O segundo turno e além: o que esperar

O segundo turno e alem o que esperar
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Desde que foram revelados os resultados do primeiro turno das eleições gerais realizadas no último domingo, dia 2 de outubro de 2022, predomina amplo sentimento de derrota no seio da militância e, de maneira mais geral, dos eleitores de Lula.

Como é típico, muitos procuram os culpados pelo ocorrido e os encontram bem longe do candidato da sua preferência e do seu partido, aos quais não atribuem quaisquer erros. O fato, porém, é que esse sentimento nada mais é que o efeito da estratégia eleitoral adotada pela campanha lulista na reta final, apostando todas as suas fichas numa improvável vitória já no primeiro turno. Estratégia imprudente, pois gerou no seu eleitorado uma expectativa que acabou frustrada; e irresponsável, pois produziu a mesma expectativa no eleitorado antilulista adversário, ajudando a ampliar a votação de Jair Bolsonaro na “hora H” ao capturar muitos que, a princípio, não votariam nele, mas o fizeram por receio de uma vitória lulista acachapante.

O resultado disso foi transformar uma vitória eleitoral clara numa derrota moral. Com 48,43% dos votos, Lula de fato esteve próximo de liquidar a fatura no primeiro turno. Foi um percentual praticamente igual ao que obteve em 2006, quando era presidente e tinha a máquina federal na mão. Desta vez, Lula alcançou tal votação sem o controle da máquina e, ademais, contra o presidente incumbente, o superando por mais de seis milhões de votos, uma distância considerável. Em circunstâncias normais, estaria sendo comemorado como um excelente resultado contra um presidente que usou e abusou da máquina nos últimos meses com o objetivo de desequilibrar a disputa em seu favor, o que só não conseguiu pois não bastou para superar quatro anos de um governo que só existiu para destruir e demolir.

Em rigor, há pouco tempo hábil para Bolsonaro produzir alterações estruturais num quadro que se afigura para ele muito adverso, com elevada rejeição. Lula deverá ganhar o segundo turno, pois lhe faltam relativamente poucos votos para isso. Basta que mantenha o seu eleitorado e consiga pouco mais da metade dos votos de Simone Tebet, que obteve quase cinco milhões de votos e saiu do processo com uma grande vitória política, se lançando como um nome de proa para futuras candidaturas defensoras de um neoliberalismo “polido”, que sabe se comportar na mesa. Em tese, não é uma tarefa difícil para Lula, se considerarmos o eleitorado majoritariamente feminino e “cosmopolita” de Tebet, concentrado em São Paulo onde ela alcançou 6,34%, bem acima dos 4,16% que conseguiu nacionalmente. Um eleitorado que deverá ter grandes dificuldades para aderir a Bolsonaro.

Quanto a Ciro Gomes, seus pouco mais de 3 milhões e meio de votos, 3,04% do total, deverão se dispersar. Quem votou nele em 2018 com mentalidade mais inclinada à “esquerda”, já migrou para Lula; os mais à “direita”, tudo indica, fluíram para Bolsonaro nas últimas horas que antecederam o primeiro turno. Parece ter sobrado um pequeno “núcleo duro” de “ciristas” por convicção que, se forem coerentes como reivindicam ser, preferirão Lula no segundo turno, de quem, em completo contraste com Bolsonaro, talvez ainda possam esperar algum tipo de compromisso com algumas das teses e políticas públicas propostas por Ciro.

No último ano, defendi com aquela convicção, em diversas ocasiões aqui mesmo neste Disparada, a candidatura de Ciro Gomes. Infelizmente, porém, constato que Ciro sai dessa eleição como o grande derrotado. É o resultado inevitável da sua estratégia, não menos imprudente e irresponsável que a da campanha lulista, de “guerra total” contra Lula e o PT, sem ter a seu dispor qualquer estrutura partidária e midiática que lhe possibilitasse chances reais de prevalecer. Em 2018, Ciro obteve uma derrota eleitoral com forte sabor de vitória política e moral. Dessa vez, porém, parece ter confundido inteiramente as duas coisas, partiu para um “tudo ou nada” fadado ao fracasso dadas as desproporções de meios e sofreu derrotas avassaladoras. Não apenas no plano nacional, mas também no seu estado, onde se isolou até mesmo em relação aos demais irmãos Ferreira Gomes, por razões e circunstâncias ainda não esclarecidas, e acabou replicando a estratégia de confronto a qualquer preço contra máquinas muito mais aparelhadas.

Nesse segundo turno, em todo caso, a provável dispersão do que sobrou do eleitorado de Ciro também favorecerá Lula. Quem tem que tirar uma diferença de 6 milhões de votos é Bolsonaro, permitindo a Lula jogar pelo empate. Só vejo uma forma para Bolsonaro reverter esse quadro: convencer eleitores de Lula a mudar de lado.

