Paz na Ucrânia é interesse russo, não do Ocidente

Paz na Ucrânia
Ucrânia certo de Bakhmut
Botão Siga o Disparada no Google News

Por Renilson Mapele

Contraditório que pareça, a Rússia, potência invasora e – por uma análise mais apressada – iniciadora do conflito, é quem mais demonstra, no plano diplomático e político, interesse pela paz. Obviamente, não se trata de qualquer paz. Há pontos inegociáveis para os russos, o que aliás era tema de discussão antes de 24 de fevereiro de 2022. A saber: a garantia da segurança interna russa, significando o fim da expansão da OTAN para o Leste e, por extensão, a não-integração da Ucrânia ao Tratado, além da autonomia das Repúblicas da região do Donbass, com a proteção dos russos étnicos que ali vivem.

Solução diferente dessa só tende a ser alcançada por uma intensificação do conflito, com a derrota de um dos lados. Acontece que escapa a alguns analistas que, tudo posto, cessada a assim chamada Operação Militar Especial neste instante, Moscou já teria atingido parcialmente seus objetivos. Faltaria a garantia da não-integração de uma falida e, na prática, desmilitarizada Ucrânia à aliança militar ocidental. Ou seja, uma negociação consequente e racional pela paz, que partisse do cenário militar dado e não de discussões abstratas no âmbito do direito internacional, tenderia a favorecer e fazer concessões aos russos.

Novamente, por um motivo muito simples: Putin está vencendo a guerra. Eles teriam condições de impor  parte dos termos da paz. Por outro lado, os países que integram o chamado Ocidente – aqui usado como conceito socioeconômico e geopolítico, não cartográfico – consistem em países de três tipos  fundamentais: 1) O país que hegemoniza e lidera o grupo da OTAN: os Estados Unidos; 2) Países que atuam como verdadeiras marionetes de Washington, do ponto de vista político/militar: a Europa, e em especial a Alemanha; 3) Países que têm interesses próprios, mas que não têm força suficiente – e plena consciência disso – para contrariar a política externa agressiva das Águias de Guerra do Partido Democrata: Turquia[1] e Hungria[2], por exemplo.

Esse grande bloco atua, em seu conjunto – apesar de contradições pontuais cada vez mais evidentes, diga-se – sob a direção e hegemonia do governo de Washington. E, do ponto de vista do governo Biden, a continuidade da guerra é fundamental. Sim, a política do bloco liderado pelos Estados Unidos para a Ucrânia é a guerra. Em meados do ano de 2022, as negociações de paz avançavam, quando o presidente ucraniano Volodymyr Zelenskiy foi persuadido[3] a desistir das tratativas – ‘talked out of it’ – pelo então primeiro ministro britânico, o conservador Boris Johnson.  Mas o que explica esse posicionamento? Por que a guerra é de interesse estadunidense? Para isso, é necessário entender o papel que jogam os Estados Unidos no mundo hoje. Em uma palavra, trata-se de um império em decadência, que busca adquirir ares de sobrevida. O termo “em decadência” é aqui utilizado como indicativo de inflexão.

Recorrendo à matemática, se o domínio imperial dos EUA fosse uma função cartersiana, sua derivada primeira seria negativa, o que nada diria sobre seu valor absoluto. Expor as causas dessa decadência demandaria longos parágrafos que não estão no escopo deste texto. Fato é que a ascensão econômica chinesa e a reorganização da Rússia como player global ameaçam pôr  fim a longos anos de domínio unipolar inquestionável do mundo nesses mesmos planos: econômico e militar. Estamos falando, no primeiro caso, de uma potência econômica que, de acordo com as projeções mais modestas, será a maior economia em dez anos e, no segundo caso, de uma potência nuclear que, declarado pelo Kremlin[4], possui armamentos de ponta – acredita-se, alguns mais tecnologicamente avançados que os da OTAN.

