Quem diz o Direito, por que, para quê e para quem o diz?

Quem diz o Direito, por que, para quê e para quem o diz?
Imagem: UNSPLASH E MARIA OSWALT
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A imprensa brasileira tomou de surpresa a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos, órgão máximo do Judiciário deste país, que na sexta-feira (24 de junho de 2022) reverteu uma decisão tomada em 1973 (Roe v. Wade). A decisão de 2022 (Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization) entendeu que é constitucional a lei de um Estado que proíbe a realização de aborto. No caso, foi julgada como válida uma lei do Estado do Mississipi de 2018.

Ainda na quinta-feira (23), a mesma Suprema Corte havia ampliado o Direito de porte de armas no referido país. No caso New York State Rifle & Pistol Association, Inc. v. Bruen, a Corte decidiu que o direito constitucional de um cidadão estadunidense estar armado não se restringe à posse de arma (direito de ter em casa uma arma), mas deve ser ampliado ao porte (direito de carregar uma arma também fora de sua casa). A decisão amplia, portanto, o que havia sido determinado em 2008, no caso District of Columbia v. Heller (que permitia a posse de arma).

Esses dois casos poderiam levar à conclusão (como demonstraram algumas opiniões em jornais de grande repercussão) de que esse retrocesso em direitos e proteções sociais são uma consequência do governo Trump nos Estados Unidos, que teria deixado uma Suprema Corte mais conservadora. De fato, esse conservadorismo na escolha dos juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos ocorreu e nunca foi escondido que seria essa a vontade do antigo presidente. Entretanto, o conservadorismo da Corte não é causa, mas consequência do maior problema (assim como as recentes decisões).

Ambos os casos foram, segundo as decisões majoritárias da corte, definidos conforme os direitos constitucionais. Para a decisão sobre o porte de armas, a corte entendeu que a segunda emenda dá o direito aos cidadãos estadunidenses de “ter e levar consigo armas” (“keep and bear arms”). Assim, a maioria concluiu que “levar consigo” (ou “carregar” – “bear”) seria obviamente referente ao porte de armas, e também que as armas de fogo são “armas ‘de uso comum’ atualmente para defesa pessoal”. Isso, segundo ressaltaram alguns veículos de mídia, em um país que a violência por armas cresce cada vez mais e logo após mais uma tragédia anunciada que vitimou crianças em um escola.

Já o caso que permitiu aos Estados proibirem ou restringirem o direito ao aborto foi tida com base na separação dos Estados. Isto é, ao “proibir a proibição” (confusão textual causada intencionalmente por este que escreve) em todo o território nacional dos Estados Unidos e, assim, reverter o casos Roe v. Wade, a corte entendeu que era direito dos cidadãos de cada Estado eleger políticos que pudessem debater sobre temas tão sensíveis à comunidade. Caso os Estados não pudessem proibir (ou restringir, como foi o caso do Mississipi, que chegou ao julgamento da Corte) o direito ao aborto, as ideias de parcela da população não poderiam entrar em debate nos parlamentos.

Deixo de lado, por enquanto, a incoerência da corte de um caso para o outro para informar que, neste texto, não vou adentrar nenhum dos temas específicos (porte de arma, armas de fogo como proteção pessoal, ou direito ao aborto). Entretanto, deixei bem claras as minhas posições quando (alguns parágrafos acima) mencionei as decisões como retrocessos. Entendo serem isso: retrocessos civilizatórios.

Na decisão (em seu voto), o juiz Clarence Thomas afirmou que a Corte estava corrigindo o erro do caso Roe v. Wade. Mais que isso, ele afirma que a Corte deveria empenhar-se a corrigir outros “erros” (assim entendidos os direitos garantidos ao longo dos anos pela mesma Corte), como o casamento entre pessoas do mesmo sexo (2015), o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo (2003) e o direito à contracepção (1965). Na versão final da decisão, porém, o juiz Samuel A. Lito fez constar (o que foi concordado pelo juiz Thomas) que a decisão não deveria ser entendida como motivo para causar dúvidas sobre outros precedentes da Corte.

Contudo, junho de 2022 não é o primeiro momento em que se fizeram revisões de direitos há muito conquistados nos Estados Unidos. Sob o mesmo pretexto de proteger o direito dos Estados na separação que configura a Federação dos Estados Unidos, uma decisão ainda mais apertada (desta vez por 5 votos contra 4) reverteu não uma decisão antiga da própria corte, mas um direito legalmente conquistado. Em 2013, no caso Shelby Count v. Holder, a corte declarou inconstitucional partes do Voting Rights Act de 1964, legislação que, após mais de 150 anos da existência do suposto país mais livre do mundo, garantiu sufrágio universal (direito universal ao voto).

