Rússia, Ucrânia e o colapso do mundo unipolar do dólar

Russia Ucrania e o colapso do mundo unipolar do dolar
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Há mais de 30 anos os Estados Unidos da América assumiu a posição de Império unipolar sobre todo o planeta com sua vitória na Guerra Fria. Os acontecimentos dos últimos tempos parecem indicar que essa era se aproxima de seu fim. A recente operação especial militar da Federação Russa contra o regime de Kiev é mais um prego no caixão do mundo unipolar e neoliberal.

O mundo unipolar foi forjado à imagem e semelhança do Império Americano. As três décadas de sua inconteste hegemonia foram acompanhadas pela financeirização irrestrita da economia mundial. Uma casta parasitária se formou nos fundos, bancos, hedge e toda uma fauna ligada a Wall Street e a City de Londres, cujas planilhas de Excel eram engordadas com lucros feitos do suor e do sangue dos trabalhadores de todo Terceiro Mundo.

Desde 1971 os EUA haviam colocado o dólar como verdadeira e única moeda de toda a economia planetária quando Nixon unilateralmente decretou o fim do chamado Padrão-Ouro. Com essa medida, os demais países não poderiam mais converter os dólares que possuíam no metal precioso e o valor do dólar passou a ser fundamentado no próprio dólar.

Na prática isso significa que os imensos déficits comerciais que os Estados Unidos mantém há mais de meio século não são cobertos por nada a não ser pelo papel-moeda esverdeado impresso pelo Federal Reserve – o Banco Central dos Estados Unidos.

O que isso quer dizer? Há mais de 50 anos os Estados Unidos importam muito mais do que exportam. Para qualquer outro país do mundo isso seria um problema grave já que suas reservas de moeda estrangeira começariam a ficar rarefeitas, o que se traduziria em distúrbios potencialmente catastróficos em suas relações comerciais com os demais países.

Mas não para os Estados Unidos, porque com o fim do padrão-ouro o dólar passou a ser referência para todas as demais moedas, que para todos os fins não eram mais do que sombras imperfeitas dos papéis esverdeados impressos nos EUA. O valor do dólar é garantido em última instância pelas ogivas nucleares estadunidenses. Todo sistema internacional de tratados e instituições supostamente “multilaterais” como o FMI, o Banco Mundial, o GATT, a OMC, os acordos de Basiléia, a taxa LIBOR e etc funcionam como vigias desse domínio planetário do dólar.

Os grandes exportadores acumulam pilhas e pilhas de dólares ou outros ativos denominados na moeda estadunidense, como títulos do Tesouro ou outros instrumentos financeiros. Essas são as reservas internacionais de todos os Bancos Centrais do mundo. E esses estoques de dólares no resto do globo nunca parou de crescer. As chamadas “reservas em ouro” são somente uma pequena fração das reservas da maioria dos Bancos Centrais e somente uma parcela ainda menor está na forma metálica de fato, guardada em cofres – a maioria são papéis potencialmente conversíveis em ouro.

Foi deste modo que Wall Street se tornou senhora de toda economia mundial. As imensas quantidades de dólares empoçados em diversas localidades da Terra são “reciclados” em investimentos financeiros, verdadeiro cassino planetário. É essa “reciclagem” que traz parte dos dólares que saem dos Estados Unidos de volta para o seio do Império. Mesmo com essa e outras fontes, como a remessa de lucros pelas transnacionais ou pagamento por royalties de patentes reconhecidamente injustas, mais dólares saem dos Estados Unidos todos os anos do que retornam. Apenas no ano fiscal de 2020, esse déficit na balança de pagamentos foi de mais de 180 bilhões de dólares.

Os fundos nos quais esses dólares são depositados necessitam freneticamente criar “oportunidades” para que esse dinheiro possa ser investido em troca de uma taxa de juros considerada normal. É claro que essas “oportunidades” são calcadas na destruição econômica do Terceiro Mundo, mas também das próprias economias centrais, como deixa claro as ruínas de Detroit no coração industrial dos EUA. A economia norte-americana se tornou viciada nos déficits e, por essa razão, desindustrializou-se.

