É preciso falar em capitalismo

É preciso falar em capitalismo
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É PRECISO FALAR EM CAPITALISMO. Impossível fazer voltas que eludam a barbárie previsível a que o regime nos conduz se não conseguirmos impedir a sua marcha implacável. Principalmente se levarmos em conta as sequelas do bolsonarismo que já começou lá atrás, antes mesmo da chegada do miliciano-chefe. Combater o capitalismo, com a perspectiva de desconstruí-lo e superá-lo é tarefa que não pode ser estiolada em lutas contra opressões setoriais. Em lutas legítimas, mas que, escudadas na trincheira defensiva do “lugar de fala”, desprezam o caráter totalizante do enfrentamento, e abrem caminho à fragmentação das forças progressistas, na guerra estratégica contra a matriz de todas as opressões. A guerra social entre o mundo do trabalho e o do grande capital. Se há dúvidas no campo da esquerda pós-moderna quanto à validade do conceito de luta de classes, vale lembrar o que disse Warren Buffet, um dos maiores manipuladores da especulação financeira globalizada, quando lhe puseram a questão. “A luta de classes existe, e nós a estamos vencendo”.

O CAPITALISMO, em sua atual fase, é o mais perfeito regime de opressões. Perigoso porque, por conta de a Revolução tecnológica, informacional-digital, ter se dado sob a hegemonia do capital privado, longe de proporcionar condições mais humanas de vida social, deu asas ao individualismo liberal. E o qualquer do povo que não consegue pela badalação incessante de um falacioso “empreendedorismo” como alternativa à informalidade ou o desemprego estrutural promovido pela Indústria 4.0, joga com a carta da “inclusão”. Uma carta em que, com o empenho incessante de uma mídia corrompida, se estimula o oprimido a acreditar que a sociedade abre espaços para quem “acredita em si próprio”, na concorrência com seus iguais, a quem deve atropelar nos critérios da “meritocracia”.

O CAPITALISMO é como a semana anterior ao sorteio da mega sena acumulada para o não viciado que compra o bilhete (porque o viciado já não se ilude. Compra por vício, sem ilusões). O que se passa com o atraído pelo prêmio acumulado? Esse não deixa de elocubrar até o dia do sorteio sobre o que fará com aquela fortuna que tem tudo para ganhar. Sonhará como dezenas de milhões de outros, que terminarão tão decepcionados quanto ele, à exceção, é claro, daquele único acertador, no meio da dezenas de milhões, que só existe para continuar garantindo a volta de todos os outros esperançosos.

NÃO É SÓ O SENSO COMUM alienado pelas lavagens cerebrais dos meios de comunicação, no entanto, que se iludem ou acomodam com a descrição desse cenário aparentemente libertário dos tempos atuais.

JOSÉ EDUARDO AQUALUSA, jornalista e escritor angolano da melhor cepa, me surpreendia no outro dia num programa do Canal Curta com a afirmação de que o mundo, a despeito de tudo, nunca esteve tão bem. Nascido em 1960, o mundo vivia no cenário de ditaduras não só nas repúblicas de bananas, ou na África, onde o colonialismo era quase fenômeno total, mas também na Europa. E lembrava de Espanha, Portugal e Grécia, sob ditaduras fascistas. Havia o apartheid na África do Sul. Se recuássemos aos séculos XVIII e XIX, a escravidão institucional, lembrava ele, era considerada impossível de ser abolida até por Eça de Queiroz, tal a importância para a realidade econômica

PARÊNTESIS – Aqualusa não falou nos países do Leste Europeu então tratados também como ditaduras repressivas pela mídia conservadora, o que deixa claro não se poder classificá-lo como um apóstolo do capitalismo. Pelo contrário. Seria um romântico progressista.

CHEGA A SER QUASE convincente e compreensível essa sensação pessoal de Aqualusa se não pararmos para levar em conta a memória de quem viveu intensamente aquela década, e a de 70, quando Aqualusa ainda era um “miúdo”. Porque se tais situações localizadas e trágicas eram fatos reais, também era fato real um espírito de que um outro mundo possível também batia em nossas portas por conta das lutas que eclodiam em toda parte.

AS REVOLTAS estudantis e populares do final dos anos 60, a partir dos eventos do Maio de 68 na França, se estendendo aos países vizinhos da Europa, passando pelo Brasil, invadiam o centro do capitalismo. Os Estados Unidos viam seus alicerces abalados com a mobilização social contra a guerra do Vietnam, BlackPanthers, a dirigente comunista Angela Davis disputando a presidência, o pensamento socialista se alastrando nas bases universitárias.

AS ESPERANÇAS NASCIDAS com a Revolução dos Cravos em Portugal, e a vitória da esquerda que levou Miterrand ao poder como representante de uma aliança entre socialistas e comunistas, já na década de 70, vieram na esteira. A Utopia nos movia, inclusive para derrotar as ditaduras. Cuba era um farol na solidariedade internacional, garantindo a vitória do povo de Angola contra a intervenção da África do Sul marcada pelo apartheid. Era o outro lado da tragédia.

