Pós-verdade de esquerda

Pos-verdade de esquerda
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Por Eric Veiga Andriolo – Quando publiquei o livro a partir de minha dissertação de Mestrado, eu tinha motivo para fazê-lo. Era necessário falar contra as concepções rasteiras da pós-verdade e os diagnósticos rasos que circulam nas livrarias sob a pena de jornalistas, juristas e outros que se escandalizaram com as fake news o suficiente para demonizar os eleitores das direitas, mas não o suficiente para questionar suas próprias pressuposições sobre o estado da democracia.

Pós-verdade não tem campo político. É sintoma de uma crise estrutural do pensamento político do Ocidente em um mundo que evolui cada dia no sentido de destruir as ficções que sustentam a nossa institucionalidade.

Não é o resultado de ignorância, muito menos de uma suposta falta de raciocínio crítico. Não se trata de prevalência das emoções sobre a razão, pois política é sempre e em primeiro lugar o espaço de aparências, portanto afetos, paixões.

Pós-verdade não é questão de falta de Razão, e sim de falta de razoabilidade, um juízo muito negligenciado desde o Iluminismo, que é necessariamente engajado e socialmente responsável porque exige pesar os contextos, as circunstâncias e conhecer critérios de legitimação do conhecimento.

Isso não tem tanto a ver com a “arquitetura algorítmica” das redes sociais. Mas tem muito a ver com o colapso das estruturas de autoridade do mundo moderno. Falo daquela “autoridade” em sentido Weberiano, ou seja, justificação da dominação; produção de um absoluto exterior aos acordos humanos, que permite às massas aceitar a validade do poder e seu blefe de violência.

Não é possível mais vivermos a ilusão de que essas nossas repúblicas liberais sem participação efetiva são a verdadeira definição da democracia. Não dá mais para fingirmos que o jornalismo é neutro, imparcial, perfeito. Não podemos mais fazer como tantos divulgadores da ciência e dizer que o discurso científico deve ser obedecido “ou você é um ignorante”.

Todo mundo sabe que o Estado age a despeito da vontade popular, o jornalismo erra e distorce, a ciência vive produzindo bobagem. O que quase ninguém parece saber, e quem sabe não se importa em ensinar, é o porquê de essas instituições serem legítimas ainda que sejam imperfeitas.

É que a expansão de tal legitimidade exigiria a participação das massas leigas, coisa que nenhuma elite do saber ou “do poder” deseja, por mais progressista que seja. Afinal, o progresso nada mais é que uma dessas narrativas insubstanciais que garantem a superioridade moral das esquerdas desde o liberalismo clássico.

Nesta semana, após o desempenho eleitoral de Bolsonaro assustar (com razão) os brasileiros, finalmente ficou confirmado que fake news podem ser espalhadas à esquerda com igual virulência, descaso e cinismo que pela direita.

Primeiro vimos Bolsonaro e um bando de maçons diante de uma imagem de Bafomé, entidade mística que o cristianismo hegemônico trata como demônio. A Agência Lupa foi a primeira a mostrar que a foto é montagem, assim como o são falsos vários tuítes da família Bolsonaro corroborando a teoria do “Bolsonaro satanista”. Diante da farsa, ninguém está nem aí.

Ao contrário do que dizem aí afora, fake news não surgem por geração espontânea nas redes sociais. Essas campanhas são sempre muito bem organizadas, estruturadas e coordenadas, com objetivos claros e narrativas sofisticadas. A esquerda se organizou em torno de fake news exatamente como fez a direita. Não é coincidência.

A estratégia pode até vir a ser efetiva, mas o preço será alto. O campo progressista abandona talvez a última coisa de que dispunha como pauta unificadora infalível: sua autoproclamada superioridade moral, seus valores de progresso e a crença em um mundo cada dia mais racional e humano.

Afinal, e se a foto fosse verdadeira? E daí?

A maçonaria é há muito associada à imagem de Bafomé, que nessa representação não é um demônio, mas uma encarnação do equilíbrio (cabeça de bode, corpo humano; e andrógino, tanto homem quanto mulher) em uma certa teologia se diz descendente do gnosticismo, cuja interpretação de figuras mitológicas hebraico-cristãs é bastante distinta daquela do Cristianismo convencional. Bafomé é símbolo religioso, não é piada de internet.

Imagina se propaganda fosse invertida! Imagine a foto de Lula dentro de um terreiro de candomblé, diante de Exu (outra entidade caluniada como demoníaca), para escândalo dos cristãos Brasil afora. Qual seria a reação? Certamente um enorme ultraje moral por parte da oposição e da esquerda cultural. Racismo! Ódio! O Twitter iria à loucura.

