Por que o dólar continua caro se as exportações estão em alta?

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A crise do coronavírus esgarçou graves limitações da economia brasileira. Pegos de surpresa e em profundo despreparo, descobrimos que não éramos capazes de produzir equipamentos de proteção, aparelhos respiratórios ou insumos para vacinas – o país se viu dependente de possíveis parceiros externos (empresas, nações amigas) capazes de fornecer o essencial para sobreviver na pandemia, mas que estavam focados em atender a própria população, não raro a mando de seus governos.

Outro fator somou para frustrar os (rasos) esforços brasileiros: o dólar caro. Não havendo oferta interna daqueles produtos, era preciso importar. O câmbio desvalorizado surgiu como um obstáculo. Em outros tempos, talvez, alguma regulamentação emergencial entraria em ação imediatamente para coibir importações supérfluas e direcionar as divisas cambiais para atender as necessidades nacionais.

A história da regulamentação cambial brasileira mostra que já houve solução sofisticada para a questão. Em períodos de insuficiência de divisas – ou seja, de desequilíbrio no balanço de pagamentos, que conduziam à desvalorização da moeda nacional frente a moedas fortes como a libra esterlina ou o dólar –, as autoridades monetárias impuseram prioridades para a sua utilização.

Em 9 de outubro de 1953, por exemplo, a Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc) lançou mão da Instrução nº 70, que em seu item IV estabeleceu cinco categorias distintas de importação, segundo critérios de prioridade para a economia nacional (a importação de bens de produção como máquinas e equipamentos era mais relevante que a importação de bens de consumo com produção interna).

Para adquirir a moeda estrangeira necessária para importar, de acordo com cada categoria, o governo faria leilões de divisas cambiais, embolsando ágios sobre as vendas. Para se ter uma ideia da sofisticação desse mecanismo, que aperfeiçoava o sistema nacional de importações, Celso Furtado (em Análise do Modelo Brasileiro, 1978) mostra que entre 1958 e 1960 a participação dos ágios na receita do governo federal era equivalente à receita do Imposto de Renda, ajudando a financiar o gasto público.

Antes da Instrução nº 70, vigorava a Lei nº 262, de 23 de fevereiro de 1948, que implementara um sistema de licenças prévias de importação controlado pela Carteira de Exportação e Importação do Banco do Brasil (Cexim), que concedia as divisas cambiais conforme a essencialidade das importações.

Claro que havia falhas nesse sistema de seletividade e controle cambial, e sem dúvidas havia corrupção e favorecimento de empresas bem relacionadas. Mas naquela época o espírito do desenvolvimento econômico era implacável, e as irregularidades eram vistas não como impeditivos para a realização de políticas públicas, mas como objeto de sanção e investigação.

Atualmente, tão fraco é o espírito do desenvolvimento econômico no país, que se desiste de antemão de programar políticas públicas, com a desculpa de que haverá corrupção. Prefere-se manter o país no imobilismo, que conduz crescentemente à dependência externa (como se viu na pandemia) e ao despreparo em todos os sentidos.

Naquele contexto, o controle cambial era visto como uma necessidade do desenvolvimento. Havia um histórico e estrutural problema de balanço de pagamentos, herança do século XIX, período no qual o Brasil se consolidou como exportador de bens primários e, consequentemente, dependente da demanda externa.

Em períodos de bonança (alta das exportações), recursos entravam no país, aliviando as contas públicas e nacionais. Como sabemos hoje, a procura por commodities é cíclica, e períodos de bonança eram sempre sucedidos por períodos de graves desequilíbrios.

Com a crise financeira de 1929, iniciada com o crash de Wall Street, o sistema econômico internacional entrou em colapso e as exportações brasileiras, então guiadas pelo café, entraram em declínio sem precedentes.

A Revolução de 1930 trouxe Getúlio Vargas ao poder no momento em que o centro dinâmico da economia nacional, tipicamente agroexportador, voltava-se para o mercado interno, abrindo espaço para uma crescente consciência industrializante, que encontrou eco no novo governo.

Mas como industrializar sem máquinas e equipamentos necessários para a produção? Era preciso compra-las lá fora, direcionando as divisas cambiais do país, resultante das exportações, para as importações fundamentais.

Até a década de 1930 o Brasil possuía ampla liberdade cambial, e era permitido a exportadores manter a receita de suas vendas em instituições financeiras estrangeiras, localizadas fora do país. Era normal que exportadores depositassem suas riquezas em contas na Inglaterra, na França ou nos Estados Unidos. Os produtos da fazenda saíam do país, carregados em navios, mas o dinheiro não entrava.

