Setúbal e Moreira Salles: afinidades autoritárias

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Por Roberto Bueno – O grupo daqueles que se pretendem donos do Brasil não dá trégua. Operam de longa data para que o povo brasileiro não exerça livremente os seus legítimos direitos políticos previstos constitucionalmente. São arrivistas históricos, donos do capital que passam ao largo dos dispositivos legais e constitucionais fundantes da vida nacional. O perfil típico da elite nacional objetivamente despreza o destino da vida de 210 milhões de indivíduos que hoje compõe o povo brasileiro. Mais um capítulo desta tenebrosa história foi escrito em recente entrevista concedida neste dia 28.09.2021 pelo sr. Alfredo Setúbal, Presidente da Itaúsa, controladora do Itaú, ao jornal carioca O Globo, expoente da mídia financeira.

Setúbal pertence a tradicional família de banqueiros e políticos cuja evolução no mundo das finanças conheceu sucessivos êxitos, embora existam razões para supor que nem sempre foi a habilidade para intervir no “livre” mercado o motivo do êxito. O mundo dos negócios da empresa tinha em seu vértice o patriarca, o influente banqueiro Olavo Egydio Setúbal (1923-2008), cuja família deita seus privilégios séculos atrás na iníqua estrutura sociopolítica de econômica brasileira.

Olavo Setúbal desenvolveu seus interesses econômico-financeiros articulando atividades como banqueiro e político, união nem sempre favorável aos projetos republicano-populares, tantas vezes abalroados pela união dos donos do cofre e dos controladores das espadas. Olavo Setúbal foi o pilar sobre o qual se estruturou e desenvolveu o Banco Itaú, que viria a formar a holding que conduz o grupo de múltiplos interesses e tentáculos, a Itaúsa. Sobre este império e sua confortável sombra cresceu e sossegadamente foi formado Alfredo Setúbal.

Os interesses da bilionária família Setúbal foram sobrepostos às perspectivas nacionalistas e de desenvolvimento social, assim como ocorreu com a dos Moreira Salles. Quando do golpe militar de 1964 estava em causa evitar que os interesses das multinacionais fossem afetados, mesmo que minimamente. Estas famílias compartilhavam com o golpismo a avaliação do caráter imperativo de bloquear o deslocamento até mesmo de modesto quinhão de recursos econômicos e espaço político, evitando que acabassem em mãos e sob controle popular. Exitosos, no momento posterior ao golpe militar de 1964 coincidiria com período de política econômica favorável às atividades econômico-financeiras dos Moreira Salles – caracterizadas por sucessivas compras e fusões – assim como aos Setúbal e sua casa bancária.

O conjunto de reformas ambicionadas pelo golpismo apoiado pela banca em 1964 incluía temas típicos de regimes demofóbicos que precisam da força bruta e da ascensão ilegal ao poder para aplicar suas políticas, a saber, reformas favoráveis à elite na área fiscal e ao sistema tributário, passando pelo ataque aos direitos dos trabalhadores, estabelecidos na CLT herdada de Vargas. O regime militar aglutinaria polo de poder forte o suficiente para atacar os sindicatos dos trabalhadores, e criminalizando-os assim como toda a oposição decidida a resistir à opressiva política econômica, que incluiu a revogação da legislação do Governo João Goulart que visava controlar a remessa de lucros das multinacionais para o exterior. Sob o golpe militar de 1964 a administração do Estado e todos os seus recursos deveriam ser concentrados ainda mais nas mãos da elite, entregando-os ao seu pantagruélico e insano apetite.

A Presidência de Goulart representava empecilho para a consolidação do projeto elitista-economicista enrolado na bandeira imperialista em curso sob a errática administração Jânio Quadros. O nacional-reformismo do Governo Goulart sequer a duras penas poderia ser classificado como originário de movimento revolucionário, e certamente não foi suficiente para assustar a elite, mas para mobilizar pretexto e aglutinar a sua ânsia de controle absoluto das riquezas do país e, por conseguinte, instrumentalmente, do poder político. Goulart era disfuncional para a consecução deste projeto, por nacionalista e desenvolvimentista, era Celso Furtado contra Eugenio Gudin e Roberto Campos, o Bob Field. A entrevista concedida por Setúbal ao jornal O Globo, em seus termos, revigora esta oposição.

O sr. Setúbal foi extremamente claro em diversos momentos de sua entrevista, demonstrando compartilhar sua avaliação sobre o Estado com FHC ao afirmar que “O modelo centralizador de Estado grande, poderoso, que prevaleceu de Getúlio Vargas até agora, fracassou”, e, como disse o então Presidente tucano, é preciso colocar fim à “herança varguista”, sobretudo, a um modelo de Estado que disponha de instrumentos para atender à massa da população e, para tanto, alocando os recursos necessários. Ao enfrentar este projeto, o sr. Setúbal expressa o interesse da banca em desconstruir formas de orçamento público que invistam prioritariamente no atendimento dos setores sociais carentes.