No entanto, a unipolaridade mundial começou a mostrar sinais de esgotamento nos últimos anos. A crise do subprime em 2008, quando estourou a bolha imobiliária estadunidense, deixou claro que o cassino financeiro de Wall Street não acrescentava uma grama de produtividade para a economia planetária. Nos anos seguintes, a crise se espraiou para os países europeus, mostrando sua fragilidade e dependência em relação aos Estados Unidos.

Donald Trump foi eleito em 2016 justamente com a promessa de resgatar as indústrias que o próprio neoliberalismo estadunidense havia expelido de seu território. O mandatário norte-americano entrou então em uma queda de braço com a China, iniciando a guerra comercial que ainda não acabou e que foi completamente encampada por seu sucessor e opositor, Joe Biden.

Ocorre que a margem de manobra para política econômica nos Estados Unidos é praticamente inexistente. Os pacotes de estímulo econômico de Biden se mostraram infrutíferos, traduzindo-se em inflação e ainda mais especulação financeira, como as febres em criptomoedas e NFTs. Isso se expressa num crescente conflito interno nos EUA que se torna cada vez mais patente nos profundos rachas da elite estadunidense.

É assim que chegamos ao conflito na Ucrânia.

O crescente conflito interno nos EUA se traduz em crescente irracionalidade em sua política externa, que vai até mesmo contra os interesses geopolíticos e geoeconômicos do próprio Império Estadunidense.

Parece surreal um Império ir contra os próprios interesses, mas é exatamente isso que está acontecendo. Henry Kissinger, o famigerado conselheiro de Nixon, foi o primeiro a comentar que a expansão da OTAN para a Ucrânia era contrária aos próprios interesses dos Estados Unidos porque criaria um forte receio geopolítico no alto escalão militar e estatal da Federação Russa.

Na dissolução da União Soviética, a estratégia do Império Americano foi justamente se aproximar. Aproveitando-se da corrupção de parte da burocracia soviética, as praças financeiras de Londres e Nova York ajudaram a criar os oligarcas russos, que por sua vez levaram a derrota da URSS de dentro para fora. Esses oligarcas sacramentaram sua posição com a criminosa privatização das estatais soviéticas.

Para garantir que os militares e demais homens de Estado não sentissem que a soberania russa estivesse em risco, os mandatários ocidentais asseguraram que a OTAN não se expandiria em direção à fronteira russa. Deste modo, a Rússia entraria para o sistema econômico global capitalista, com seus oligarcas integrados nas finanças mundiais exportando commodities como petróleo e minerais.

Contudo esse arranjo rapidamente começou a se desmontar. A tentativa trumpista de reindustrializar os Estados Unidos colocou o Império em rota de colisão com seu ex-aliado na parte final da Guerra Fria, a República Popular da China. Do outro lado, o esgotamento do neoliberalismo também reacendeu velhas rivalidades econômicas entre os países centrais do capitalismo. Para ficar em dois exemplos: na consolidação do setor ferroviário, o FBI interviu prendendo Frederic Pierucci, CEO da Alston, em retaliação ao veto do governo francês na aquisição da gigante europeia pelo mega-conglomerado estadunidense General Eleletric. Mais recentemente, mais uma vez os Estados Unidos prejudicou a França forçando a Austrália a revogar um acordo para a compra de submarinos fabricados pelo país europeu.

É assim que podemos compreender a dimensão energética da crise ucraniana. Os países da Europa Ocidental se tornaram crescentemente dependentes do gás natural russo, exportado por gasodutos que atravessam principalmente o território ucraniano. Merkel, que foi apelidada de “relutante líder do Ocidente” pelo New York Times, empurrou com a barriga enquanto pôde um acordo para a construção de um novo gasoduto para unir a Federação Russa com a Alemanha. Parte do empresariado estadunidense tem interesse em manter a Alemanha dependente do gás liquefeito produzido pelos oligopólios ligados ao óleo de xisto. E o Pentágono tem como norte evitar qualquer aproximação entre Alemanha e Rússia, pois a Teoria da Heartland, que inspira toda a estratégica geopolítica estadunidense, enxerga essa possível aliança como uma ameaça existencial para o domínio marítimo exercido pelo Império Estadunidense. Essas duas faces da dimensão energética foram muito bem narradas pelo professor José Luís Fiori em sua coluna para o blog Outras Palavras.