Numa esteira de reformas monetárias, o governo Vargas editou o Decreto nº 23.258, de 19 de outubro de 1933. Ali nasceu a obrigatoriedade de cobertura cambial no pagamento de exportações, proibindo que exportadores enviassem seus produtos sem internalizar as reservas cambiais correspondentes. O objetivo claro era enfrentar as restrições externas do país e viabilizar o desenvolvimento.

Essa medida vigorou até o ano de 2006, quando o presidente Lula assinou a Medida Provisória nº 315/2006, que logo foi convertida em lei (Lei nº 11.371, do mesmo ano). O art. 1º da MP 315 dizia: “Os recursos em moeda estrangeira relativos aos recebimentos de exportações brasileiras de mercadorias e de serviços para o exterior, realizadas por pessoas físicas ou jurídicas, poderão ser mantidos em instituição financeira no exterior, observados os limites fixados pelo Conselho Monetário Nacional”.

A Exposição de Motivos apresentada ao Presidente para justificar a medida, assinada pelo Ministro da Fazenda e pelo Presidente do Banco Central (Guido Mantega e Henrique Meirelles), comparava (item 2) a permissão para residentes constituírem disponibilidades no exterior, enviando remessas, à proibição vigente para os exportadores.

Ignorando a abissal diferença do impacto sobre o balanço de pagamentos entre remessas de pessoas físicas e de grandes exportadores, a Exposição de Motivos denunciava uma “assimetria” (item 3): “É de fácil constatação a assimetria existente entre a faculdade de remessas por qualquer residente para a constituição de disponibilidade no exterior e a obrigatoriedade de ingresso no País da moeda estrangeira correspondente à exportação realizada”.

Ficava reduzida também a competência do Banco Central sobre contratos de exportação. O item 9 da Exposição explicava que caberia à instituição manter apenas o registro dos contratos de câmbio e informar à Receita Federal sobre os elementos dos contratos registrados. Não haveria controle, somente a manutenção de um registro declaratório, de características informacionais.

O art. 1º da MP 315 falava em “limites” à manutenção de recebimentos de exportações o exterior. Pois bem, a Resolução nº 3.548 de 2008, do Banco Central, tratou de estabelecer o “limite” em 100% de tais recebimentos, permitindo que a totalidade dos recursos resultantes de vendas de mercadoria ou prestação de serviços para o exterior permanecessem em outros países.

Uma notícia veiculada hoje no Valor Econômico mostra que as exportações estão indo muito bem, o preço das commodities está em alta, mas não ocorre aquilo que os liberais mais pregam: a liberdade de trocas não está conduzindo a nenhuma forma de equilíbrio. Mantendo os dólares de exportação fora do país, o câmbio brasileiro não é afetado e continua desvalorizado.

A notícia indica que em 2018, a diferença entre exportações físicas e o câmbio das exportações era de US$ 5 bilhões. Em 2019 essa distância elevou-se a US$ 25 bilhões e em 2020 a US$ 17 bilhões.

Num modelo abstrato, típico de manuais de economia, o aumento das exportações faria valorizar o Real frente ao dólar, em razão do aumento da disponibilidade de dólares no mercado cambial nacional – basicamente uma resultante das condições de oferta e procura, sendo o dólar uma “mercadoria” qualquer.

Como se sabe, a classe média está indignada com o dólar caro, mas por motivos enganosos. Sente falta do farto acesso ao consumo e das viagens ao exterior. Mas há motivos de sobra para indignação, que não se confundem com simples consumismo.

A economia brasileira se beneficiaria enormemente das divisas que não estão ingressando. O acúmulo de reservas, por exemplo, fortalece a segurança da economia frente à crises cambiais duradouras, quando há fuga de capitais. A melhoria no balanço de pagamentos também poderia abrir margens mais amplas para o combate imediato à pandemia.

Mas a hipocrisia da política econômica é tanta que mesmo a absurda política de preços da Petrobras, que desde 2017 está atrelada ao dólar e poderia ver reduzido o altíssimo preço dos combustíveis que afeta famílias e negócios brasileiros, não se beneficia da liberdade cambial praticada desde os anos 1990 por sucessivos governos.

É o mal do século do liberalismo econômico brasileiro, ao acreditar que a conversibilidade monetária – a plena aceitação da moeda brasileira em trocas internacionais – é uma etapa para o desenvolvimento, bastando adotar as “melhores práticas internacionais”. Ignora-se a histórica econômica, repleta de evidências de que o desenvolvimento precede a conversibilidade.

Ignora-se, muitas vezes, que a conversibilidade é primordialmente uma questão política, de hierarquia entre o poder das moedas, não de eficiência econômica. Daí tamanha resistência e receios das potencias ocidentais frente à disseminação de trocas baseadas na moeda chinesa.