Em uma reedição da guerra civil estadunidense (1863-65), na qual a Suprema Corte reverte o resultado oficial e faz prevalecer que a divisão dos Estados têm maior garantia que a União (letra maiúscula proposital), foi permitido aos Estados restringirem o direito ao voto. A ação (após a decisão) foi rápida nos Estados sulistas dos Estados Unidos; a reação, nem tanto. Como reação, porém, foi vista em 2020 a imensa mobilização de jovens negros no Estado da Geórgia para garantirem os requisitos legais (configurados por aquele Estado) para o voto de grande parte da população. Não fosse isso (o esforço dessa juventude e de mais outras), as eleições daquele Estado e, talvez, para a própria presidência dos Estados em 2020 teria sido outro.

A lógica das três decisões possuem distinções: a de 23 de junho de 2022 entende que há prevalência de um direito constitucional (posse e porte de arma) que deve ser amplo; a de 24 de junho de 2022 entende que o direito ao aborto não está garantido na liberdade (14ª emenda) que a constituição daquele país garante, devendo prevalecer o debate político regional; a de 2013 anula parte de uma lei federal por entender que o voto (essência mínima da democracia liberal) é menos importante, para constituição daquele país, que a separação/independência dos Estados (debate político regional).

Talvez, a decisão que melhor explique o contexto jurídico atual (que se replica para o Brasil) seja justamente a de 2013. Embora em todas vejamos a insegurança jurídica, as duas decisões de 2022 revertem entendimentos da própria corte, enquanto a decisão de 2013 invalida (em comparação à constituição daquele país) parcela de significante importância de uma legislação vital para a democracia estadunidense. Longe de ser um país onde impera a justiça ou a igualdade, os Estados Unidos passaram dos linchamentos e da vigência das leis Jim Crow no início do século XX, a possibilidade de os negros votarem em todos os Estados na década de 1960 através do Voting Rights Act.

Após muita luta política, houve um avanço mínimo em 1964, o qual permitiria aos negros e negras o direito legal de participação na política institucional. O recado que a decisão da Suprema Corte passa (com a decisão de 2013) é de que a liberdade formal é mais adequada à constituição dos Estados Unidos que a liberdade substantiva ou concreta. E, mais que isso: não será a luta política quem dirá qual a interpretação da constituição ou da liberdade, mas serão as Cortes. Independentemente da alteração legislativa que se faça (exceto, talvez, para as difíceis aprovações de emendas constitucionais), são as Cortes que darão a interpretação ou, no entendimento do juiz Thomas, corrigirão a interpretação.

São as Cortes, portanto, que dizem o que o Direito é (e o que será do Direito). Em que pese haver eleições para juízes nos Estados Unidos, isso não torna o Judiciário do país um corpo mais democrático que outros judiciários (lembrando que o problema de exclusão democrática é originado no ensino do direito). A Suprema Corte, por sua vez, como qualquer órgão ou ente institucional, tem uma representação majoritária (se não integral) pela elite – seja elite politica, juridica, social ou econômica (sendo que todas, geralmente, são a mesma coisa ou estão conjugadas).

Dificilmente, as Cortes tomarão decisões que contrariem as vontades dessas mesmas elites. As exceções acontecem com muita luta política, mas (como o cenário atual demonstra) podem ser tranquilamente revertidas. Os retrocessos também ocorrer sem o apoio integral dessas elites – a título de exemplo, a decisão que permite a proibição do aborto foi bastante criticada pela congressista Ocasio-Cortez, por Michelle e Barack Obama, Bill Gates, entre outros.

O que não se pode negar é que há, também, manifestações com grande número de pessoas em apoio às pautas conservadores. Em tempos de divisão política tão acirrada quanto a que temos atualmente, é muito importante para as Cortes que as decisões sejam apoiadas por parte (ainda que pequena) da população – assim, haverá quem defenda essa decisão (e a retirada de mais direitos) em debates públicos.

