O futuro da polarização nas mãos do centro político

O futuro da polarizacao nas maos do centro politico
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Há alguns anos acompanhamos o establishment político, acadêmico e midiático criticar a polarização política no Brasil. Assistimos pesquisadores, analistas políticos, economistas e jornalistas divergirem em seus diagnósticos e argumentações, mas manterem um ponto comum entre todos, que é a ideia de que a polarização é um fenômeno danoso ao país.

É comum ver críticas à polarização, colocando nela a responsabilidade pela instabilidade política, a impossibilidade de surgimento de novos quadros (como se Bolsonaro não fosse, ele mesmo, um personagem político muito recente na história do país), a baixa qualidade do debate político e as ameaças às instituições estabelecidas.

Entretanto, pouco se discute sobre o papel do centro político nesse contexto.

A política brasileira sempre foi marcada por um grande centro, composto por vários partidos pouco ideológicos, com lideranças de base política essencialmente regionais. Esse campo compõe historicamente a maioria dos quadros políticos do país, presentes tanto no legislativo como no executivo.

O futuro da polarizacao nas maos do centro politico

Historicamente, pode-se imputar a esse centro muito da estabilidade do quadro político brasileiro. A despeito da polarização atual, quando comparamos com países vizinhos, a política brasileira possui um perfil historicamente mais moderado, menos afeito a radicalismos, com menos crises, e transições políticas mais suaves.

Isso ocorre pela natureza dessas lideranças. Com forte vocação para representar interesses regionais, no lugar de posições ideológicas rígidas, os políticos centristas tendem a ser extremamente pragmáticos nas relações com os governos, sejam eles de esquerda ou de direita.

De forma prática, essas lideranças geralmente votam junto dos governos de ocasião em troca de representação política no poder executivo, e apoio aos projetos de seus estados. Na imprensa e no grande público, esse comportamento é muitas vezes interpretado como fisiologia, corrupção, ou uma baixa adesão da classe política a ‘valores firmes’.

Entretanto, esse fenômeno é fruto do próprio comportamento de voto do brasileiro. Na maioria da população, é mais comum que eleitores se preocupem com questões muito práticas como as condições físicas da unidade básica de saúde, ou da escola dos filhos, do que questões mais abstratas como a “coerência ideológica” dos políticos eleitos.

Em um país com uma população com muitas carências, que depende profundamente dos serviços prestados pelo Estado, os políticos são mais julgados pelas soluções que encontram do que pela coerência ideológica com seus partidos.

Para o bem e para o mal, isso é o que explica como Lula e Bolsonaro, a despeito de terem partidos minoritários no parlamento, e algumas visões de mundo muito diferentes entre si, conseguem os dois ter governabilidade e executar parte das agendas pelas quais foram eleitos.

O futuro da polarizacao nas maos do centro politico

Porém, o centro não exerce somente um papel central na governabilidade. Ao apoiar certos projetos dos governos e impedir a aprovação de outros, o centro acaba se tornando uma espécie de árbitro, um mediador do quanto a política nacional se flexiona para a direita e a esquerda.

E aí vem a grande questão: qual tem sido a política centrista nos últimos anos? Geralmente tem se executado uma combinação de política econômica mais liberal com um progressismo social típico do discurso de esquerda.

Aqui é preciso diferenciar discurso e prática. Porque enquanto no discurso os políticos de centro dizem defender os serviços públicos e um conservadorismo social, na prática o que ocorre é o inverso. Gestões centristas país afora tendem a defender uma visão mais liberal de serviços públicos, e cedem para a esquerda em temas como meio ambiente, gênero, raça e direitos LGBT.

Qual o problema disso? Ora, o problema é que os brasileiros pensam exatamente o oposto disso. Na questão de costumes, 56% da população acredita que política e valores religiosos devem andar juntos e 60% acham que a defesa de valores familiares é mais importante do que a boas propostas para a economia [1].

Nesse tópico, há também espaço para contradições. Se 78% da população acredita que negros possuem menos acesso a empregos, 75% concordam com a frase que ‘hoje em dia, as pessoas veem racismo em tudo’. E se 75% se dizem favoráveis à ‘aceitação da homossexualidade’, 72% concordam com a ideia de que família só é composta por homem e mulher [2].

Na economia, o comportamento se inverte. Cerca de 85% da população crê que o progresso econômico do país está diretamente ligado ao combate à desigualdade e 87% pensam que é papel do Estado diminuir as desigualdades [3].