Outras definições importantes virão das eleições estaduais e dos apoios dos governadores já eleitos. O mineiro Romeu Zema, reeleito em primeiro turno com facilidade contra Alexandre Kalil, já declarou apoio a Bolsonaro e rejeição total a Lula e ao PT. No plano retórico, não poderia se abster disso. Já se vai “entrar de cabeça” na campanha de Bolsonaro, é uma incógnita. Se demonstrar as mesmas prudência e sagacidade que mostrou no primeiro turno, no qual não se comprometeu abertamente com Bolsonaro enquanto Kalil “se atirou no colo” de Lula, não o fará, pois não deverá querer se indispor com o mais provável futuro presidente. Se conseguir virar Minas Gerais a favor de Bolsonaro, por outro lado, poderá se mostrar decisivo para a sua vitória e extrair, a posteriori, diversos benefícios disso.

No Rio de Janeiro, o também reeleito Cláudio Castro, em facílima eleição contra um candidato de saída inviável, não deverá se engajar muito na campanha de Bolsonaro. Nesse estado carcomido por todo tipo de crime organizado, isso nem parece necessário, pois Bolsonaro já venceu Lula por margem superior a 10%. Além disso, não é mistério para ninguém que Castro mantém relações cordiais com o PT no estado. Mais ainda do que Zema, não deverá querer se indispor com o provável futuro presidente, até porque a situação fiscal do RJ hoje é de ampla dependência da União.

Em São Paulo, a situação é diferente, pois a liderança folgada de Tarcísio, ligado ao “núcleo duro” do bolsonarismo, favorece Bolsonaro. Agora, Tarcísio deverá abraçar mais abertamente a campanha do presidente, do qual não se aproximou tanto no primeiro turno. Tarcísio tende a herdar o grosso dos votos do tucano Rodrigo Garcia, que dificilmente migrarão para Haddad. Garcia já declarou apoio a Tarcísio e “incondicional” a Bolsonaro, contrariando o posicionamento do seu finado partido, o PSDB, que declarou neutralidade. Tudo isso virtualmente garante a Tarcísio uma vitória confortável. Fernando Haddad, que nunca teve chances reais de vencer, exceto na propaganda do seu partido, terá como desafio e missão ajudar Lula a não perder por uma diferença intransponível no estado mais populoso do país, o que poderia se mostrar decisivo para o resultado final.

Na Bahia, o segundo turno com a presença do candidato petista Jerônimo Rodrigues, muito próximo da vitória sobre ACM Neto no primeiro, deverá ajudar Lula. Trata-se do quarto estado mais populoso do Brasil e do maior eleitorado do Nordeste, o que será fundamental para ajudar Lula a contrabalançar uma derrota certa em São Paulo. O mesmo papel será cumprido pelo segundo turno em Pernambuco com a favorita Marília Arraes, abertamente lulista, enfrentando Raquel Lyra, tucana que também não deverá antagonizar Lula de forma excessiva numa disputa no seu estado natal. Por outro lado, poderá prejudicar Lula a ausência de segundo turno em outros estados nordestinos populosos como o Ceará e o Maranhão, onde caberá aos governadores eleitos em primeiro turno, seus aliados, manter a mobilização dos eleitores locais. Uma abstenção elevada no Nordeste, onde Lula seguramente obterá ampla vitória, também poderia ser fatal.

Particularmente, não considerei a maior surpresa do primeiro turno o percentual obtido por Bolsonaro, que considerava claramente subestimado pelos institutos de pesquisa (projetei e comentei com pessoas próximas 40 ou 41% para ele no primeiro turno, não muito abaixo dos 43% que conseguiu). Não parece ser a realização de um segundo turno, em si, o maior problema. Há poucos precedentes de um candidato que quase obtém a vitória no primeiro turno e perde no segundo.

Com efeito, minha maior surpresa foi o êxito dos candidatos bolsonaristas no Congresso Nacional. O Partido Liberal de Bolsonaro fez 99 deputados federais e 17 senadores, as maiores bancadas nas duas casas. Seus candidatos lideraram as eleições em diversos estados, mesmo no Nordeste, que deram vitórias amplas a Lula. Outros partidos cujos integrantes, em sua maioria ou quase totalidade, se mostram alinhados com o seu governo, como PP, União Brasil, PSD e Republicanos, também fizeram grandes bancadas.

Em rigor, isso conferirá ao próximo Congresso um caráter predominantemente conservador. Para dizermos o mínimo, pois na prática, deverá se situar entre o conservador e o reacionário. Isso significa que, na hipótese de que Bolsonaro consiga virar o jogo, terá condições de fazer um verdadeiro “arrastão” legislativo, dispondo de um Congresso Nacional francamente alinhado. Além disso, reivindicará para si a legitimidade de quem venceu Lula, autointitulado “maior presidente da história” do Brasil, numa eleição. Poderá dizer que, além de Lula, derrotou também o “sistema”: a mídia, os institutos de pesquisa, o TSE, os europeus “inimigos do agronegócio”, até mesmo a explícita oposição da administração de Joe Biden nos Estados Unidos e por aí vai. Dirá – e será difícil negá-lo – que sua vitória representa a reação do Brasil “profundo”, dos valores tradicionais, cristãos, contra esse “sistema”.

