O Teatro dos Juros

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No dia 27 de junho de 2023, o presidente Lula criticou, mais uma vez, o presidente do Banco Central do Brasil, Roberto Campos Neto. Segundo afirmou:

“Ontem eu fiquei indignado, eu estava discutindo o Plano Safra, que será de R$ 364 bilhões a uma média, eu não sei o total, de 10% de juro ao ano, é caro, é muito caro, poderia ser mais barato, mas é que tem esse cidadão no Banco Central que ninguém sabe quem botou lá, que traz os juros em 13,75%”.

Com essa, de acordo com o Poder 360, já somam 76 as ocasiões em que Lula ou seus aliados, como o ministro da Fazenda Fernando Haddad, criticaram Campos Neto desde o início desse governo.

De saída, vale recapitularmos. Em janeiro de 2019, o então presidente Jair Bolsonaro indicou Campos Neto para a presidência do BC, indicação aprovada pelo Congresso Nacional em fevereiro. Dois anos depois, esse mesmo Congresso aprovou a Lei Complementar n° 179/2021, conferindo a chamada “autonomia” ao banco. Logo em seguida, em abril de 2021, Bolsonaro publicou um decreto estendendo o mandato de Campos Neto até 31 de dezembro de 2024 – portanto, até a metade do próximo mandato presidencial.

Portanto, são de conhecimento público e notório os agentes que puseram “esse cidadão” onde hoje se encontra, assim como a quem ele serve. E presume-se que o então candidato Lula também os conhecesse quando, dias antes do primeiro turno, afirmou considerar Campos Neto uma pessoa “razoável” e “economista competente”, declarando ainda que “a mim não causa nenhum problema [o BC] ser independente ou não”. Então, Lula se limitou a defender que fosse promovida uma mudança na lei a fim de que, além de definir a taxa de juros e atuar no controle da inflação, o banco central também definisse e buscasse metas de crescimento e emprego.

Na mesma ocasião, Lula declarou que, nos seus dois primeiros mandatos, seu presidente do BC, Henrique Meirelles, “já era independente. Eu não me metia na política do Meirelles, ele fazia o que tinha que fazer”. Uma rápida pesquisa nos registros do banco nos mostra que, quando tomou posse em janeiro de 2003, Lula herdou de FHC uma taxa básica de juros de 25% ao ano, num momento no qual a inflação acumulada em 12 meses pelo IPCA se encontrava em 12,53% – portanto, resultando numa taxa de juros reais de quase 12,5%.

Porém, talvez julgando que tais juros estratosféricos ainda não fossem suficientes, o “independente” Meirelles elevou a taxa básica para 25,50% em janeiro e 26,50% em fevereiro. Ela permaneceu naquele patamar até junho daquele ano, quando teve início uma trajetória de queda até 16% entre abril e setembro de 2004; voltando a subir para 19,75% entre maio e agosto de 2005; e caindo novamente a partir de setembro até alcançar 13,75% em novembro de 2006 e 13,25% no mês seguinte. Ou seja, apenas no último mês do primeiro mandato de Lula, a taxa de juros do banco central foi inferior à atual. Porém, se considerarmos o IPCA de 3,14% no final de 2006, os juros reais eram então pouco superiores a 10%, ao passo que com o IPCA acumulado em doze meses em maio de 2023 (3,94%), a atual taxa de juros reais é de 9,81%. Isso significa que “esse cidadão” Campos Neto está praticando, hoje, taxas de juros reais menores do que as praticadas pelo “independente” Meirelles ao final de quatro anos de governo Lula.

