Racismo não é liberdade de expressão: Ludmilla vs. Val Marchiori

Botão Siga o Disparada no Google News

O Estado Democrático de Direito estabelece que as pessoas devem ser tratadas com mútuo respeito em relação a sua cor de pele, religião, classe, bem como a todos deve ser garantido segurança, saúde e liberdade, na medida em que outros não sejam oprimidos. Esta última parte é essencial, porque não é possível reconhecer igualdade e liberdade, quando ela se fundamenta na inferiorização ou subjugação de um grupo. Se da opressão de um grupo é construída a liberdade ou a riqueza de outro grupo, isso pode ser tudo, menos justo ou democrático.

Paulo Bonavides afirma que o Estado Democrático é irmão gêmeo do Estado Social, e que “sua legitimidade procede da natureza do gênero humano, bem como do ser, de todo em todo, equivalente a um pensamento de justiça” (p. 18), bem como “amortecer a luta de classes e promover, entre os homens, a justiça social, a paz econômica e transformação superestrutural” (p. 182).

Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988, em razão das reivindicações do movimento negro e dos movimentos sociais, trouxe em seu preâmbulo, após período de 20 anos sob o governo autoritário e antidemocrático da ditadura militar, o seguinte enunciado:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL (g.n).

Desde então, o Estado brasileiro tem por fundamento a garantia da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da CF), por objetivo o fim das desigualdades sociais (art. 3º, inciso III, da CF), o repúdio ao racismo (art. 4º, inciso VIII, da CF), a igualdade (art. 5º, caput, da CF) e estabelece que a “prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei” (art. 5º, inciso XLII, da CF). Para além disso, o Brasil ratificou tratados internacionais de Direitos Humanos, como a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, assinada em 1966, e ratificada em 1969 pelo Brasil, Decreto n. 65.810/1969.

Kabengele Munanga diz que Abdias do Nascimento, em meados da década de 1970, afirmou que o Brasil é plurirracial, de modo que “ou a sociedade brasileira é democrática para todas as raças e lhes confere igualdade econômica, social e cultural, ou não existe uma sociedade plurirracial democrática” (MUNANGA, 2020, p. 91).

O Brasil se alinhou formalmente ao esforço internacional de combater os comportamentos racistas e preconceituosos, em razão das forças sociais das lutas e reivindicações do movimento negro. No entanto, essas normas têm carecido de efetividade, já que o racismo ainda é normal e natural nas relações sociais.

Silvio Luiz de Almeida (2018, p. 25) afirma que o racismo é a prática sistemática de discriminação consciente ou inconsciente com fundamento na raça, e que não precisa de intenção. Desta forma, ainda que haja argumentos de que não houve dolo na ação racista, não quer dizer que não houve crime.

Da mesma forma, argumentos de que atitudes e comportamentos racistas aconteceram em ambientes humorísticos, em programas televisionados ou em brincadeiras não justificam a discriminação a partir de estereótipos ou fenótipos raciais (MOREIRA, 2019).

Quando esse comportamento é realizado por jornalistas, o crime é escondido sob a liberdade de expressão, como garantia constitucional. Porém, não há contradição quanto aos preceitos de Estado Democrático, visto que este, em sua totalidade, deve estar alinhado ao fim de toda forma de violação de direitos. Quer dizer, não é aceitável nenhum direito que ultrapasse o limite do direito do outrem. Não há direito se isso viola o direito alheio.

A liberdade de expressão não é universal, porque enquanto direito individual sofre restrição para que não seja usada para violação do direito à honra, para defesa de crimes e nem discurso de ódio, conforme o artigo 19 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966, Decreto n. 592/ 1992.

Art. 19 §1. Ninguém poderá ser molestado por suas opiniões.

§2. Toda pessoa terá o direito à liberdade de expressão; esses direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, de forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha.

§3. O exercício de direito previsto no § 2 do presente artigo implicará deveres e responsabilidades especiais. Consequentemente, poderá estar sujeito a certas restrições, que devem, entretanto, ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para: 1. assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas; 2. proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral públicas (g.n).

Ludmilla Oliveira da Silva, mulher negra e cantora, que desfilava pela escola de samba Salgueiro, durante o carnaval de 2016, foi verbalmente agredida pela comentarista Valdirene Aparecida Marchiori (Val Marchiori), que comentou que o cabelo da cantora naquela ocasião parecia “bombril”. Não aceitando o comentário com fundamento racista, Ludmilla ajuizou Ação Civil de Indenização por Danos Morais, que foi julgada procedente em primeira instância.

Houve recurso, e na decisão de segundo grau da Décima Quarta Câmara Cível, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, processo de apelação n. 0002021-46.2016.8.19.0207, e o entendimento do Relator Francisco de Assis Pessanha Filho foi de julgar a ação improcedente por unanimidade, sob o argumento de que a opinião da Val Marchiori é permitida “em observância à liberdade de informação”, e que “entender de modo diverso seria o mesmo que impedir a efetivação do pluralismo de ideias, restringindo a manifestação social que, inclusive, é fundamental para a garantia da propagação das atividades artísticas e culturais exploradas pela própria autora/apelada” (fl. 15).

Conforme mencionado, não há conflito entre liberdade de expressão e violação à honra, mas sim notável violação de direito, bem como manifestação do que cientificamente é caracterizado de racismo, uma vez que opiniões com fundamento racista são violentas e traumáticas, como apontado por Grada Kilomba.

Por causa do racismo, o cabelo crespo era visto como feiura, sujeira, desordem, inferioridade e não-civilização, de modo que foi classificado como “cabelo ruim”. Comparar o cabelo de mulheres negras a bombril é resgatar o estigma da colonização, que reproduz um padrão de beleza europeu, e retira a condição de sujeito das pessoas negras.

Adilson Moreira afirma que “uma análise do conteúdo de piadas racistas demonstra que ele perpetua os mesmos elementos que estavam presentes em políticas públicas de caráter eugênico destinadas a promover a eliminação da herança africana por meio da transformação racial da população brasileira” (MOREIRA, 2018).

Quando um desembargador afirma que se verifica “inocorrência de vilipêndio à honra”, ele está avalizando a reprodução de discriminação racial nas relações sociais, e seu comportamento também é uma evidência da falta de integridade e conformidade com as normas de proteção dos direitos humanos, dentre elas as normas antirracistas.

Que essa decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro seja revertida pelo Supremo Tribunal Federal e, caso ainda seja mantida, que a questão seja levada à Corte Interamericana de Direitos Humanos.

***

Referências bibliográficas:

– ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é Racismo estrutural? Belo horizonte: Letramento, 2018.

– BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7ª. Ed. Malheiros: São Paulo, 2001.

– KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. 1ª. Ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

– MOREIRA, Adilson. Racismo recreativo. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

– MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: Identidade Nacional versus identidade negra. 5. Ed. rev. amp., 2 reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.

O DISPARADA ESTÁ DE CARA NOVA!
Anterior
Cara Nova!