Além disso, 56% apoiam o aumento de impostos para garantir melhor educação, saúde e moradia, 45% dos brasileiros diz ser contra privatizações de empresas públicas contra somente 38% que são favoráveis [4] e 63% acha que os funcionários públicos não são respeitados pela sociedade [5].

Ou seja, o centro, que deveria mediar os extremos da política de forma a direcionar esquerda e direita para o que deseja a maioria da população, acaba colocando como ponto de equilíbrio aquilo que vai exatamente contra as aspirações da maioria dos brasileiros.

Por que isso acontece? Porque na política organizada há grupos sociais fortes defendendo estas agendas, e isso acaba exercendo grande peso sobre esses atores políticos centristas. Desse modo, a política dos organizados acaba adquirindo prioridade sobre a maioria desorganizada.

De um lado, os atores de mercado e os grandes lobbies defendem a retirada do Estado das atividades do planejamento, da estratégia econômica e dos serviços públicos. O caso mais eloquente disso atualmente é a privatização do abastecimento de água em vários estados brasileiros governados pelo centro, na contramão do que ocorre em países desenvolvidos [6].

Do outro lado, ONGs, muitas vezes financiadas de fora do Brasil, atuam junto ao poder público defendendo suas agendas. Um exemplo é que enquanto cotas raciais se implementam no serviço público de vários estados, o maior contingente da população considera que critérios de raça ou gênero não deveriam ser relevantes para escolher os ministros do STF [7].

Tal quadro também se fez presente nas chamadas ‘candidaturas de 3ª via’ nas eleições de 2022. Ao passo que candidaturas como a de Simone Tebet ou Eduardo Leite defendiam visões econômicas mais liberais, era comum ver ressaltados o papel de ‘mulher’ da ex-senadora e atual ministra, bem como o fato de o atual governador do Rio Grande do Sul ser homossexual assumido, como se tais características de um e de outro fossem ‘lastros’ para um certo ‘progressismo’.

E é espantoso ver, por exemplo, como Helder Barbalho, popularíssimo governador do Pará e político com ambições presidenciais, tem na agenda ambiental da COP 30 em Belém a sua grande aposta para catapultar seu nome como marca nacional. Mesmo com 72% dos brasileiros pensando que as leis ambientais teriam de ser mais flexíveis para promover o avanço do agronegócio, ante 23% contrários.

É preciso deixar claro que não se pretende aqui avaliar a moralidade de todas essas pautas, ou do impacto delas no longo prazo. Se é melhor ter um serviço público mais estatal ou privado, se a causa da representatividade no funcionalismo público e na classe política é justa ou não, ou se a pauta ambiental deve se sobrepor ao desenvolvimento econômico ou não.

Trata-se apenas de reconhecer que, quando a classe política opta pela agenda de grupos organizados que, muitas vezes, vão na contramão dos desejos e visões de mundo da maioria da população, isso impõe um custo para a política e para a legitimidade do nosso sistema político como um todo.

Ou seja, no papel de mediar a disputa entre os dois lados da polarização, caberá ao centro colocar o ponto de equilíbrio na disputa entre ‘esquerda’ e ‘direita’, e esse papel é fundamental para a relação das massas com os seus representantes, e para o futuro da própria polarização.

Se a opção dos políticos de centro for continuar a agenda de grupos politicamente organizados em detrimento dos desejos da maioria desorganizada, é possível imaginar um quadro de mais insatisfação popular, e de agravamento da polarização e da radicalização política do país, ao invés de seu abrandamento e pacificação.

O futuro da polarizacao nas maos do centro politico

[1] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/09/datafolha-56-dizem-que-politica-e-valores-religiosos-devem-andar-juntos.shtml
[2] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/07/armas-e-aborto-sao-os-temas-que-mais-dividem-os-brasileiros-diz-datafolha.shtml
[3] https://www.oxfam.org.br/um-retrato-das-desigualdades-brasileiras/pesquisa-nos-e-as-desigualdades/pesquisa-nos-e-as-desigualdades-2022/
[4] https://g1.globo.com/economia/noticia/2023/04/09/datafolha-45percent-dos-brasileiros-sao-contra-privatizacoes-38percent-sao-favoraveis.ghtml
[5] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/10/para-maioria-servidor-publico-e-desvalorizado-diz-datafolha.shtml
[6] https://www.bbc.com/portuguese/articles/cw02r9ddlndo
[7] https://www.jota.info/jotinhas/atlasintel-mais-de-42-nao-consideram-raca-e-genero-importante-para-proxima-vaga-no-stf-26092023