Por que sou de esquerda e não voto no PT: Parte 2

A arte mostra a continuidade entre os governo de FHC e Lula.
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Por Rennan Ziemer – Este artigo é uma continuação de texto anterior publicado aqui no Disparada, em que eu utilizo argumentos mais amplos. Agora eu busco ser mais específico sobre os motivos que me levam a não votar no PT no primeiro turno, apesar de ser de esquerda. Uma primeira advertência, que deveria ser óbvia – é preciso ser direto com aquelas pessoas que querem desviar de meus fundamentos principais –, é que se eu escrevo para um site progressista, eu espero ser lido por um público de esquerda. Eu defendo a oposição ao governo Bolsonaro, participei de manifestações pelo impeachment. Neste texto, minha crítica é aos companheiros de luta na esquerda. Escrevo como militante partidário e não como um acadêmico.

Como expliquei no artigo anterior, reconhecemos a importância de muitas das conquistas sociais obtidas durante os governos petistas. Em sua maior parte, políticas públicas que implementam direitos sociais garantidos pela Constituição da República, promulgada em 1988 sem apoio do PT, que votou contra. A maior conquista política da história do Estado nacional brasileiro desde a independência, que reconheceu como norma jurídica vinculante várias das reformas de base rejeitadas pelas elites que desferiram o golpe militar de 1964, ficou marcada pela irresponsabilidade petista num momento crítico da redemocratização, de enterro do entulho normativo autoritário.

Quando eu disse que as políticas sociais se equiparam a migalhas quando comparadas com o rentismo e a regressividade tributária, é preciso dar exemplos concretos e apresentar alguns indicadores. Na essência, a política econômica dos governos petistas foi mera continuidade do neoliberalismo consolidado por Fernando Henrique Cardoso, que também promoveu políticas sociais semelhantes. Coloco link de vários artigos jornalísticos, que são de fácil acesso, para respaldar meus argumentos. Os valores citados não foram deflacionados, são nominais, como informados nas fontes.

A recessão econômica se iniciou no segundo trimestre de 2014 e durou até o quatro trimestre de 2016, sendo que a desigualdade social voltou a crescer a partir de 2015, primeiro ano do segundo mandato da Dilma, período de implementação política econômica neoliberal de austeridade defendida pelo candidato derrotado do PSDB, mas que foi colocado em prática pela própria petista no conhecido estelionato eleitoral.

Durante o ano de 2015, no período dos doze meses anteriores a junho, o gasto público anual com o programa Bolsa Família foi em torno de R$ 25 bilhões, enquanto em apenas um mês foram dispendidos R$ 34,7 bilhões em juros da dívida pública. Nos seis primeiros meses de 2015, a despesa com juros foi de R$ 225 bilhões, R$ 58 bilhões a mais do que todo o gasto com o Bolsa Família desde seu lançamento em outubro de 2003. Fica muito claro que esses recursos sociais não passam de migalhas quando comparados com a remuneração dos credores da dívida pública.

Outro fator importante a considerar é que é mentira que Lula herdou uma herança maldita, quando na realidade governou num dos contextos externos mais favoráveis. Quem enfrentou muitas dificuldades foi a Dilma. Laura Carvalho chamou o período dos anos 2000 de “milagrinho econômico” em seu livro “Valsa Brasileira: do boom ao caos econômico”.

No início do Plano Real, o câmbio foi utilizado para controlar a inflação. Com o real forte, era possível adquirir produtos importados por preços muito reduzidos. Um dólar chegou a custar apenas R$ 0,84. Esta política demandava reservas internacionais em moeda estrangeira, que já estavam se esgotando no ano de 1999, quando houve a primeira grande desvalorização do real, na qual o dólar saltou para R$ 1,96 no começo de fevereiro. Este foi o momento da mudança do regime cambial, das bandas com pequenas oscilações para câmbio flutuante, em que o valor do dólar passou a ser determinado pelo mercado de moedas estrangeiras. Uma segunda grande desvalorização ocorreu no final de 2002 com a grande preocupação do mercado em razão da eleição de Lula, tendo o dólar atingido valor de R$ 3,61. Nesses dois anos a inflação foi elevada, atingindo 8,94% (1999) e 12,53% (2002).

