Pactos e o mau-olhado

pactos e o mau-olhado
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Por Artur Santos – É impossível pensar, falar ou escrever sobre viola sem margear o místico. É difícil olhar para o instrumento que cabe no seu colo e que lhe treme a barriga sem permitir que a ele sejam agregados valores que a ciência não explica, pois, basta dedilhá-lo uma vez para que se perceba que alguma coisa a mais entre suas madeiras se esconde; que dentro dele existem causos, estórias e bruxas.

O texto de hoje é sobre isso: sobre o folclore que circunda a viola, sobre as estórias que não desmentimos por medo -pois, não acredito em bruxas, mas, que elas existem, existem- e por falta de coragem. Dos tratados com o Coisa Ruim, com o Cão, com o Tinhoso, das simpatias para se pontear bem a viola, das proteções que caem sobre o violeiro e sobre os mistérios que nosso país permite habitar.

A quem já tocou uma viola, uma coisa é clara: ela treme o peito. Não precisa tocar bem não; ela é generosa. Com uma batida com cordas soltas, enche-se a sala, chama-se os familiares bem para perto e é entendido que ali há música. Há dias nos quais ela não afina, que, não importa quantas vezes tente, o esforço será em vão e, ou se toca desafinado, ou deixa para outro dia. Há dias, inclusive, que parece tocar sozinha.

Óbvio que há um contraponto científico para cada um dos dias citados acima, mas não cabe a mim a negação desses eventos “inexplicáveis”.

Dizem que há duas formas de se tocar bem a viola: tendo o dom ou fazendo pacto com o Coisa Ruim. Existem vários pactos que uma pessoa tocadora de viola pode fazer para ficar boa no ponteio e falo de alguns a seguir.

No pacto com a cobra coral, o violeiro não se encontra com o Tinhoso propriamente dito; deve andar por um “triêro” de gado de noite sem lampião até encontrar a cobra. Se não encontrar, deverá voltar para casa e refazer o caminho no dia seguinte até que encontre o réptil peçonhento. Havendo encontrado o animal, o violeiro deverá pegá-lo com os dedos polegar e indicador da mão direita e, sem que seja picado, passar o corpo da cobra pelos quatro dedos da mão esquerda sem tocá-la no polegar desta última mão, pois, caso contrário, este correrá pelo braço da viola como os outros dedos. Com esse processo feito, o violeiro pode voltar para casa; será um próprio tocador de viola.

Além do pacto da cobra coral, existem muitos outros; como, por exemplo, o da encruzilhada. Este já é mais famoso; conhecido já na tradição do blues do sul dos Estados Unidos, baseia-se no encontro do tocador de viola com o Canhoto. O tocador deve levar uma certa quantidade de pinga à encruzilhada. Deve beber metade da garrafa em um só trago, proclamar alguns versos e esperar com sua viola. O Canhoto virá beber o resto da pinga e afinar o instrumento trazido pelo tocador que deseja ser violeiro. Feito o que descrevi, a alma do vivo pertence ao Cão; agora toca com habilidade e som excepcionais.

Um outro pacto também muito famoso é situado no cemitério, em uma sexta-feira. O violeiro deve esperar até a madrugada e se aproximar do túmulo de um falecido exímio tocador de viola; o espírito deste que irá conceder o dom a quem realizar o pacto. Deve-se ajoelhar em frente ao túmulo, estender bem os braços e rezar algumas Ave-Marias e, se bater um vento, o falecido violeiro estará ali. Reza a lenda que este irá estalar os dedos do vivo e, rezadas mais algumas rezas, poderá voltar para casa um violeiro nato. Existem versões deste pacto nas quais o vivo deverá cortar o dedo mindinho em cima do túmulo do morto para que seja propriamente amaldiçoado com o dom de violeiro e para que a alma passe a pertencer a este.

Não poderia deixar as superstições fora deste texto e, estas também, são das mais diversas qualidades. Há quem coloque um guizo de cascavel dentro da viola para espantar mau-olhado; dizem por aí que a cada 7 anos o violeiro deve passar o guizo para um novo tocador de viola e arranjar outro para não a deixar vazia. Também colam pequenos pedaços de espelho na “mão” da viola (onde se apertam as cordas) para espantar invejas e feitiços alheios. Uma superstição intrigante também é a de que, quando um violeiro morre, seu parceiro não poderá tocar viola por 3 anos; dizem por aí que a quem não respeita o tempo certo, caem más sortes e agouros.

Tudo isso circunda a nossa viola caipira e nossos folclores que o solo desse país habitam. Sempre atentos, nossos conterrâneos contam causos e estórias de bruxas -no significado genérico da palavra- e todos já ouvimos falar de algo sobre. É muito mistério que tem pelo nosso Brasil adentro, muita noite escura, muito vento sem razão, muita viola santa e muita cultura que passa isso a frente. Não quero, em nenhum momento, desmentir tudo o que até agora citei; como já disse antes: “não creio em bruxas, mas, que elas existem, existem” e não serei eu quem desvendará ou desmistificará tais lendas. Até onde sei, todas podem ser reais; então, violeiros e violeiras, cuidado com maus-olhados, protejam suas violas e seus legados, pois são mistérios como esses que dão à nossa cultura sua riqueza e que me enchem de fascínio.

Por Artur Santos, violeiro, violonista e guitarrista. Escreve contos, crônicas e textos reflexivos sobre a cultura do Brasil.