É nesse contexto que os Estados Unidos e a OTAN voltam a cercar a Rússia por todos os lados usando a estratégia que no Brasil ficou conhecida como “Guerra Híbrida”, mas no Leste Europeu é chamada de “Revolução Colorida”. Eles dão esse nome por conta de episódios como a Revolução Laranja na Ucrânia em 2004 ou a Revolução Rosa na Geórgia em 2003. O script é bem conhecido: guerra econômica para a desestabilização, ONGs estrangeiras colocam parte da classe média contra o país e então um golpe de Estado que instala um regime autoritário, neoliberal, privatista e pró-Estados Unidos no governo, tudo sob o manto de um movimento supostamente espontâneo de protestos de “massas”.

É a Revolução Laranja a chave para entender o Euromaidan exatamente 10 anos depois. Em 2004, os movimentos supostamente “espontâneos” da Revolução Laranja instalaram o governo de Yushchenko, que iniciou uma agressiva política neoliberal e de aproximação com os Estados Unidos. O resultado não poderia ser outro: a catástrofe socio-econômica levou a reeleição de Yanukovych em 2010, cujo governo patriótico e de esquerda reverteu o entreguismo da Revolução Laranja. O mapa eleitoral mostra a divisão que marcou a sociedade ucraniana:

Russia Ucrania e o colapso do mundo unipolar do dolar

Apesar das profundas raízes históricas dessa cisão (por exemplo, a Ucrânia ocidental já foi parte da Polônia e de uma antiga Lituânia), sua explicação está ligada à decadência econômica da Ucrânia pós-soviética. Nos tempos da URSS, a Ucrânia era um dos sovietes mais industrializados. Após o desmantelamento da União Soviética, a economia ucraniana foi muito mais atingida pelo neoliberalismo desindustrializante e nunca recuperou o PIB per capita de antes da restauração capitalista, ao contrário da Rússia, beneficiada por ter muito mais commodities, principalmente petróleo e gás. A Ucrânia contemporânea exporta principalmente trigo e é passagem para os gasodutos que ligam a Federação Russa aos mercados consumidores do Oeste Europeu. As províncias orientais (em azul no mapa por votarem maciçamente na esquerda em Yanukovych) são de maioria russa ou têm economia regional muito mais ligada ao gigante eurasiático (como é o caso do porto de Odessa), enquanto as ocidentais estão mais integradas como satélites europeus. Foi essa divisão que a guerra híbrida procurou exacerbar.

Em 2014, mais uma vez um movimento de massas “espontâneo” derrubou um governo democraticamente eleito colocando um governo neoliberal e pró-Estados Unidos. Dessa vez, no entanto, o novo regime foi muito mais agressivo e violento, proibindo a existência do Partido Comunista Ucraniano e massacrando sindicalistas em Odessa com recurso a milícias de caráter neo-nazista como o famoso Batalhão de Azov.

Como narra o comunista ucraniano Dmitri Kovalevich para o People’s Dispatch para o marxista indiano Vijay Prashad, foi essa repressão aos comunistas e às minorias russas no Leste Ucraniano que deflagraram a guerra, quase 8 anos atrás. A resposta russa na verdade foi moderadamente tímida a princípio, reduzindo-se a anexação pacífica da Criméia para assegurar a continuidade das suas operações navais no Mar Negro.

Foi essa repressão que levou os ucranianos do Leste a se rebelar e proclamar a independência das Repúblicas Populares de Lugansk e Donetsk. Segundo o mandatário comunista ucraniano em entrevista exclusiva para Daniel Albuquerque e Cíntia Xavier, militantes da Juventude Socialista de Niterói, essa contínua guerra é central para se compreender a operação especial russa, em contexto com as demais agressões patrocinadas pelos Estados Unidos. Aliás, a maior crítica dos comunistas tanto russos como ucranianos a Putin está justamente na demora para deflagrar a operação especial.

Acrescente-se a isso as recentes tentativas de Revolução Colorida no Cazaquistão no começo desse ano e na Bielorússia e temos um panorama geral do garrote que se aperta sobre Moscou. Nessa perspetiva, a operação especial não é nenhuma surpresa. Muito pelo contrário: explicar como Putin esperou passar 8 anos desde o golpe de 2014 é que se torna desafiador.