A desconstrução da “herança varguista” aponta para o empenho de estabelecer o reino das privatizações, coordenado ideologicamente pelo império desde o fatídico Consenso de Washington em 1989. Concorrência e livre mercado? Não ultrapassava a retórica. No Brasil os grandes bancos privados são contados nos dedos de uma só mão e controlam enorme fatia do mercado, ademais do Banco Central e COPOM, tendo vastíssima influência na determinação da taxa de juros e na política econômica.

Importante esforço para dissolver a “herança varguista” retrotrai à década de 1960. Neste período os Setúbal já atuavam no mercado em paralelo aos Moreira Salles, cujas casas bancárias viriam unir-se décadas após para formar o Itaú-Unibanco. Ambas as famílias de banqueiros apoiaram a ditadura militar brasileira de 1964, sobrepondo o mundo dos escrúpulos ao dos interesses da população no pior “estilo Jarbas Passarinho”, mantendo-o independentemente da intensidade do regime, de sua densidade e capacidade de causar mortes por todos os meios e formas. Tudo que parece interessar a esta tipologia de figuras é que as “reformas” sejam feitas, a respeito do que o sr. Setúbal afirmava em 2018 que o ciclo de crescimento brasileiro (estimado para algo ao redor de 3% e 4%) dependeria apenas da realização das “reformas”, recorrendo, uma vez mais, à “cenoura” colocada à frente do coelho, fazendo as reformas ocupar posição de condicionante do desenvolvimento mesmo quando já esteja sobejamente conhecido e provada a sua ineficácia em todos os lugares do mundo onde o neoliberalismo foi testado, mas ainda assim, com notável déficit de honestidade, que sob a implementação de reformas, então, o Brasil decolaria. Na prática as citadas reformas implicam expropriação, políticas que retiram a propriedade do público das mãos do Estado e as entrega para a iniciativa privada, especialmente nas lucrativas áreas que interessam aos donos do capital, a exemplo das cobiçadas áreas da previdência e da saúde.

A linha ideológica dos Setúbal converge com a então seguida por Walther Moreira Salles (1912-2001), banqueiro ligado ao grupo civil-militar que conspirou e viabilizou o golpe de Estado em 1964 assestado contra a democracia brasileira encarnada no mandato presidencial exercido por João Goulart. Mesmo tendo sido embaixador, ao final do ano de 1963 encontram-se documentados estreitos contatos de Moreira Salles a Lincoln Gordon, então embaixador norte-americano no Brasil, a quem prestou informações. As referências ao colaboracionismo golpista do banqueiro aparecem em documento confidencial datado de 26.11.1963 endereçado pela Embaixada dos EUA no Brasil ao Departamento de Estado em Washington. Moreira Salles antecipava à diplomacia norte-americana o pensamento do Presidente Goulart sobre as relações com os EUA e os seus possíveis passos em diversas matérias. Do documento consta a síntese das análises de Moreira Salles, dentre os quais, o sensível tema de possível golpe de Estado contra Goulart. Homens deste quilate e falta de compromisso com o povo brasileiro e suas instituições democráticas se avolumam na história nacional e, não raro, se associam para perpetrar os seus interesses privados. A união entre as famílias controladoras dos bancos Itaú e Unibanco é exemplificativa do pragmatismo amoral aplicado a sorte da sociedade e aos rumos do Estado.

Alfredo Setúbal é um dos bilionários herdeiros da família, sendo compreensível que ao defender seus interesses queira a terceira via, prefira João Doria na cadeira presidencial, que na avaliação de Setúbal se revela um “grande gestor público”, protagonista de um “governo excepcional em São Paulo”, mas permanecendo silente quanto a responder pergunta central: grande gestor para quem? A rigor, Doria é apenas uma versão engomada da extrema-direita envergonhada em calçar coturnos e farda, mas disposta a apoiá-los ao primeiro sinal de intempérie, esgueirando-se para passar despercebidos aos olhos do grande público mas estendendo a mão para que ergam as suas espadas contra o povo.

