O Brasil passou do ponto de não retorno?

O Brasil passou do ponto de nao retorno
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O Brasil que saiu das urnas nesse dia 02 de outubro é um Brasil profundamente polarizado, com uma extrema-direita muito fortalecida por conta de uma capacidade de mobilização robusta somada à maior facilidade em entender as mudanças da política em tempos de redes sociais. A política é cruel: quem não se adapta à linguagem política dominante é dizimado. Pior, quem se refugia na soberba e na pretensa superioridade moral acaba tendo maior dificuldade para entender as mudanças do nosso tempo e a emergência dessa extrema-direita e a adesão cada vez maior de setores populares a esse discurso. A junção desses fatores pode determinar um caminho tenebroso para o futuro do Brasil, independente de quem vença o segundo turno. Talvez o Brasil tenha passado do ponto de não retorno, onde não há mais luz no fim do túnel no curto prazo.

Durante todo o ano, a expectativa era de uma derrota acachapante de Bolsonaro por conta da tenebrosa gestão da pandemia somada ao desempenho econômico cambaleante que entregou ao longo de seu mandato. Lula achava que venceria no primeiro turno com uma diferença substancial (alimentado por pesquisas altamente suspeitas, diga-se de passagem), Ciro e Tebet achavam que Bolsonaro já estava derrotado e era possível tirá-lo do segundo turno, mas foram esmagados pela polarização, com prejuízo maior para Ciro, que saiu atrás de Tebet nas urnas. Essa expectativa frustrada precisa ser compreendida corretamente, mas não parece ser o caso. Devemos perguntar acerca do que mantém o bolsonarismo fortalecido. Sem essa resposta, o Brasil não será pacificado.

A campanha de Lula parece insistir no erro de que a eleição deve ser transformada em um plebiscito sobre a democracia. Para isso, insiste em reunir todas as peças do sistema que apodreceu e resultou em Bolsonaro em 2018: mídia, bancos, sistema político, STF e outros. Bolsonaro se mantém forte porque é o único que adota uma retórica antissistema em um país em que a democracia falhou para a maioria de seus habitantes e que entregou uma das maiores concentrações de renda da face da terra, um judiciário que só funciona para os pobres e uma política de costas para o povo. Bolsonaro é parte desse sistema, mas consegue se vender como outsider justamente por conta dos seus adversários insistirem em forçar a polarização adotando a defesa desse sistema. Bolsonaro conseguiu organizar boa parte dos que foram jogados para fora do caminhão da democracia e montou um movimento de de massas. O que seus adversários precisam fazer?

Há um equívoco muito comum na política atual que continua tentando dividir o eleitorado em três partes: direita, centro e esquerda. Nessa visão, o político precisa moderar seu discurso para “atrair o centro” e pegar a maioria do eleitorado para si. Repetem esse discurso como o caminho da vitória para Lula no segundo turno. Essa dinâmica não funciona mais e isso já deveria ter ficado evidente desde 2018. O que move o eleitor hoje é a defesa de um conjunto de ideias e a capacidade de colocá-las no debate público para despertar a atenção da população. Na época da campanha na TV, o candidato precisava ser embalado em uma roupagem moderada para atrair os votos dos eleitores, mas essa época não existe mais. Agora, na época das redes sociais, o candidato precisa atrair a atenção dos eleitores se destacando dentre os demais. O bolsonarismo nada de braçada nesse meio, já que não se preocupa com a moderação do discurso e sai para disputar a sociedade sem medo de defender suas pautas. Enquanto isso, a esquerda recua cada vez mais em termos econômicos, achando que vai conquistar a sociedade desse jeito.