O QUE NOS RESTA HOJE não é tão explícito quanto o que se extinguia e transformava naquela época, mas não exagera quem considerar muito pior, por conta da capacidade do regime se remodelar sem se abalar estruturalmente, e aproveitando as crises para aumentar o poder dos poderosos E isso logo se confirmaria se, após o na sequência da programação do Canal Curta, através da entrevista de Tarik Ali, o paquistanês que é expoente da esquerda revolucionária mundial. Entrevista em que, entre outros marcos negativos por conta do capitalismo sob tacão imperialista dos Estados Unidos, ele não hesita a afirmar que não existe país independente na Europa, a começar pelo próprio Reino Unido, onde vive.

“NÃO TÊM SEQUER POLÍTICA EXTERNA própria, Nem necessitavam do Foreign Affairs. Bastaria enviar alguns diplomatas para o Departamento de Estado em Washington. Eles, de lá, transmitiriam o que o País teria a fazer nas grandes questões”. E isso é incontestável para quem lembrar da cena patética de Tony Blair, no Congresso americano, dando apoio incondicional a WBush no criminoso ataque ao Iraque, onde um país soberano e próspero foi destruído com bases em mentiras brutais posteriormente desmentidas.

SOBRE A AFRICA descolonizada, então, o que dizer para além de ter se transformado num pântano de miséria controlado por alguns milionários ditadores violentos e corruptos, subordinados e dependentes de seus antigos colonizadores? O que dizer da África do Sul, onde um apartheid institucional supostamente liquidado com a libertação de Mandela e sua condução ao poder, se vê hoje envolvida nas mesmas sequelas discriminatórias de guetos pretos e miseráveis, por conta de sua total rendição ao neoliberalismo na conciliação que tudo mudou para manter tudo igual?.

QUANTO À DISTRIBUIÇÃO DE RIQUEZA E EMPREGOS, o quadro é hoje muito mais trágico do que qualquer anterior. Com a Revolução Tecnológica hegemonizada pelo capital privado, essa Revolução vem produzindo uma tal brutal concentração de riqueza e ampliação de miséria e desalento, que o único cenário de comparação é o da Inglaterra, Manchester particularmente, descrita por Engels no seu magistral “A situação da classe operária na Inglaterra”, do início do século XIX, onde mulheres e crianças a partir dos seis anos de idade já viam de 10 a 12 horas por dia tomadas pela condução de um tear.

O DESEMPREGO ESTRUTURAL se espraia ao tempo em que se amplia a uberização do mundo do trabalho. Estivéssemos em contexto distinto, de hegemonia socialista, tal avanço tecnológico viria para diminuir a jornada de trabalho dos trabalhadores, propiciando-lhes muito mais tempo para o exercício de suas vocações próprias e o lazer.

EM ESPAÇOS INDUSTRIAIS onde trabalhassem 100 funcionários, por oito horas, passariam a trabalhar os mesmo 100 por 3 ou 4 horas diárias. Na lógica capitalista, dá-se o fenômeno oposto. Passam a trabalhar apenas 10, com jornadas até maiores e salários menores, por conta da concorrência do imenso exército de reserva. E atenção, Isso, até que se chegue à geração de robôs com capacidade de dirigir outros robôs.

NO SISTEMA FINANCEIRO privado o cenário não é menos dantesco na desagregação que mantém fortes os banqueiros e fulmina o mundo do trabalho. Clientes são transformados em funcionários que agradecem ao conforto de poderem resolver seus problemas pela internet, via celular. As agências, na esteira da informatização, são fechadas sem qualquer satisfação a seus clientes, com a liquidação massiva de postos de trabalhos. Quem ainda consegue conhecer um bancário em atividade??

PARA OS QUE SE VIRAM jogados no desemprego, na informalidade quando resistem ao desalento imobilizador, resta a uberização via plataformas. E não estamos falando apenas de taxistas ou entregadores de ifood. Estamos falando de todo o universo laboral – médicos, engenheiros, veterinários, operários especializados acompanhantes de idosos ou enfermos.

SÃO ILUDIDOS DE FORMA BRUTAL, pelo tratamento que recebem dessas plataformas informacionais. São força de trabalho explorada não por quem tem a propriedade dos meios de produção, porque isso cabe a eles mesmos serem, na condição de “clientes” em que são registrados nessas plataformas a quem “devem” o favor da mediação com os que demandam seus serviços profissionais.

SUA PROPALADA AUTONOMIA oculta a verdadeira condição de trabalhadores sem salário fixo, sem férias ou fins-de-semanas remunerados, sem seguridade social e sem aposentadorias se não cuidarem eles mesmos de fazer seu fundo com o pouco que sobra do que recebem exclusivamente de horas de trabalho realmente executado.

ESSE CENÁRIO de barbárie previsível não pode ser combatido, no Brasil, sem a denúncia dessa burguesia medíocre, sem projeto de Nação, que se rendeu à desindustrialização do País com olhos nas sobras que lhe cabem do rentismo planetário.

E É EM TERMOS DE NAÇÃO e de recuperação do legado dantesco desse governo bolsonarista que a esquerda combativa tem que se ocupar. As tarefas são muitas, mas não podem se furtar ao eixo anticapitalistas das reformas estruturais que deve priorizar de forma educativa. De molde, principalmente, a combater a ideologia da “inclusão”, pela de “desconstrução e superação” do regime.

Luta Que Segue!