Neste emaranhado conservador-autoritário, banqueiros como o sr. Setúbal apenas têm olhos para números que potencializem a sua contabilidade, e por isto não deixam de aventar nomes secundários para a Presidência tais como Eduardo Leite, Luiz Henrique Mandetta e Ciro Gomes, em todo caso almejando trajetória inversa ao horizonte apontado pelo povo brasileiro, enfrentamento que une o sr. Setúbal ao vetusto projeto político do sr. Walther Moreira Salles em seu apoio ao golpe de Estado de 1964. Em sua recente entrevista ao jornal O Globo o sr. Setúbal defende a posição do capital e a maximização de seus lucros ante os mais básicos interesses públicos, e assim propõe a reforma administrativa e fiscal, ademais da dura crítica ao sistema de presidencialista, além da defesa aberta do aumento da já pornográfica taxa de juros, que não praticada em qualquer lugar do planeta que não esteja imerso em guerra aberta. Para a banca brasileira, contudo, não há taxa de juros (expropriação do trabalho) que encontre limite sequer na estratosfera senão, ao que parece, apenas ao observar sangue a escorrer na calçada. As intervenções e restrições propostas pela banca na administração pública implicam em sua virtual destruição, modelo ideal para que, no caso, possa ser realizada a transferência de significativas fatias de lucros para alguns dos tentáculos da holding Itaúsa em favor de seus associados, deslocando do controle e benefício público expressiva parte das empresas e do capital gerido pelo Estado.

Em sua entrevista o sr. Setúbal, por linhas paralelas, deixa à mostra as suas prioridades: em meio a 700 mil cadáveres manifesta que a expectativa com Paulo Guedes era “grande”, mas que houve (apenas) parcial decepção, fechando os olhos para o fato de que o Brasil foi literalmente vitimado pela dramática guerra híbrida imposta pelos organizadores do golpe de Estado de 2016. Sobre esta massa de cadáveres o sr. Setúbal encontra disposição retórica para focar méritos de Guedes afirmando que “muito foi feito, especialmente a reforma da Previdência”, exatamente a “reforma” que retirou direitos da população brasileira de forma atentatória aos princípios, preceitos e fundamentos da Constituição de 1988, mas também as constituições estaduais, sentindo-se o sr. Setúbal à vontade para elogiar o governador Leite por conseguir “fazer coisas que a Constituição gaúcha proibia, privatizações”. Mas o sr. Setúbal quer muito mais: a reforma (destruição) administrativa e tributária. Ainda assim, o sr. Setúbal chega a reconhecer que “Lula foi um bom presidente” – pelo menos até o momento em que resolveu investir na eleição de Dilma Rousseff, quando passou a “gastar demais”, mas permanecendo absolutamente cego para a presente realidade histórica de prática de toda sorte de abusos e arbitrariedades.

O sr. Setúbal apresenta o seu propósito de gestão do Estado como se fosse um banco, uma empresa privada, na qual os trabalhadores são esmagados e a única lógica é a do lucro, enquanto Lula geriu o Estado – e se propõe voltar a fazê-lo – pela lógica do respeito à dignidade dos trabalhadores e prestação de serviços públicos aos mais carentes sob a estrutura de financiamento pautada pela distribuição equitativa de custos, articulação estrutural comunitária de indivíduos à busca de fins coletivos. Tal modelo contradita com o empresarial, típico da banca, pois no modelo público a prioridade são as pessoas e o seu funcionamento implica em sua primazia em detrimento de toda versão política que apenas as conceba de modo instrumentalizado.

Quando corria o 28.11.2018 Alfredo Setúbal declarava ao jornal O Estado de São Paulo que considerava Paulo Guedes e Sérgio Moro como os dois pilares do governo Bolsonaro, o primeiro para conduzir a economia, e o segundo, como campeão para combater a corrupção. Nada menos. Acaso seria o sr. Setúbal, Presidente da controladora do banco Itaú – responsável por negócios na casa dos bilhões – alguém a ser classificado como mal informado sobre o que estava em curso na república ou acaso estava ele inserido no contexto das personalidades que participavam da trama golpista e por isto comprometido em trazer inverdades à público? Acaso o Presidente de tão expressivo grupo econômico estaria mal informado e desconhecia o real significado da Lava-Jato ou era partícipe de mais um golpe de Estado? Naquele fatídico mês de novembro o sr. Setúbal anunciava ter um “lado otimista”, fazendo fé pública de que o governo de Bolsonaro poderia “dar certo”. Em que pese tantos possíveis “se”, demonstrava forte convicção de que “muita coisa vai avançar no Brasil”.

Os “avanços” no Brasil previstos por Setúbal estiveram atrelados à farda e ao arbítrio desde o início, mas isto não era tema central em 28.11.2018, pois quando questionado pela reportagem se o preocupava que o emergente governo tivesse uma maior base militar no governo, Setúbal negava, pois, afinal “Não é um governo militar”. Em sua torcida ótica era apenas um “governo que tem mais militares, assim como no governo Lula teve mais sindicalistas”, evidenciando disposição para falsificar quaisquer fatos políticos, comparando sindicalistas civis com militares, como se houvesse termo de comparação entre a legítima ação política de civis e a intervenção de militares de todas as patentes em movimento de autêntica colonização da vida pública como sequer durante a ditadura militar aberta ocorreu. Para o sr. Setúbal esta colonização das instituições civis por militares não é problema, despreza que o espaço adequado de militares em uma democracia não deve passar dos muros da caserna.

