influentes na história da educação brasileira pudessem ter tido trajetórias igualmente profícuas. Paulo Freire não tem culpa de ter nascido depois de Anísio Teixeira, assim como um solícito trocador de lâmpadas não tem culpa de haver nascido depois de Thomas Edison. Acontece que a campanha petista, com a finalidade legítima de defender seu totem da algazarra histérica de bolsonaristas, enveredou pelo caminho da omissão oportunista. Dizem ter sido Paulo Freire um grande defensor da escola pública, gratuita e universal, mas isto não foi nunca o centro nem das ideias nem da obra deixadas pelo pedagogo. Ao contrário, as ideias de Paulo Freire conflitam frontalmente com políticas educacionais porque estas, para choro de anarquistas e socialistas libertários, pressupõem um governo com autoridade pública.

Quando Lula se pronuncia publicamente a favor de Paulo Freire [3], ele não faz mais que endossar o coro anti-Bolsonaro, alimentando-se da polarização trágica que nos assola. É fácil opor-se à educação guiada por Bolsonaro, pois o capitão reformado desistiu de pôr em ação qualquer plano ou iniciativa de educação pública. Perto de Bolsonaro, é fácil ser a favor da escola pública, gratuita e de qualidade. É fácil, até mesmo, pintar Freire com as cores próprias de Anísio Teixeira. Mas, como diz o provérbio popular, devagar com o andor – porque o santo é de barro.

Por Rafael Valladão Rocha

Mestrando em Ciência Política, graduado e licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Professor de Sociologia e Filosofia no ensino médio.

[1] https://fnpe.com.br/ce-carta-aberta-em-defesa-da-educacao-publica-gratuita-laica-e-emancipadora-paulo-freire-presente-presente-presente/

[2] https://g1.globo.com/politica/noticia/2015/09/ministro-mangabeira-unger-pede-demissao.html

[3] https://www.metropoles.com/brasil/eleicoes-2022/lula-propora-fim-de-escolas-militarizadas-e-resgate-de-paulo-freire