No segundo mandato de Lula, os juros básicos do banco central caíram de 13,25% em janeiro de 2007 para 11,25% entre setembro e abril de 2008, quando voltaram a subir até 13,75% entre setembro e janeiro de 2009; voltando a cair até 8,75% entre julho de 2009 e abril de 2010; e voltando então a subir até 10,75%, taxa que Lula entregou para Dilma em janeiro de 2011. Entre 2007 e 2010, os índices anuais do IPCA foram, respectivamente, 4,46%, 5,90%, 4,31% e 5,91%, o que significa que apenas nos últimos dois e meio dos seus oito anos de governo, Lula e o “independente” Meirelles podem reivindicar terem praticado juros reais significativamente menores (na faixa de 4,50 a 6%) do que os atuais. Mas isso, vale lembrar, já aconteceu no contexto da grave crise financeira global daqueles anos, quando os países centrais adotavam taxas de juros reais negativas. Permanece então a dúvida quanto ao que, para Lula, haveria de substancialmente diferente entre Meirelles e Campos Neto – à parte, é claro, “quem os botou lá”.

Outra curiosidade nas críticas de Lula à atuação de Campos Neto repousa sobre o fato de que a Lei Complementar n° 179/2021 tornou o banco central “autônomo” do ponto de vista operacional, mas não dos objetivos a serem alcançados. Com efeito, de acordo com o próprio banco, o estabelecimento daqueles objetivos cabe ao Conselho Monetário Nacional (CMN), definido como “órgão superior do Sistema Financeiro Nacional e [que] tem a responsabilidade de formular a política da moeda e do crédito. Seu objetivo é a estabilidade da moeda e o desenvolvimento econômico e social do país”. Cabe a esse órgão, ainda, se reunir uma vez por mês com as atribuições de “deliberar sobre assuntos como orientar a aplicação dos recursos das instituições financeiras; propiciar o aperfeiçoamento das instituições e dos instrumentos financeiros; zelar pela liquidez e solvência das instituições financeiras; e coordenar as políticas monetária, creditícia, orçamentária e da dívida pública interna e externa”.

E quem, atualmente, integra o Conselho Monetário Nacional? Segundo o Ministério da Fazenda, o ministro de Estado da Fazenda, Fernando Haddad, que exerce a sua presidência; a ministra de Estado de Planejamento e Orçamento, Simone Tebet; e o presidente do Banco Central do Brasil, Campos Neto. Isso significa que, por meio dos seus dois ministros, o governo pode formar maioria no Conselho para estabelecer os objetivos de política monetária a serem cumpridos pelo banco central “autônomo”. Por exemplo, o Conselho pode definir uma meta de inflação mais elevada do que a atual (3,25% ao ano), o que poderia levar o Comitê de Política Monetária (Copom) do banco central a antecipar uma trajetória descendente para os juros, uma vez que as suas decisões “são tomadas visando com que a inflação medida pelo IPCA situe-se em linha com a meta definida pelo CMN” e que, conforme vimos, o IPCA atualmente acumulado em doze meses encontra-se acima da meta.

Além disso, o Conselho Monetário Nacional também possui, entre as suas prerrogativas, solicitar ao presidente da República a exoneração, desde que “justificada”, do presidente do banco central. Não entraremos nesse mérito uma vez que essa medida precisaria da aprovação do Senado, assim como uma eventual revogação da lei da “autonomia”, alternativas vetadas pelo seu atual presidente, Rodrigo Pacheco, sob a justificativa de não haver “ambiente” para tal. Mas resta perguntarmos: porque, então, o presidente Lula não exerce a sua maioria no Conselho, reformulando os objetivos a serem alcançados pelo banco central? Ou ainda, porque, já passados seis meses, seu governo não apresentou até aqui nenhum projeto de lei determinando – com toda razão – que, além das metas de inflação, o banco central também passe a perseguir metas de crescimento e emprego?

Simplesmente porque, para Lula, muito mais conveniente do que denunciar publicamente a usurpação de poderes presidenciais contida na Lei Complementar n° 179/2021; ou que assumir os riscos de enfrentar, pelos poucos meios hoje à sua disposição, a colonização do banco central “autônomo” pelo “mercado”, é encenar para a opinião pública esse teatro, responsabilizando – diga-se de passagem, contra a opinião do “independente” Meirelles – “esse cidadão” como o único culpado pela agiotagem legalizada praticada no Brasil.