As instituições estão funcionando normalmente

As instituições estão funcionando normalmente
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Por Juliana Leme Faleiros – Numa matéria-denúncia, “The Intercept Brasil” e “Portal Catarinas” trouxeram à tona o caso da menina de 11 anos na Comarca de Tijucas/SC que teve o direito ao aborto negado. Houve, na verdade, uma sucessão de práticas violentas pelas instituições pela qual passou: o hospital que a atendeu disse não ser possível o abortamento dado o período gestacional, sendo sabido que a cada semana que passa maior o risco de a menina vir a óbito; a juíza Joana Ribeiro Zimmer que induziu a criança a levar adiante a gestação perguntando-lhe se aguentaria mais um pouquinho (!) e se o pai da criança (!) aceitaria dá-la em adoção; a promotora de (in)justiça Mirela Dutra Alberton que insistiu com a menina que aborto é homicídio.

Não bastasse a tortura vivida pela menina, a mãe também sofreu práticas similares, pois, tendo a filha afastada do lar, tentou mostrar à juíza que sua opinião sobre o abortamento – “uma crueldade imensa” – desconsiderava em absoluto o que ela estava passando com a filha. Não satisfeita em emitir opiniões onde não lhe foram solicitadas, a juíza prosseguiu dizendo que a tristeza delas seria a felicidade de um possível casal que hipoteticamente poderia adotar o bebê.

Em defesa do feto, que as pessoas antiescolha insistem em nomear como criança, distorcem a realidade, justificam o injustificável, descumprem a lei e cometem crimes à luz do dia contra as pessoas – crianças e adultos -, como neste caso. Em defesa da suposta criança, abstraem que a própria gestante é uma criança. Parafraseando Sojourner Truth: e ela não é uma criança? De qual criança essa gente “de bem” está falando?

A repercussão dessa tortura foi amplíssima e, por isso, a criança foi retirada do abrigo e o abortamento foi realizado. Ainda assim, permanece o engulho, a indignação e a dificuldade de articular em palavras todo esse sentimento de impotência, ódio e nojo pelas instituições.

Em 2016, a ONG “Save the Children” divulgou um relatório no qual o Brasil ocupava a última posição na América do Sul para ser menina. Entre 144 países, o Brasil situa-se no 102º lugar a respeito do desenvolvimento de meninas levando em consideração o casamento infantil, gravidez na adolescência, mortalidade materna, conclusão do ensino médio e nível de representação no parlamento.

Um país que está entre as quinze maiores economias do mundo, mas que se mantém como a República com maior desigualdade socioeconômica, não poderia ser um lugar seguro para as meninas e, assim, um caso como o da menina de Santa Catarina não é caso isolado: são as instituições brasileiras funcionando.

De acordo com os resultados da Pesquisa Nacional de Aborto em 2010 e 2016, a mulher que aborta no Brasil é, majoritariamente, casada, mãe e religiosa. Além disso, há pesquisas que demonstram que o sentimento da mulher que aborta é de alívio, mas as instituições seguem entendendo que a autonomia da mulher – no caso, uma menina – não tem espaço no debate.

As instituições foram erigidas para manter o “status quo” e, desse modo, seguem sustentando uma sociedade de classes machista e racista, perversa com as mulheres e instituidora de um padrão heteronormativo de família. A juíza e a promotora se sentiram à vontade para sacrificar a vida de uma menina em benefício da satisfação de uma suposta família ainda sem filhos, afinal, “a tristeza de hoje para a senhora [a mãe] e para sua filha é a felicidade de um casal.”

Até quando vamos suportar essas instituições moedoras de gente? Até quando vamos suportar que estupradores sejam considerados pais? Até quando vamos suportar que direitos sexuais e reprodutivos, incluindo o aborto, não sejam um assunto debatido de maneira séria e cientificamente? Até quando vamos ser coniventes com esse tipo de funcionamento das instituições? Em outubro, haverá eleições gerais e o mínimo que se espera é que esse caso de tortura seja parâmetro para escolha dos mais diversos candidatos e candidatas.

Por Juliana Leme Faleiros, doutora e mestra em Direito Político e Econômico (Mackenzie). Especialista em Direito Constitucional (ESDC). Bacharela em Direito e Ciência Política. Advogada, pesquisa a articulação entre classe, raça e gênero no Brasil.