Durante todo o governo Lula, o dólar foi sofrendo uma gradual desvalorização, exceto por um breve período da crise de 2008, em que o dólar partiu de R$ 3,61 no final de 2009 para R$ 1,65 no começo do governo Dilma em 2011. Isso contribuiu muito para o aumento do poder de compra dos salários brasileiros. No decorrer da gestão Dilma, o processo foi inverso, pois o dólar partiu de R$ 1,65 para R$ 3,96 em janeiro de 2016, encarecendo muito os produtos importados e pressionando a inflação. Mas há o lado positivo do real desvalorizado, pois os produtos nacionais se tornam mais competitivos no mercado interno e externo, aumentando o número de vagas de emprego na indústria, que paga os maiores salários. Este efeito é explicado por Bresser-Pereira no seu recente livro “Em busca do desenvolvimento perdido”.

O boom das commodities dos anos 2000 foi real, causado principalmente por um grande aumento do consumo chinês, economia que mais cresceu no período. Além do aumento da quantidade exportada, o preço dos produtos brasileiros em dólar aumentou quase de forma constante de 2002 a 2011, quando passou a cair. Pelo índice composto de commodities CRB (formado por uma combinação de preços de produtos agrícolas, minerais, petróleo), as commodities saltaram de US$ 258 em 2002 para US$ 539 em 2011, mas caíram para US$ 413 em 2015.

Durante o governo Lula, o dólar se desvalorizou, ajudando no controle da inflação, ao mesmo tempo em que o valor das commodities em dólar aumentava. Isto permitiu um longo período de quase uma década de estabilidade econômica. Dilma não teve a mesma sorte, quase todo seu governo se deu num período de vacas magras. O índice das commodities CRB citado caiu quase 24% entre 2011 e 2015, reduzindo a rentabilidade das exportações. Ao mesmo tempo, o dólar partiu de R$ 1,65 em 2011 para R$ 3,96 em 2016, pressionando muito o poder de compra dos salários. A inflação apenas não saiu de controle até 2014 em razão do represamento dos preços dos combustíveis e energia elétrica.

O ano de 2015 também foi o do pagamento pelas consequências do estelionato eleitoral. No acumulado de 2015, a inflação atingiu 10,67%, maior índice desde 2002. Os produtos que mais pesaram na conta foram a energia elétrica, com aumento de 51% em um único ano, e combustíveis, com 21,43% de reajustes. Ambos os casos são de preços administrados, definidos pelo governo como acionista controlador das estatais, que foram represados nos anos anteriores para controlar a inflação e favorecer a vitória eleitoral, causando prejuízos bilionários à Eletrobrás e Petrobrás. Se o governo tivesse tomado as medidas necessárias para manter a inflação sob controle durante o ano de 2014, esses aumentos de energia e combustíveis poderiam ter sido diluídos no tempo. Entretanto, a prioridade era ganhar a disputa eleitoral a qualquer custo.

Para tentar conter a inflação, o Banco Central elevou a taxa Selic de 7,25% em 2013 para 14,25% em 2015, maior valor desde 2006. Os juros básicos que remuneram os títulos da dívida pública praticamente dobraram em dois anos, encarecendo o crédito bancário para todo o setor produtivo e para o consumo, um dos dois fatores causadores para a enorme recessão econômica de 2015 e 2016, com redução do PIB de 3,8% e 3,6%, respectivamente.

O segundo fator foi a drástica redução dos investimentos públicos decorrente da política neoliberal de austeridade praticada pelo Ministro da Fazenda Joaquim Levi, também para pagar as pedaladas fiscais, que eram dívidas da União com bancos públicos referentes aos anos anteriores, mas que foram empurrados para depois da eleição. Em maio de 2015, o governo anunciou um contingenciamento de R$ 69,9 bilhões do orçamento, atingindo principalmente investimentos e emendas parlamentares nos ministérios da Saúde, Educação e Cidades. Só o Programa de Aceleração do Crescimento-PAC sofreu um corte de R$ 25,7 bilhões. Em junho foi anunciado novo corte de R$ 8,6 bilhões. Essa combinação de inflação alta, juros altos e violento corte de investimentos públicos foi muito prejudicial para a economia. Apenas em dezembro de 2015 o ministro neoliberal foi demitido, mas já era tarde, a recessão já era certa.

Estes ciclos econômicos de oscilação cambial e variação de preços de commodities são recorrentes no capitalismo. Lula governou num período favorável, Dilma num período desfavorável. O grande acerto da política econômica do Banco Central no governo Lula foi adquirir grande montante de reservas internacionais num período em que o dólar estava muito barato. As reservas internacionais são de grande importância para suavizar os impactos de crises econômicas, como as causadas pela pandemia da Covid-19. Hoje as reservas brasileiras são maiores que a dívida externa, que deixou de ser o problema que foi para o Brasil durante as décadas de 1980 e 1990. Essa é a principal diferença entre a atual economia brasileira e da Argentina, que ainda sofre com o problema da dívida externa.

