O Partido Democrata e a nova onda esquerdista na América Latina

O Partido Democrata e a nova onda esquerdista na America Latina
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Ainda na virada do século XX para o XXI, a eleição de Hugo Chávez na Venezuela representou um importante giro na política latino-americana, e especialmente na América do Sul. Diante de um panorama de total hegemonia dos preceitos neoliberais do Consenso de Washington no subcontinente, a vitória de Chávez se constituiu na primeira de uma sequencial derrubada dos governos de orientação abertamente neoliberal na região.

Na década seguinte, um amplo espectro de forças oriundas do campo progressista conquistou vitórias eleitorais numa série de países latino-americanos, tais como as de Ricardo Lagos e Michelle Bachelet, do Partido Socialista, no Chile; Lula e Dilma, do Partido dos Trabalhadores, no Brasil; Néstor e Cristina Kirchner, do Partido Justicialista, na Argentina; Tabaré Vázquez e José Mujica, da Frente Ampla, no Uruguai; Evo Morales, do Movimento ao Socialismo, na Bolívia; Rafael Correa, do Alianza PAIS, no Equador; Daniel Ortega, da Frente Sandinista de Libertação Nacional, na Nicarágua; Fernando Lugo, do Movimento Paraguai Possível e da Frente Guasú, no Paraguai; e Maurício Funes, da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional, em El Salvador.

Apesar de inicialmente todas apresentarem um paradigma crítico aos parâmetros neoliberalizantes até então reinantes, quando no governo ensejaram distintos graus de rompimento e continuidade para com seus antecessores. Em países como o Brasil e o Chile, as principais estruturas da ordem neoliberal foram mantidas, ainda que com inovações institucionais no que tange à implementação de programas sociais e de transferência de renda. Em outros, como a Venezuela, o rompimento com a ordem anterior foi radical ao ponto de antagonizar os próprios segmentos produtivos nacionais, o que também dificultou qualquer reversão da crônica superespecialização petroleira e desindustrialização venezuelanas.

Mas apesar destes distintos recortes econômicos e sociais dos governos, é certo que suas respectivas ascensões não atendiam aos interesses dos Estados Unidos na região. Afinal, desde a década de 1990 o foco da superpotência imperialista para as relações hemisféricas repousava exatamente no triunfo da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas), derrotada em Mar del Plata em 2005 justamente a partir da oposição e protagonismo dessa nova onda de governo esquerdistas latino-americanos.

No último período, temos assistido a uma nova onda de ascensão esquerdista na América Latina, e novamente com ênfase na América do Sul. Se inscrevem neste panorama as vitórias de Alberto Fernández, na Argentina; de Pedro Castillo, no Peru; de Evo Morales, na Bolívia; Boric, no Chile; de Gustavo Petro, na Colômbia; e a manutenção dos governos de orientação chavista, com Nicolás Maduro, na Venezuela. E o progressivo declínio da influência social de Bolsonaro no Brasil, às vésperas das eleições, aumenta o alento de que se ampliará esse arco.

No entanto, cabe observar: desta vez, os interesses dos Estados Unidos para a região se chocam em muito pouco com a ascensão de ao menos parte destes governos. Dirigida pelo Partido Democrata, de Joe Biden, uma extensa agenda de intervenção e cooptação das diretrizes dos partidos e movimentos sociais da esquerda latino-americana foi executada nos últimos, e já tem se refletido nas ações governamentais de alguns dos presidentes recém-eleitos.

No lugar da retórica antineoliberal que hegemonizou os movimentos sociais e partidos de esquerda no começo do século (ainda que o PS chileno e o PT brasileiro tenham mantido à risca as diretrizes do Consenso de Washington em seus governos), tomam forma meios mais difusos de contestação à ordem estabelecida. No lugar do antigo antagonismo à ALCA, em defesa das soberanias nacionais, o foco repousa na oposição aos investimentos produtivos em cadeias como as de petróleo e gás, em prol de uma “economia verde”. No lugar da agenda da reindustrialização, imperam agora os anseios por “responsabilidade fiscal” e “saneamento” das contas públicas.

As antigas demandas pela democratização e popularização dos aparatos políticos e institucionais foram substituídas pela “representatividade” de viés identitário, que emula os moldes do fenômeno conservador de Kamala Harris nos Estados Unidos.

Exemplo inequívoco deste desvio de orientação são os descaminhos do governo de Boric, no Chile. E ainda nessa semana, Gustavo Petro, o primeiro presidente “de esquerda” da história da Colômbia, nomeou José Antonio Ocampo, um liberal, para o Ministério da Fazenda. Ao longo de sua campanha eleitoral, Petro prometeu cessar com a política de investimentos nas cadeias de petróleo e gás no país, em defesa do “meio-ambiente”, e grande parte de sua agenda “progressista” reside na sustentação difusa das pautas identitárias de representatividade.

No Brasil, a oposição petista ao governo Bolsonaro parece se encaminhar para esse mesmo sentido. Para além da manutenção da já reconhecida aliança de Lula com os segmentos do rentismo e do capital financeiro, o alinhamento servil de ideólogos petistas com o “progressismo neoliberal” beira o descalabro, ao ponto de Leonardo Boff ter sugerido recentemente, com a anuência de Emir Sader, um processo de “internacionalização da Amazônia”.

Os interesses dos Estados Unidos e do Partido Democrata para a região estão claros: mitigar toda e qualquer possibilidade de ascensão de governos nacional-populares, com uma agenda industrializante e contra o capital financeiro, na região. Nessa mesma esteira, insistem em fazer valer a agenda das “economias verdes”, visando obstruir não apenas o avanço de projetos de infraestrutura e industrialização nos países do subcontinente, mas também o rápido avanço dos capitais chineses sobre estes setores.

Como bem dizia Marx, a história acontece primeiramente como tragédia, e depois se repete como farsa. A onda esquerdista latino-americana do começo do século XXI não é a mesma que vemos se proliferar agora. Não tenhamos ilusões com o “progressismo neoliberal” que avança a passos largos em países como o Chile e a Colômbia, tampouco com as falsas alternativas ao neoliberalismo que se instalam, sob o espectro das esquerdas, em nosso Brasil.