Collor também foi demonizado por fazer rituais de candomblé. O diabo está sempre aí trabalhando em favor de gente que pensa que os fins justificam os meios.

É ódio religioso que chama. Sendo espalhado inconsequentemente porque atinge dois adversários convenientes: Bolsonaro e a Maçonaria que o apoiou desde o primeiro momento.

Me perguntei por muito tempo o que faria com que as esquerdas, tão zelosas do discurso moralizante, finalmente abraçarem a irresponsabilidade informativa. Seria por manipulação ou por iniciativa? A manipulação já acontece, basta ver as opiniões delirantes de ativistas a respeito da invasão da Ucrânia que correspondem, tintim por tintim, com a narrativa difundida pelo Estado russo através de seus proxies na internet.

Já o caso pensado acabou chegando pela via do desespero. Desespero de ver que mesmo depois de todas as atrocidades que cometeu, Bolsonaro ainda atrai os votos de 42% dos eleitores. As projeções e os argumentos do campo progressista mostram claros sinais de colapso e descolamento com a realidade social. E agora apela-se ao vale-tudo.

É compreensível. Parece que vale tudo para tirar Bolsonaro de lá. Tudo para não passarmos mais quatro anos no inferno em que nos metemos em 2018, quando, pela primeira vez, o bolsonarismo foi subestimado. Mas se vale tudo agora, por que é que não valeu tudo mais cedo?

Nunca podemos esquecer que a eleição é o momento do imponderável. É assim em qualquer ocasião na qual o povo constitui poder e produz institucionalidade. Têm algo em comum com as batalhas militares, que o bom general faz de tudo para evitar a menos que possa garantir a vitória com antecedência. Os governantes tendem a evitar o poder popular pela mesmíssima lógica. Quem quis disputar o bolsonarismo no voto achou que estava garantido.

Esta eleição nunca precisou acontecer. Os crimes monstruosos de Bolsonaro foram tantos, e de tamanha violência, e a República restou tão gravemente corrompida, e tantas pessoas morreram, que seria mais do que justificável fazer o impeachment. Aliás, fosse este outro país, ou o Brasil de outros tempos, teríamos visto revolta armada, atos de terrorismo e atentados contra a vida dos ministros e congressistas que sustentam o governo genocida

Para bem ou para mal, isso não aconteceu. Na verdade, a oposição nunca jogou nem um mísero ovo na direção dos ministros que produziram tamanha miséria, mesmo quando bolsonaristas começaram a cometer atentados e assassinatos. A oposição jamais se unificou pela ideia do impeachment.

A decisão de travar no voto o combate com Bolsonaro foi tomada bem antes do regime de compra eleitoreira do Congresso pelo “orçamento secreto”. Foi logo após Lula sair da prisão. O ex-presidente obteria sua redenção apoteótica, mas para isso o povo teria de amargar mais um ano e meio de destruição militante da capacidade do Estado. E tome violência sistemática contra os povos indígenas e os recursos naturais da Amazônia.

A esquerda não foi capaz de abandonar sua moderação e sua relativização diante da violência, do arbítrio e da tirania. Escolheu fingir normalidade quando nenhuma instituição mais funcionava normalmente. Porém, essa mesma esquerda é capaz de abandonar seu patamar moral diante de uma eleição presidencial que se desenrola dentro de todos os ritos democráticos, apesar dos arroubos do presidente, que vive de ameaçar um golpe que ele não tem força para dar.

Com esquerda e direita decidindo finalmente abandonar todo escrúpulo e descolar a guerra de narrativas do mundo objetivo, o discurso público caminha perigosamente para o abismo da negação da realidade. Enfim, algo que não é novidade. Há muito as direitas vivem de negação. O Partido dos Trabalhadores e o esquerdismo brasileiro também sempre adoraram suas ilusões. Todos vivem de inventar necessidades falsas, seja do mercado, da tradição, das estruturas sociais ou do progresso, para justificar o que querem fazer. É que assim não é preciso ter responsabilidade por nada: todos são culpados, ninguém precisa ser punido.

Só que sem responsabilidade não há política e, sem política, não há democracia.

Por Eric Veiga Andriolo

Cientista político e jornalista. Autor de A Estratégia Pós-verdade: táticas de deslegitimação; doutorando em Ciência Política na UFF. Colaborador do Instituto Ideia Brasil. @Eric_Andriolo