Biden o sabe bem. Assim como também o sabem os Republicanos. A política externa é um assunto bipartidário em que frequentemente se obtém consenso. Exceto pelo inimigo principal. Os Democratas acreditam ser os russos, diretamente. Os Republicanos, cada vez mais, estão convencidos de que o inimigo imediato é a China. O governador da Flórida e forte candidato a destronar Donald Trump como candidato do Partido Republicano nas próximas eleições, Ron DeSantis, insistiu em entrevista a CNN[5] que “a Rússia não é uma ameaça do mesmo nível que a China”, demonstrando bem por onde andam as preocupações republicanas. Se o combate na Ucrânia oferece a oportunidade de guerra por procuração[6] contra a Rússia, do ponto de vista de uma potência em decadência, também é necessário recrudescer ainda mais as relações domínio  sobre seus aliados históricos. Parêntesis: a esta altura não restam dúvidas de que a OTAN, e portanto os EUA, está imersa até o pescoço no conflito, oferecendo “ajuda a um nível sem procedentes”[7].

Mackinder já alertava que quem controla a Heartland controla o mundo. Este pensamento é nuclear das relações exteriores norte-americanas. Por isso, ao final da Segunda Guerra Mundial, apressaram-se em garantir que a União Soviética, que marchava sobre Berlim, levasse apenas metade do bolo. É preciso impedir a qualquer custo a integração russo-germânica. Tal propósito se encontra bastante explícito na fala do homem a chefiar a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) pela primeira vez, o General Hastings Ismay, que declarou que o objetivo da aliança militar era “manter a União Soviética fora, os Americanos dentro e os Alemães sob controle” [to keep the Soviet Union out, the Americans in and the Germans down].

Reparem: não apenas a União Soviética fora, mas também os Alemães sob controle – de quem? Ainda: se uma aliança Alemanha-Rússia é intolerável, que dirá uma aliança Alemanha-Rússia-China. É claro que se poderia dizer que se tratava então de referência à besta-fera nazifascista. Sem objeções. Mas nossa hipótese vai além. O nazismo estava derrotado. O fascismo ainda grassava pelas periferias da Europa Ocidental. Não era esse o problema. Tratava-se de subjugar os alemães, uma vez mais. E, principalmente, afastá-los do grande país ao Leste.

Nesse contexto se insere um ponto-chave dos reflexos da guerra da Ucrânia que passa imperceptível aos olhos dos jornais da grande mídia e de analistas desatentos: um dos alvos da ação americana é a Europa,  especialmente a Alemanha e sua economia, que é o coração da economia do Velho Continente. Para ser mais específico, a guerra é de grande serventia para tornar os europeus ainda mais politica e militarmente alinhados ao Império, e economicamente também dependentes dele. Forneço como exemplo para comprovar essa tese as revelações recentes feitas pelo jornalista investigativo Seymour Hersh: os americanos, pelas costas dos alemães, teriam armado uma operação secreta de sabotagem para explodir as tubulações que faziam transporte de gás barato da Rússia para a Alemanha: os gasodutos do Nord Stream[8].

Não cabe detalhar aqui a denúncia feita pelo jornalista. Tampouco ratificá-la em sua inteireza. É necessário lê-la e submetê-la à crítica severa dos fatos.
Fato é que a economia alemã, especialmente o setor industrial, auferia fartos lucros em virtude do fornecimento barato de gás russo[9]. Os Nord Stream eram um grande empreendimento de engenharia, linhas de transmissão subaquáticas de gás que ligavam o território russo ao alemão através do mar Báltico. A conclusão da segunda etapa[10] da linha de gasodutos, que ficou conhecida como Nord Stream 2, foi concluída ainda em Setembro de 2021 e poderia dobrar as exportações de gás para a Europa, aumentando a dependência energética em Moscou. O impacto seria considerável para a economia alemã. De acordo com dados de dois meses anteriores à Operação Militar Especial de fevereiro, o país germânico importou 32% do total de gás natural do país do Leste, 22% vieram do estoque nacional, outros 20% da Noruega, 12% dos Países Baixos, 11% da República Tcheca e o restante de outras fontes, inclusive ínfima produção local.