Para as elites, ou para os agentes públicos enquanto executores das leis (law enforcement agents), o Direito afirmado (veja: não é “criado”) pelas Cortes respalda as atitudes excludentes ou de manutenção do status quo. Não há necessidade da criação de aparelhos repressores (além dos existentes e tolerados) para que a situação de conforto dessas elites se perpetue. Há, então, uma dupla proteção: diz-se o Direito para a manutenção desse status e para a proteção política da imagem daqueles que estão apenas exigindo algo ou agindo em nome da lei.

Do mesmo modo, quem age em nome do que entende como justo pode ser considerado um “fora da lei”. Esconder judeus, na Alemanha nazista, para que não sejam levados para campos de trabalho, concentração ou extermínio; falsificar papéis de alforria de negros escravizados nas colônias inglesas, portuguesas ou espanholas; ou praticar aborto em uma mulher ou criança que poderia perder sua vida, em um Estado dos Estados Unidos que proíba todo e qualquer tipo de aborto (o aborto espontâneo, quando a gravidez é interrompida sem intenção, não se traduz para o inglês como “abortion”, mas como “miscarriage”). Todos esses são exemplos de atos que podem parecer justos, mas também podem ser vistos como crimes.

A diferença entre as decisões da Suprema Corte (votos, armas e aborto) é nítida: as pautas entendidas como conservadoras para as sociedades ocidentais ou ocidentalizadas estão sendo privilegiadas. A liberdade tão defendida, portanto, é contra as pautas progressistas (que em alguns lugares guia até mesmo os liberais). Isso, porém, não é consequência do governo de Donald Trump. Esse governo foi, na verdade, uma consequência de um problema social maior – cujo tamanho é revelado pela eleição de 2016 nos Estados Unidos e pela rejeição do atual presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e cuja extensão é, ao menos para nós brasileiros, demonstrada pela eleição do atual ocupante da cadeira do Executivo Federal.

A decisão que permite restringir o direito ao voto é de 2013 e, então, do início do segundo governo de Barack Obama. Ali, portanto, ainda que de uma maneira mais moderada (votações por 5-4 em vez de os atuais 6-3), já havia um contexto pró-conservador. Mesmo com a conquista de 2015, através decisão da mesma corte, que entendeu como válido o casamento homoafetivo naquele país, é impossível negar o crescimento da onda de conservadorismo.

A saída progressista deve ser a pressão política. A inegável força do lobby efetuado pelas grandes empresas que podem afetar pautas ou contextos sociais (ainda que em diversos casos o pink money ou green money altere esses posicionamentos), pode ser contraposta com um “lobby social” (eleição de pessoas que estejam comprometidas com pautas sociais e/ou com o povo e que possam, a partir disso, ser pressionadas para manter o mesmo comprometimento após eleitas). As pautas também não podem se restringir a medidas urgentes ou imediatas, pois estas podem ser revertidas em um futuro próximo ou não tão próximo.
Não é possível, também, acreditar que o que se conquistou como direito está garantido, pois a vontade que os despossuídos têm para conquistar direitos é equivalente à vontade dos possuidores para manter seu conforto. Os progressistas devem saber, ainda, como pautar o Direito, ou como dizê-lo. No limite, é necessário repensar e reconstruir como se faz e como se diz o Direito.

Faço uma pequena observação após o encerramento do texto:

Em todos os casos, além de outros juízes, é possível encontrar o juiz Clarence Thomas no bloco que produziu o que chamamos no Brasil de voto vencedor. Nomeado por George H. W. Bush (ou Bush pai) para a Corte, Thomas é republicano, conservador (ou reacionário) e negro. Ressalto essa última característica (a qual compartilho com ele) menos pelo fato de que o voto dele em 2013 foi um duro golpe nos direitos conquistados pelas lutas das quais Martin Luther King Jr. e Malcolm X são representantes, e mais para destacar que ele é o nome que mais repercutiu após as decisões de 2022. A repercussão de seu nome nas grandes mídias deste e daquele país apoiam-se nas suas declarações contra outros direitos garantidos pela Corte, mas, sem qualquer dúvida, propagam-se para a demonstração de que se espera dos negros a “falha”.

Assim como no Estado sequestrado brasileiro houve diversos ministros (Salles, Weintraub, Veléz Rodriguez e Damares) que mentiram nos seus currículos, mas somente um não chegou sequer a ser empossado (Decotelli); assim também nos Estados Unidos é o negro que não poderá agir contra o que se é esperado (ainda que inúmeros brancos façam a mesma coisa). Aproveito, então, apenas para destacar que, assim como há dentre os brancos, os negros são plurais e habitam todos os espectros da racionalidade. Mas isso é tema para outro texto.