Mas a formação das reservas internacionais apenas foi possível com o aumento do endividamento interno, denominado em moeda nacional. Uma dívida foi trocada por outra. A dívida em si não é o problema, mas sim os juros elevados, que explicam o rentismo brasileiro, um dos principais causadores da grande concentração de renda e desigualdade no Brasil. Ao emprestar recursos para o governo, investidores obtinham elevados retornos sem precisar produzir nenhuma mercadoria e sem gerar nenhum emprego. Paradoxalmente, o governo Bolsonaro é o que paga os menores juros da história, inferiores à inflação atual. A principal causa da queda é a crise econômica, mas isso não deixa de ser um pouco vergonhoso para um país que manteve intocado o rentismo durante mais de treze anos de governos de esquerda.

As desonerações fiscais também foram um grande erro, que inclusive foi posteriormente reconhecido pela própria Dilma. Elas tiveram seu papel no aumento da concentração de renda, pois a redução de impostos apenas importou em aumento de lucros sem ampliação de investimentos privados. Política neoliberal muito semelhante à promovida por Trump com a redução dos tributos para as empresas, diga-se de passagem. No lado das contas públicas, importou em grande queda de arrecadação tributária, agravando o déficit fiscal da União e fortalecendo o discurso da austeridade, posta em prática pela própria Dilma em 2015 e que teve seu ápice com a PEC do fim do mundo, também conhecido por Teto de Gastos do governo Temer.

Apesar da redução da pobreza e melhoria de indicadores sociais, a concentração de renda permaneceu intocada. Pelos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio do IPEA, em estudo da “Renda domiciliar per capita por estratos da população”, os 10% mais ricos detinham 46% da renda nacional e o 1% mais rico 13% no ano de 2002. Já no ano de 2012, os 10% receberam 42% da renda e o 1% mais rico 12% da renda nacional. Em dez anos de governos de esquerda houve apenas uma leve oscilação. O ganho de renda dos mais pobres se deu principalmente sobre a participação da classe média, com pouca alteração entre os mais ricos. A partir da crise de 2015, a desigualdade voltou a aumentar.

Os dados são ainda mais alarmantes quando se considera a base do Imposto de Renda, que leva em conta pessoas com grandes fortunas e renda elevadas que não são captadas numa pesquisa por amostragem, como a PNAD. Pela PNAD, a renda da Classe A (famílias com renda mensal superior a R$ 18.462) era 19,9 vezes maior em 2015 que a renda das Classes D e E (rendimentos familiares inferiores a R$ 2.459). Já pelos dados do imposto de renda de 2015, a Classe A recebia 38,5 vezes mais que a média das Classes D e E. Com base nos dados do imposto de renda de 2014, o estrato 1% mais rico da população recebia 23,1% da renda nacional e os 10% mais ricos 52% da renda nacional.

Nesse período democrático, o Brasil resolveu três grandes problemas macroeconômicos: inflação, dívida externa e juros altos. O país não é mais o mesmo de dez, vinte anos atrás. Podemos nos inspirar nos acertos do passado, mas precisamos de novas ideias para não repetir os erros.

O Brasil já poderia ter superado o problema da extrema pobreza caso o governo de esquerda petista tivesse cobrado uma contribuição adicional dos mais ricos numa reforma tributária mais progressiva. Entretanto, no menor índice histórico, em 2014, mais de 9 milhões de pessoas ainda viviam em situação de miséria. Outra situação que nos deixa perplexo é que o menor índice de miséria da história ocorreu no governo Bolsonaro, durante os meses do auxílio emergencial de R$ 600.

O custo para eliminação da miséria era muito menor em período de pleno emprego. Fica claro que faltou ambição aos governos petistas, que nunca tiveram coragem de reduzir os privilégios das elites financeiras. Esta atitude não é o que se espera de um verdadeiro governo de esquerda. Parafraseando a recorrente metáfora que costumam repetir com o nome de Brizola, Marx deve se revirar no túmulo quando algum militante cita os governos petistas como referência de regime socialista. Até países com economias reconhecidamente liberais possuem carga tributária mais progressiva que o Brasil. O trabalhismo não se furtará a estar do lado das classes desfavorecidas quando tiver que tomar decisões políticas.

Por: Rennan Gustavo Ziemer da Costa.
Mestre em Direito do Estado pela UFPR. Militante do PDT Diversidade Paraná e do Núcleo de Economia.