Portanto, se eleito, não devemos esperar que Bolsonaro faça nada menos que arrogar para si direitos “imperiais”, considerando-se apto, por renovado mandato popular, a levar adiante e aprofundar a “revolução” que julga liderar. Vai tentar atropelar tudo e todos, e terá boas chances de conseguir. Não me arriscaria a prever o que sobraria do Brasil depois dos próximos quatro anos.

Mas e se, como considero mais provável, Lula for eleito? Ao contrário do que muitos parecem crer, não teremos nada resolvido, mas uma situação absolutamente contraditória e uma tendência, difícil de ser contida, às crises de governabilidade.

As eleições para o Congresso e o avanço dos governadores ligados a Bolsonaro mostram que os valores culturais predominantes na sociedade brasileira continuam caminhando, a passos largos, para a “direita”. Ao mesmo tempo, teremos produzido um presidente associado, embora cada vez mais simbolicamente do que na prática, à “esquerda”. De certo não terá sido a primeira vez que isso acontece, pois é possibilidade sempre aberta pelo nosso sistema presidencialista, no qual os chefes do Executivo não provém do Legislativo, tal qual ocorre no parlamentarismo. O próprio Lula já fez dois mandatos sob tais condições. Hoje, sabemos como ele o conseguiu, e não devemos crer que esse Congresso composto, em sua maioria, por políticos profissionais agindo em causa própria e nada mais, não estará disponível para compra, ganhe quem ganhar.

Todavia, é concreta a possibilidade de que Lula tenha, ao menos cerca de 1/5 da Câmara e ¼ do Senado efetivamente bolsonaristas e, portanto, permanentemente mobilizados contra si por razões ideológicas. Uma oposição que tem tudo para ser visceral e acossar seu governo incessantemente por quaisquer meios que estejam à sua disposição visando inviabilizá-lo, paralisá-lo, miná-lo. Em suma, buscando pavimentar o retorno de Bolsonaro ou qualquer um que o valha.

Assim, inevitavelmente, Lula fará um governo de altíssimo risco político. Por outro lado, será urgente retirar o povo brasileiro da crise material profunda, radical, na qual este foi lançado pelos desgovernos de Temer, Bolsonaro e Guedes. Se, da noite para o dia, Lula foi reabilitado por certos setores das elites e está prestes a ser eleito mais uma vez, não é por outra razão que não essa. Mas não se vê no radar, desta vez, uma década de “boom das commodities” que lhe permita ampliar políticas redistributivas nas margens sem mexer nas estruturas desse capitalismo improdutivo, primário-exportador, rentista e patrimonialista que nos assola. Tampouco terá à sua disposição, dessa vez, Petrobrás e Eletrobrás – a primeira, esquartejada; a segunda, entregue – para alavancar investimentos públicos como fez anteriormente. Para todos os fins, não terá, de saída, uma construção civil pesada brasileira, liquidada como foi pela “Lava Jato” cujos principais artífices acabaram de receber, do insuspeito povo do Paraná, seu agradecimento sob a forma de mandatos para representá-lo no Congresso Nacional. Lula sequer tem garantias de que controlará a moeda, o mais elementar instrumento de soberania e comando governamental, em função da chamada “autonomia” do Banco Central a qual, recentemente, ele próprio se comprometeu em manter.

Em suma, os resultados dessa eleição até aqui já mostram que, ainda que Bolsonaro venha a ser derrotado, é claro “enraizamento” do conjunto de valores associados ao bolsonarismo na nossa sociedade. A remoção dessas raízes requer, na minha visão, o êxito de um governo que se mostre francamente desenvolvimentista na condução da economia política, revolucionando, no mais curto espaço de tempo possível, as condições materiais de vida do grosso da população; e ao mesmo tempo cauteloso, ou mesmo conservador, na pauta de costumes, correspondendo ao atual movimento de recrudescimento dos valores ditos “tradicionais” na nossa sociedade. Certamente isso não virá de mais um mandato de pinochetismo reacionário comandado por Bolsonaro. Mas tampouco poderá ser produzido por Lula, cercado por forças políticas predominantemente hostis e, de saída, ladeado por próceres como Geraldo Alckmin e Henrique Meirelles, comprometido com a consagração das últimas conquistas neoliberais no Brasil.

Portanto, não é o segundo turno que mais me preocupa, mas o além. Pois ainda que Lula seja eleito, não vejo no radar qualquer coisa que indique, muito menos garanta, que serão de fato enfrentadas, muito menos superadas, as bases dessa terrível crise existencial brasileira. Muito pelo contrário.