O centenário da Semana de Arte Moderna e o complexo de vira-lata

semana-de-arte-moderna-1922-cartaz A Semana de Arte Moderna e o complexo de vira-lata
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O centenário e bicentenário este ano, respectivamente, da Semana de Arte Moderna e da independência política do Brasil como nação nos convidam a questionar falsas polêmicas e a destronar a ideia de que os fatos falam por si só.

Ora, os fatos se consagram como ‘fatos’ reconhecidos por interpretações institucionalizadas. Fatos considerados históricos só podem ser compreendidos se colocados numa trama de interação com outros fatos, e isso se faz a partir de determinado ponto de vista e método de análise.

Pode parecer abstrato e teórico esse pontapé inicial, mas o fato é esse: quem analisa o quê, em que condições, com quais informações, métodos e interesses, em qual contexto e oportunidade.

As celebrações da Independência e da Semana de Arte Moderna são oportunas também para comemorar um dos fatos mais recentes e importantes dos últimos anos na academia, que é o surgimento do Centro de Estudos do Nacionalismo Marechal Horta Barbosa, vinculado ao Instituto de Estudos Estratégicos (INEST) da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Como a história do passado se faz no presente, não surpreendem visões novas e polêmicas sobre o que estamos acostumados a aprender, ouvir e lembrar. Bom que seja assim à luz de fatos, informações e interpretações novas.

A história, enfim, nunca está pronta para ser retirada de um escaninho da academia ou de outras instituições. Quem narra e conta sempre tem uma intenção, ressaltando uma face do poliedro, obscurecendo outra, deixando nas entrelinhas outras e por aí vai.

Coloco a questão do nacionalismo aqui por suas óbvias relações com o tema. A polêmica (ou falsa polêmica) dos últimos dias nas redes sociais foi provocada pelo artigo de Ruy Castro na Folha de São Paulo, culminando com sua participação, nesta última segunda-feira, no Programa Roda Viva.

Resumindo, o jornalista e escritor afirma, dentre outras coisas, que os famosos da Semana de 22 eram ligados às oligarquias cafeeiras e retrógradas dos primeiros decênios da república, realçando esse aspecto do que ficou conhecido como Semana de Arte Moderna.

Castro falou de política, ótimo, mas não aprofundou a literatura. E que a Semana, segundo ele, ficou obscurecida durante cinquenta anos, sendo resgatada em 1972 durante a ditadura. Manuel Costa Pinto, um dos entrevistadores, desmontou o argumento do famoso escritor e jornalista, apontando, de forma elegante, certa malícia na conexão entre determinados fatos.

Nas redes sociais, se para alguns o tom do jornalista e escritor foi marcado por ‘carioquice’ bairrista com a finalidade de desmerecer aquele evento no Teatro Municipal de São Paulo, não se pode esquecer que o arrivismo paulista também já reverberou incontáveis vezes sua pretensa ‘verdade nacional’, contaminando, inclusive, certo carioquismo colonizado.

Não surpreenderia se alguém dissesse agora que a Era Vargas não teve importância alguma para as transformações do país porque seu líder (gaúcho) provinha de uma das oligarquias em conflito no contexto nacional da época.

Dentre outras coisas, problema de método e sempre ideológico, sem dúvida alguma, de quem pretende reconstruir e revisitar determinado fato ou cadeia de fatos. Isso, para não considerar o pior, quando biógrafos, historiadores, jornalistas e cientistas sociais recebem como ‘encomenda’ do mercado contar a história de determinada maneira e não como de fato aconteceu em suas contradições e peripécias da trama dos agentes envolvidos.

Seria pouco surpreendente também se dissessem, como já aconteceu em outras conjunturas, que o tema do nacionalismo é anacrônico, coisa de gente ortodoxa apegada ao passado diante do que chamam ‘globalização’. Não à toa, nesse contexto, de forma feliz, o surgimento do Centro de Estudos do Nacionalismo do qual faço parte com amigos e pessoas que conheci recentemente e outras que não param de chegar.

Escrevo como participante suspeitíssimo, claro, e não apenas “observador participante”, pondo minha cara à tapa para dizer que espero desse novo centro de estudos nunca cair em certas armadilhas acadêmicas e jornalísticas. Quais? Por exemplo, a dos donos da verdade, aqueles que, por se ‘especializarem’ em determinado tema ou gênero de comunicação, tornam-se ‘proprietários’ desse ou daquele assunto, lacrando ou cancelando as visões divergentes de outros especialistas e não especialistas.

Impossível não evocar Gramsci, já que o que está em jogo é sempre a hegemonia de determinadas visões sobre outras. No Caderno 11, o marxista italiano escreveu: “É preciso destruir o preconceito generalizado de que a filosofia é algo muito difícil porque é a atividade intelectual própria de uma determinada categoria de cientistas especializados ou de filósofos profissionais sistemáticos.”

No meio da polêmica, outra (ou a mesma), que é a suposta contraposição (absurda, a meu ver) em termos de ‘importância histórica’, entre a Semana de 1922 e a independência em 1822. Como se a independência do Brasil não tivesse sido, pelas mãos dos ingleses, um rearranjo da nascente sociedade de mercado, diferentemente das lutas anticoloniais posteriores dos países asiáticos e africanos influenciados pelos ventos da revolução socialista. Curioso que Ruy Castro chegou a dizer, em tom ufanista, no Roda Viva, que o “Rio era a cidade do mercado” numa contraposição ao suposto provincianismo de São Paulo.

Ponto sempre confuso em relação à inserção do Brasil no contexto internacional é a definição de “moderno” e do próprio mercado. Como se estes fossem um ‘lugar’ a ser alcançado junto às nações ‘prósperas’. Como se desenvolvimento de uns e subdesenvolvimento de outros não compusesse o mesmo fenômeno sistêmico. Como se nunca tivéssemos feito parte da tal “modernidade”, a partir do século XVI, qual seja, na divisão internacional do trabalho iniciada com a chamada acumulação primitiva do capital.

Literatura, política, estética, economia, história. A autonomia de certas dimensões da vida não afasta suas inevitáveis conexões e vínculos. Provocações com novos pontos de vista para reflexões sempre são bem-vindas. De forma sumária, duas coisas precisam ser ditas sobre o tema do nacionalismo, fazendo ou não (aparente) contrabando de assuntos em áreas de interesse (supostamente) diferentes.

Em primeiro lugar, há que se divulgar as teorias existentes sobre o tema, simultaneamente às análises de conjunturas acerca da geopolítica mundial contemporânea. Em segundo, algo que diz respeito às contradições dos complexos nacionais dentro de complexos maiores, vale dizer, das relações de interdependência com as demais sociedades.

É preciso que se lembre sempre que a questão nacional só pode ser analisada de forma imbricada aos conflitos e contradições internacionais. Que a defesa nacional só será possível se considerarmos e respeitarmos as nossas especificidades regionais internas. Isso, sem a infantilidade do bairrismo e sem o velho complexo de vira-lata que acaba promovendo a (auto) colonização interna para reforçar os novos colonialismos da expansão contraditória (sempre em crise) do sistema capitalista.

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