Acontece que o estoque nacional alemão (22%) possui ainda um quinto de sua capacidade sob propriedade da Gazprom russa[11]. No conjunto da União Europeia, a dependência é ainda maior. Dados de 2020 dão conta que 43% das importações de gás natural do bloco econômico vieram da Rússia[12]. Fica clara, portanto, que a dependência alemã do gás russo não é mero detalhe. É crucial. Os impactos da guerra são visíveis nos valores desembolsados para importação de gás natural pela Alemanha. Agosto de 2022 registra o maior preço relativo de gás dos últimos meses[13]. Foram pagos mais de 46 mil euros por terajoule (Euro/TJ) de gás natural. O valor é mais de 600% maior que em agosto de 2021, mais de 1600% maior que em agosto de 2020 e mais de 1200% maior que em agosto de 2019.

Claramente, o choque de oferta de insumos energéticos impactou os preços da sociedade alemã, o que fez com que o país que antes tinha taxas de inflação bastante baixas, ao redor de 2%, tivesse um súbito aumento para algo ao redor de 8% de inflação. Quando se olha pros índices que mais impactam os trabalhadores daquele país, vemos que a inflação de gêneros alimentícios atingiu cerca de 20% e a inflação de energia, no agregado, atingiu cerca de 45%[14]. Os preços de gás natural, utilizado em  aquecimento doméstico, subiram 51,7% em Janeiro de 2023, em comparação com o mesmo mês do ano anterior. Os preços de eletricidade subiram, em média, 25,7%[15].

Em outras palavras, a União Europeia, e mais especialmente a Alemanha, aqui nosso foco de análise, foi levada a aplicar uma série de sanções à economia russa, das quais boa parte se voltou contra sua própria economia, como um boomerang. Por óbvio, essa situação causou e causa indignação na classe trabalhadora alemã, e são cada vez mais frequentes os movimentos de insatisfação com a guerra, com os gastos bélicos e com seus custos econômicos, ainda que não esteja consolidada uma posição anti-OTAN. Esse sentimento de insatisfação popular, juntamente com essa crítica pouco lapidada, é a isca perfeita para movimentos de extrema-direita, que questionam o poder político da Social-Democracia e da Democracia Cristã e seus tradicionais blocos políticos, colocando-se como força antissistema frente a um sistema falido. A imagem ideal.

Voltando a Seymour Hersh e seu artigo bombástico [sic], os Estados Unidos temiam que, dadas as consequências para a economia e política alemãs, o país iniciasse diálogos e aproximações sucessivas com Moscou, conquanto fazendo concessões a Putin, com interesses próprios: manter o vantajoso comércio entre as duas nações. Isso era inconcebível para o Império. É nesse contexto que se encontra a denúncia do ato de sabotagem das tubulações de gás do Nord Stream. Hersh lembra de fato muito importante. A sessão de confirmação de posse de Antony Blinken, Secretário de Estado dos Estados Unidos, em Janeiro de 2021, no Senado americano. A sabatina foi liderada, no lado republicano, pelo parlamentar texano, o ferrenho conservador Ted Cruz.

Nessa reunião, ambos falam abertamente sobre a necessidade de impedir a conclusão das obras da segunda linha de gasodutos, o Nord Stream 2. Ted Cruz se refere especificamente ao sucesso das sanções aplicadas pelo governo americano visando paralisar a obra: “Disseram que não havia chance de que as sanções fossem parar a construção do gasoduto. Isso agora foi provado ser categoricamente falso, a construção do gasoduto parou. E, claro,  um gasoduto que está 95% completo é um gasoduto que está 0% completo, porque não está operando”[16]. Ora, uma reunião com representantes de uma nação conversando sobre paralisar e impedir o funcionamento de obra de infraestrutura de outras duas nações soberanas. E pior, uma delas, supostamente, aliada.

Em 26 de setembro de 2022, uma série de explosões de origem desconhecida pôs fim a qualquer possibilidade imediata que teriam os alemães de se voltarem aos russos em troca de gás natural. O Nord Stream foi pelos ares, ou melhor, pelos mares. O ato de sabotagem não teve autoria reivindicada, mas se chegou a especular na mídia, via atores políticos claramente imparciais [sic], que a própria Rússia estaria por trás do atentado, com o intuito de acusar o Ocidente. Bullshit! Cui bono? – quem ganha com isso? A Rússia não é uma economia que simplesmente pode dispor de uma obra de engenharia dessa monta. Aliás, qual o sentido de explodir uma infraestrutura que lhe será rentável? Que lhe dará lucro? Hipótese fajuta. “Acusar para não ser acusado”, é o cheiro que tem.