Estes são valores comuns a gente como os Setúbal e os Moreira Salles, perfis familiares e institucionais que apresentam homens comprometidos exclusivamente com o lucro para as suas respectivas empresas, e nada mais, ao menos até o momento que o abismo ao qual lançam o país também passe a ameaçar tragá-los. O sistema democrático e a vida das pessoas? Não importa. Nestes dias é o importante líder da Itaúsa que vem a público dizer que não quer Lula, que quer terceira via, mesmo que metade dos votantes diga o contrário, que querem a opção popular-desenvolvimentista encarnada em Lula e no PT.

O projeto nacionalista petista interfere diretamente no horizonte altamente lucrativo que a banca antevê na continuidade do atual processo de saque do país. Dispondo de instrumentos e informações suficientes para antecipar quais são as variáveis e os atores foi que os banqueiros como Setúbal, ao final do ano de 2018, declaravam na citada entrevista ao Estadão que “A eleição de Bolsonaro foi pautada em mudanças da economia e do jeito de se fazer política”. Quase três anos após, em entrevista ao O Globo, ponta-de-lança da terceira via, o sr. Setúbal se permite atalhar todas as análises, e ex post facto afirmar simplesmente (quando não simploriamente) que “Lula e Bolsonaro já passaram pelos governos”, e disto extrair a consequência de que “O Brasil precisa renovar”. As “mudanças” aspiradas pelo sr. Setúbal e seus colegas banqueiros são orientadas a manutenção do Estado nacional ancorado nas estratégias globais das grandes corporações transnacionais. O desejo de “mudança” de Setúbal apenas atualiza o roteiro da elite do Il Gattopardo de Lampedusa: “Tudo deve mudar para que tudo fique como está””.

A visão do sr. Setúbal em 2018 interpretava Bolsonaro como o lanceiro da “nova política”, alguém que queria, definitivamente, “acabar com esta história de lotear o governo entre os partidos” e, revelando toda a intensidade de sua capacidade analítica, concluía que o propósito de Bolsonaro na montagem de sua equipe de trabalho era de “colocar pessoas mais gabaritadas”. Se esta é a capacidade de análise do Presidente de grande instituição bancária cuja publicidade o anuncia como um dos maiores e mais confiáveis, restaria perguntar se você confiaria os seus suados recursos a guarda de quem realiza tal interpretação do mundo político? Por outro lado, acaso o Presidente desta grande instituição realmente possua grande capacidade de antecipação e análise de cenários, e se foi capaz inclusive de antever o genocídio brasileiro, mas preferiu não evitá-lo, então, permanece a pergunta: você confiaria os seus recursos a casa bancária dirigida por tal perfil humano capaz de consumir até mesmo a vida de seus depositantes?

A posição política do sr. Setúbal que tem a pretensão de interditar o curso da política segundo os interesses populares acaso está calçada no pagamento de tributos sobre os dividendos que recebe da Itaúsa? O sr. Setúbal, efetivamente, como seus homólogos banqueiros (dentre outros bilionários) como sabemos, não recolhe tributos sobre seus ganhos, a ponto de permitir que acumule capital da ordem superior ao bilhão, de forma legal, cuja elaboração nacional é determinada pela incidência de seu poderio. Mesmo em sua condição de abstêmio tributário, o sr. Setúbal se permite liberdades inenarráveis, a exemplo de criticar eventuais déficits fiscais do Estado, o qual, de existir, certamente seria inferior acaso recolhesse tributos sobre os seus lucros na proporção que todos os trabalhadores brasileiros o fazem. O sr. Setúbal vai muito além, e ousadamente pretender determinar os rumos políticos da massa da população que, sim, recolhe pesados tributos.

Tripudiar e esmagar gente não parece distante da rotina do sr. Setúbal, pois ao relegar a segundo plano o tema, aparenta não causar-lhe estranheza a morte de centenas de milhares de indivíduos e a fome que grassa ocupa as manchetes através das fotos que reportam a busca humana por ossos como se de alimento se tratasse. Delfim Netto, Ministro da Fazenda do período ditatorial militar (1967-1974), já declarou voto em Lula, mas não o sr. Setúbal, revelando estar à direita até mesmo daquele que um dia assinou o AI-5. São extremistas de direita, bem-trajados coveiros do Estado de direito.

Por: Roberto Bueno.
Professor universitário. Doutor em Filosofia do Direito (UFPR). Mestre em Filosofia (Universidade Federal do Ceará / UFC). Pós-Doutor em Direito (Univem) (Bolsista CNPq).