O resultado da eleição legislativa mostra bem como essa dinâmica funciona: do lado bolsonarista, mesmo ficando atrás no primeiro turno presidencial, eles conseguiram eleger 99 deputados federais e 7 senadores pelo PL, isso sem contar os deputados e senadores eleitos por partidos aliados. Enquanto isso, a esquerda festeja a bancada de 80 deputados da federação PT-PCdoB-PV sem perceber que isso é uma mera readequação dentro da própria esquerda do que tinha sido eleito em 2018. Se observarmos o desempenho legislativo da esquerda somado ao desempenho nos governos estaduais, ela não avançou um milímetro em direção a um eleitorado que ela não tinha, o que é o grande desafio para derrotar o bolsonarismo politicamente. Pensando agora em relação ao segundo turno, isso significa que o Lula precisa acenar mais ainda ao centro? Não!

Lula já colocou Alckmin na sua vice, já está circulando pelos meios empresariais prometendo manter a autonomia do BC, a privatização da Eletrobras e a privatização dos setores da Petrobras, já botou Meirelles no seu palanque e já indica que pode indicá-lo como ministro da Fazenda. O que mais falta? Prometer um cargo vitalício para o Meirelles na Fazenda? Prometer a privatização total do que sobrou das nossas estatais? Prometer a continuidade do Paulo Guedes no cargo? Os que pedem um Lula “no centro” não entendem que para fazer isso ele precisaria se deslocar para a esquerda, já que seu programa (ou falta de um) está situado hoje na centro-direita do espectro político, embora esteja embalado em uma roupagem de esquerda com direito a camisa vermelha e boné do MST. Essas pessoas não entendem que é justamente essa rendição, essa falta de disputa da sociedade que faz com que o discurso antissistema bolsonarista conquiste corações e mentes dos brasileiros esmagados pela desigualdade e pelo sistema financeiro, ainda que seja uma retórica falsa. Enquanto a extrema-direita disputa a sociedade na sua base com a retórica conservadora e cristã, a suposta esquerda disputa a cúpula do poder político e econômico, cada vez mais distante do povo. E é justamente por isso que talvez o Brasil tenha chegado ao ponto de não retorno.

A situação colocada hoje nesse segundo turno é: a continuidade de um governo Bolsonaro, o que significaria um fortalecimento da extrema-direita enquanto movimento de massas, ou a eleição de Lula, o que significaria um governo que se vende como esquerda completamente rendido aos bancos e ao sistema neoliberal. Na primeira opção, temos a continuidade da sombra antidemocrática representada pelo bolsonarismo; na segunda, temos a continuidade de um sistema econômico que está podre e que tem como produto a emergência de Bolsonaros, alimentados pelo aumento da desigualdade, pela estagnação econômica e pelo aumento da violência como consequências diretas desse sistema econômico. Na segunda opção, veremos um governo Lula que já vai começar rendido e aplicando um ajuste que vai derrubar a economia e a popularidade do governo enquanto a extrema-direita estará forte e pronta para ocupar as ruas do Brasil em protesto. O cenário é sombrio.

Existem saídas? Sim, mas ainda precisam ser construídas. A principal saída é o surgimento uma força democrática que dispute o sentido do discurso antissistema com o bolsonarismo e compreenda, de fato, o que o fez surgir e não apele para uma retórica vazia sobre democracia e fascismo que só mobiliza uma classe média ilustrada. Esse processo, infelizmente, precisa de tempo e de muito esforço para ser construído. Existe uma saída mais rápida, que seria cobrar de Lula, caso eleito, o que ele nunca fez: enfrentar o sistema financeiro e mobilizar as bases populares em direção a uma guinada desenvolvimentista na economia que consiga entregar crescimento econômico e prosperidade para a população. Nesse cenário, o crescimento econômico e a melhora na qualidade de vida podem garantir um esvaziamento da extrema-direita em suas bases.

A extrema-direita se alimenta de crises e, por isso, não podemos bancar a continuidade de um modelo econômico que se sustenta na brutal exploração do trabalhador brasileiro e só consegue entregar estagnação, desemprego e empobrecimento da população. Qualquer governo que tentar dar continuidade a esse sistema será esmagado. Sem essa compreensão ampla sobre como chegamos até aqui e sobre a necessidade de mudança, o Brasil vai continuar na selvageria em que vivemos, perpetuando a crise política e social que nos aflige desde a década passada.