A psicopatologia da guerra híbrida

A psicopatologia da guerra hibrida
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Desde 2013, especialmente a partir de 2016, no Brasil o termo “Guerra Híbrida” já é recorrente no vocabulário de várias ideologias políticas, desde as mais de esquerda até as mais de direita, muito passando pelos nacionalistas – subjetivos e materialistas – que não se identificam com essas categorias tipicamente francesas. Talvez quem evite se valer desse termo sejam só os assumidamente centristas. Tanto se fala em Guerra Híbrida que já não é absurdo pensar que a própria vulgarização do termo, se adequando aos mais diferentes valores, não seja também uma operação envolta da própria Guerra Híbrida ou, quem sabe, ao dar pra cada pessoa sua própria versão de Guerra Híbrida o último propósito disso não seja sua plena vulgarização a fim de tornar quem levanta de forma séria tal temática ao igualamento de emocionados palpiteiros.

No mais, para o texto já não cair em determinado devaneio, se faz necessário conceituar e contextualizar esse termo, a fim de ter um mínimo de seriedade na abordagem do tema. Para isso, nada melhor que recorrer ao autor que mais popularizou o tema no Brasil, Andrew Korybko. Em seu livro “Guerra Híbrida, das revoluções coloridas aos golpes”, Andrew analisa o que chamou de “nova estratégia de guerra indireta”, que os Estados Unidos usaram contra a Síria e a Ucrânia a fim de derrubar seus governantes, sendo Bashar Al-Assad e Víktor Yanukóvytch, respectivamente. Antes do golpe rígido, que é a guerra como nós conhecemos até hoje empregada na Síria, com fuzis, blindados e soldados de infantaria, há um golpe brando no inimigo para o enfraquecer internamente e é neste momento que a carta “Revolução Colorida” é retirada da manga pelo atacante. Por vezes, somente essa carta pode bastar, não necessitando de uma abordagem ostensiva para vencer o inimigo, como por exemplo na Ucrânia – resguardando todas as ressalvas do caso, é claro. Até aqui, já podemos concluir que a Guerra Híbrida é um movimento de fora para dentro, de um atacante externo contra as bases subjetivas, em termos mais palpáveis – consciências coletivas e subjetivas – do inimigo.

Entendendo, cientificamente, do que se fala quando diz-se Guerra Híbrida, ou seja, da junção de Revolução Colorida e Guerra Não Convencional, agora é necessário entender como o atacante consegue infiltrar-se nas bases mais preciosas do inimigo, seu inconsciente coletivo. Em palestra do General do Exército Brasileiro Sérgio Conforto para o Instituto de Estudos Avançados da USP, ele diz que a senso-percepção humana consegue captar muito mais informações do que aquelas que realmente consegue-se perceber. Sendo assim, quando nossos sentidos passam muito tempo orquestrados quase que hipnoticamente para uma irradiação de informações fica-se imbuído, mesmo que inconscientemente, do sentimento que aquela fonte de informações propositalmente quis nos passar, mesmo que nem tenhamos percebidos. A partir disso, chega-se a uma conclusão óbvia, o porquê do alastramento das redes sociais. Que outra fonte de ideias conseguiria ao mesmo tempo captar tantas informações nossas e ao mesmo tempo particularizar tanto as propagandas segundo nossas individualidades? É nessa seara lógica que Andrew Korybko elenca as páginas do Facebook como os novos “covis de militantes” para causas, inclusive, auto-destrutivas. Tal tema hoje tem tanta relevância que o ministro da defesa da Federação Russa, Sergei Shoigu, declarou que “as revoluções coloridas estão assumindo progressivamente a cara de guerra e estão se desenvolvendo de acordo com as regras da guerra”.

Em 1989, William Lind descreveu: “As operações psicológicas podem se tornar a arma operacional e estratégica dominante assumindo a forma de intervenção midiática/informativa […] O principal alvo a atacar será o apoio da população do inimigo ao próprio governo e à guerra”. Apesar de ser uma conceituação extremamente sofisticada, talvez para entender o Brasil o último trecho deveria ser mudado de “O principal alvo a atacar será o apoio da população do inimigo ao próprio governo” para: O principal alvo a atacar será o apoio da população do inimigo à própria existência da nação, em todos os seus planos, materiais e subjetivos. Esta mudança para entender o que acontece no Brasil é necessária porque desde, pelo menos, 2010 o país é governado por governos que servem a própria a Guerra Híbrida, destruindo as bases imateriais e físicas da nação.

Segundo o coronel da Força Aérea dos Estados Unidos, John Warden, há cinco centros de gravidade principais que mantêm uma força adversária unida, sendo de dentro para fora: liderança, bases do sistema, infraestrutura, população, e força de combate em campo. A partir desse arcabouço teórico, para se entender a Guerra Híbrida sobre o Brasil, vários pensadores já se debruçaram em desvendar tal sistema e chegaram a conclusões muito sofisticadas, como a do Dr. Piero Leirner, que relata em seu livro “O Brasil no espectro de uma guerra híbrida: Militares, operações psicológicas e política em uma perspectiva etnográfica” como um grupo de altos militares conquistaram a liderança do país e hoje exercem a Guerra Híbrida de uma outra forma, não como o conceito original de um inimigo externo atacando o Brasil, mas um grupo que detém o controle do país exercendo as operações psicológicas de dentro do próprio governo. Ao final de tudo, o beneficiário óbvio continua a ser um país externo, pois lucram com o autoflagelo de uma nação inteira, o que torna a conquista mais barata e, principalmente, mais eficaz.