A crescente animosidade dos Estados Unidos em relação a China e a Rússia fez as duas potências se aproximarem. Aqui é importante registrar que pela imensa maioria da história, Rússia e China foram inimigos ferozes. No século XIX, ocorreram diversas escaramuças entre as duas nações. Durante o processo revolucionário nos dois países, a Rússia Bolchevique anexou grandes porções territoriais da China (principalmente o soviete de Tuva) e o Império do Meio jamais engoliu a independência da Mongólia e a tomada de boa parte da Manchúria Exterior pelos russos nos anos 1850. No final da Guerra Fria, a China chegou a se aliar explicitamente com os Estados Unidos, fazendo uma guerra com o Vietnã, então aliado da União Soviética, em nome de seus novos parceiros, em 1979.

A aproximação dos dois rivais foi um longo e cauteloso processo, que culminou na formação da Organização para a Cooperação de Xangai, um bloco tanto político como econômico e militar. Além dos dois gigantes asiáticos, Índia e Paquistão, que também são inimigos históricos, estão juntos nessa mesma organização.

Os pacotes de sanções impostos à Federação Russa por parte das potências ocidentais são o ponto mais surpreendente de toda a agressão imperialista contra a nação eurasiática. Michael Hudson em sua coluna para o “The Saker” ilustrou bem os efeitos dessas sanções: é como nas tragédias gregas quando o rei ao tentar evitar seu destino trágico acaba justamente por provocá-lo.

O desligamento dos bancos russos da plataforma SWIFT, que operacionaliza internacionalmente as transações entre diversas instituições financeiras, teve um duplo significado. Em primeiro lugar, enfraqueceu o poder dos oligarcas russos em relação a Putin, um típico líder populista terceiro-mundista em luta pela soberania de seu país. Em segundo lugar, fortaleceu ainda mais a aliança entre Rússia e China, pois a República Popular passou a ser o principal parceiro econômico estratégico dos russos.

Na grande escala, o que testemunhamos é o debacle da hegemonia do dólar, esteio da Economia Política do Mundo Unipolar e do neoliberalismo. É por isso que começamos este longo ensaio pelo papel do dólar na economia mundial: o principal salto qualitativo que a história deu com a resposta russa à agressão estadunidense está no colapso do domínio completo do dólar em escala planetária. Com isso, os imensos estoques de dólares empoçados em todo mundo se tornam um problema ainda maior.

A Arábia Saudita anunciou recentemente que poderá aceitar yuans, a moeda chinesa (cujo nome oficial na verdade é renmimbi, mas pouco usado) em troca de seu petróleo. Caso isso se confirme, se juntará ao rol de investidas contra a hegemonia do dólar por parte de países muito mais ligados à Cooperação de Xangai do que ao decadente Ocidente desindustrializado listados por Pepe Escobar para o The Cradle. Os acordos com Irã e Afeganistão caminham exatamente nesse sentido.

Se geoeconomicamente assistimos à decadência do dólar e suas instituições correlatas, geopoliticamente ressurge um polo alternativo aos Estados Unidos e seus vassalos europeus. A Argentina, por exemplo, teve apoio chinês em sua justíssima reivindicação às ilhas Malvinas ocupadas pelo Império Britânico e o Brasil acertadamente procurou apoio russo para a construção de Angra 3 com uma parceria entre a Eletronuclear e a Rosatom e para o programa do submarino nuclear brasileiro.

É claro que a construção de um multipolar não é um processo sem possíveis tropeços. Como argumenta Pedro Marin para a Revista Opera, o tempo corre contra a Rússia na operação especial. Putin precisa de uma vitória rápida e uma possível estratégia de insurgência na Ucrânia patrocinada pela OTAN pode prejudicar no longo prazo a estabilidade russa. Além disso, a assimetria entre as indústrias russa e chinesa pode levar a um processo de satelitização econômica da Federação pela República Popular, desarranjando a aliança entre os dois rivais históricos.

De todo modo, assistimos à rápida putrefação do Império Estadunidense e da hegemonia do dólar. O que fará o Brasil nessa nova quadra histórica?