Claro como a água é que a explosão dos Nord Stream favoreceu Washington. O país norte americano se tornou o maior exportador de gás natural liquefeito (GNL) do mundo na metade do ano passado[17], avançando sobre um desguarnecido mercado europeu, mesmo com preços dificilmente competitivos, cerca de 30 a 40% mais elevados que os de Moscou[18]. Ocorre que o GNL americano tem que ser comprimido e resfriado para condensar, e ser armazenado na forma líquida em grandes tanques, onde é transportado. O custo energético embutido no processo encarece o produto final. Além disso, o GNL é sabidamente mais poluente que o gás russo[17], o que é motivo de polêmica numa União Europeia em que a questão ambiental é tema candente.

Enquanto avança sobre o mercado Europeu, o GNL estadunidense perde força na Ásia[19]. Nos primeiros quatro meses de 2022, a queda foi de 51% das exportações no mercado asiático. Isso se deveu a impactos da Covid-19 na China, mas também à maior oferta de gás russo ‘ocioso’ para seus parceiros orientais. Ou seja, como pano de fundo do conflito russo-ucraniano, assiste-se a uma reorganização e realinhamento da economia global. Estamos rumando a uma nova fase. Aliados intensificam suas relações. Submissos submetem-se. Senhores assenhoram-se. Reaparece um clima de insegurança: econômica e militar. O risco da estratégia americana é lançar Moscou aos braços de Pequim – o que não seria má ideia para ambos. Há quem veja este processo já está em curso. Bem, para este segundo player, certamente novos capítulos estarão por vir. Do ponto de vista do país norteamericano, o que importa no momento é resolver a questão da Alemanha. E para isso, a continuidade da guerra é fundamental.

 

Artigos e textos de referência

[1] https://www.pbs.org/newshour/show/turkey-president-erdogan-on-russias-invasion-of-ukraine-and-the-future-of-nato
[2] https://www.scmp.com/news/china/diplomacy/article/3211885/breaking-eu-hungarys-leader-backs-chinas-peace-proposal-ukraine-war
[3] https://www.reuters.com/world/europe/ukraine-must-not-be-pressured-into-bad-peace-deal-says-uk-
pm-johnson-2022-06-07/
[4] http://en.kremlin.ru/events/president/news/67843
[5] https://edition.cnn.com/2023/02/21/politics/2024-rift-ukraine-trump-desantis-haley/index.html
[6] https://www.brasil247.com/mundo/ministra-alema-diz-estar-em-guerra-contra-a-russia
[7] https://www.nato.int/cps/en/natohq/topics_192648.htm
[8] https://seymourhersh.substack.com/p/how-america-took-out-the-nord-stream
[9] https://www.eeas.europa.eu/eeas/eu-ambassadors-annual-conference-2022-opening-speech-high-representative-josepborrell_en
[10] https://www.reuters.com/business/energy/russias-gazprom-says-it-has-completed-nord-stream-2-construction-2021-09-10/
[11] https://www.reuters.com/world/europe/how-much-does-germany-need-russian-gas-2022-01-20/
[12] https://ec.europa.eu/eurostat/cache/infographs/energy/bloc-2c.html
[13] https://www.destatis.de/EN/Themes/Economy/Foreign-Trade/Tables/natural-gas-monthly.html
[14] https://www.worlddata.info/europe/germany/inflation-rates.php
[15] https://www.thelocal.de/20230222/german-energy-and-food-prices-rose-again-in-january
[16] https://www.c-span.org/video/?c4939915/user-clip-blinken-nord-stream-2
[17] https://www.euractiv.com/section/energy-environment/news/top-us-gas-exporter-eyes-europe-growth-with-the-right-contracts/
[18] https://www.aa.com.tr/en/energy/energy-diplomacy/us-lng-price-up-to-40-higher-than-russian-gas-novak/20225
[19] https://pgjonline.com/magazine/2022/october-2022-vol-249-no-10/features/us-lng-exports-to-europe-rise-during-2022