Neste ponto devemos focar um pouco mais de luz, pois talvez seja onde mais haja desorientação quando o assunto é debatido, na aceitabilidade da Guerra Híbrida. Para entender esta efetibilidade deve-se dissecar a mais suave, traiçoeira e talvez peremptória categoria dessa guerra de amplo espectro, que é a Operação Psicológica. Para entendê-la é necessário ir na gênese de conceitos muitas vezes falados por já terem um significado no senso comum, mas quando dissecados se traduzem automaticamente em mecanismos de poder.

Definindo o que é Consciência podemos chegar ao conceito de “forma de vida mental que nos permite captar o mundo dos fenômenos, de uma forma organizada e significativa”; ou seja, nossa consciência é que nos permite captar as coisas como elas são, ou pelo menos, aparentam ser. Digo, as coisas que percebemos conscientemente dependem do nosso cérebro estar em bom funcionamento para lhes dar uma organização. Sabendo o que significa ser/estar consciente, lhes trago a definição de pensamento, que se traduz no “modo da consciência que consiste no estabelecimento de integrações significativas, mediante arranjos de relação (ligações determinadas por conexões internas, isto é, dotadas de sentido), dirigidos a objetos e a estados de fato”. Em suma, já que a consciência nos permite captar informações fenomenológicas, o pensamento é quem integra todas essas informações, dando um sentido por meio destas bases para objetivos que se deseja atender. Essas funções pertencem ao plano intelectivo dos seres humanos, portanto é a partir disso que elaboramos análises, julgamentos, vontades e decisão.

Dos elementos constituintes do pensamento há o conceito e o juízo. É do conceito que parte todo o processo de pensar. É a ideia primordial do pensamento, da qual todo o resto nasce. O conceito tem por necessidade a eliminação dos caracteres sensoriais, ou seja, independe da presença de um objeto real para existir, pois por exemplo uma condição é visualizar um carro, outra coisa é ter o conceito de carro já internalizado. Outra necessidade do conceito é a Generalização, ou seja, o conceito pode ser aplicado a qualquer objeto que o corresponda. Portanto, ao se pensar em “carro” este conceito é válido para qualquer tipo de carro.

A partir disso conseguimos compreender o porquê vários conceitos estão em xeque e são justamente conceitos que atendem a propósitos da guerra híbrida. Por exemplo, podemos usar a palavra “Desenvolvimento”, que seu conceito para um cidadão bem informado da década de 1970 poderia significar as junções racionais da captação por sua consciência de informações sobre “empresas estatais”, “campeãs nacionais”, “estado forte” e “petróleo”. A mesma palavra “Desenvolvimento” pode ter outro conceito para um cidadão bem informado da década de 2020, pois agora provavelmente seu conceito para essa palavra é a junção de informações captadas pela sua consciência como “privatizações”, “iniciativa privada”, “empreendedorismo” e “mérito”. A partir do conceito é que pensamos; se o conceito de “Desenvolvimento” for diferente para esses dois cidadãos do exemplo, muito provavelmente seus pensamentos levarão a lugares diferentes e provavelmente também a juízos diferentes, já que juízo é a ligação que é feita entre os conceitos básicos. Um exemplo didático seria o conceito de “carro” mais o conceito de “branco” levando ao juízo de “carro branco”. Antes da guerra híbrida e sua atuação, poderia ser o conceito de “desenvolvimento” mais o conceito de “empresa estatal” levando ao juízo de que “empresa estatal leva ao desenvolvimento”. Após a Guerra Híbrida e a troca conceitual das palavras pela Operação Psicológica se muda não só o pensamento, mas também o juízo que fazemos sobre os fenômenos. O mais perigoso disso é que o juízo, por definição, pode ser real ou irreal, levando a conclusões sem qualquer evidências no plano material, que esbarram frontalmente na lógica formal, que se traduzem em sofismas ou paradoxos, mas que através da deturpação de conceitos se chega a juízos delirantes, que por definição, é a alteração do juízo da realidade.

Esse tipo de raciocínio pode ser feito para diversas questões do cotidiano e este exercício deve fazer parte do cotidiano de agente político do iluminista, àquele que preza pela verdade acima das aparências. De um dia pra noite o certo virou contestar a “historiografia oficial”, sendo que o Brasil nunca teve uma historiografia oficial e esta só foi desenvolvida a partir do governo Nacionalista de Getúlio Vargas. Através de mudanças de conceitos que levam a deturpação de pensamentos e juízos errôneos a figura dos bandeirantes foi demonizada sem qualquer dialética envolvida, Borba Gato foi acusado de genocídio indígena sem nunca ter matado um índio, Zumbi virou escravagista equivalente aos algozes colonialistas, Getúlio Vargas virou fascista, Dilma virou guerreira do povo brasileiro e Sérgio Moro herói contra a corrupção.