O significado de Geraldo Alckmin

Botão Siga o Disparada no Google News

Ainda falta muito tempo, muita coisa pode acontecer até lá e mudar o cenário. Porém, a julgar pelas pesquisas realizadas até o momento – que também tem o efeito, se não o propósito, de irem consolidando, cristalizando as percepções e comportamentos –, Lula chegará como franco favorito nas eleições de outubro de 2022, talvez mesmo com chances de vencer ainda no primeiro turno.

Seria esse então o momento de propor um programa com alguma ousadia, correspondendo às alegações daqueles que o reputam como o maior político da nossa história?

Não é para isso que aponta a possível aliança com Geraldo Alckmin, um político profundamente conservador e historicamente comprometido com os valores e as forças defensoras da “austeridade”. Desde sempre um opositor visceral do PT e de Lula, embora recentemente transformado no “único tucano que gosta de pobre”, quantos votos Alckmin lhe permitiria agregar? Para que e com que objetivo? Se é franco favorito, de que votos de Alckmin Lula precisaria?

Com efeito, a impressão que se tem é que não é eleitoral o raciocínio por trás dessa ideia. Não é voto o que Lula esperaria de Alckmin, não seria esse o significado que ele teria a cumprir, mas sim o de servir como uma espécie de “fiança” ou “garantia”. De que se Lula “exorbitar”, se se “exceder”, as oligarquias dominantes, hoje capitaneadas pelos potentados financeiros daqui e do exterior, terão Alckmin no banco de reservas pronto para substituí-lo. Um seguro, portanto, para o status quo de que seus interesses não serão contrariados, de que contra eles não serão promovidas mudanças estruturais.

A representação da próxima eleição como um “veredito” entre “democracia” e “fascismo”, que vem sendo utilizada por alguns como justificativa para essa possível aliança, é no mínimo extemporânea. O momento crítico desse embate aconteceu em 2018. E na ocasião, o que assistimos foi a tentativa fracassada de Lula de transformar a eleição num plebiscito popular a respeito das perseguições judiciais que alegava sofrer.

De fato, conforme já era público e notório, ele as sofria. Mas isso não o autorizava à tentativa de captura de um processo no qual seriam decididos os destinos nacionais em prol da sua causa, antes de tudo, pessoal. Afinal embargada a sua candidatura – por óbvio, uma vez que a Justiça, como ele mesmo afirmava, lhe perseguia –, em seguida o PT indicou Fernando Haddad. “Boa noite, Presidente Lula”, apresentava-se de forma constrangedora nos principais telejornais um candidato sem qualquer autonomia, figura mais propícia a integrar um teatro de bonecos do que a ocupar a Presidência da República. Para a vice foi indicada Manuela d’Ávila, do PC do B. Naquele momento, ainda no auge do antipetismo e sem Lula, o PT estava isolado e teria dificuldades de articular qualquer aliança na direção do centro. Orientou-se então para a esquerda, mesmo porque seu objetivo primordial não era vencer aquela eleição, mas assegurar a hegemonia do campo dito “progressista” frente à ascensão de Ciro Gomes.

Até o momento, tudo nos leva a crer que o cenário de 2022 não será o mesmo. Bolsonaro dificilmente terá chances reais de vitória, embora possa retomar parte da competitividade perdida até lá, fato provável se os grupos interessados em que tudo continue essencialmente como está não conseguirem emplacar alternativas semelhantes, mas melhores modos à mesa, como Sérgio Moro e João Doria. Não há nenhuma dúvida de que Bolsonaro continua sendo um enorme risco que tem de ser erradicado. O “Fora Bolsonaro” é uma tarefa urgente e necessária a ser feita em 2022. Porém, isso não é suficiente. A tragédia desse desgoverno não deve nos fazer perder de vista o que há de mais profundo na nossa crise. A principal solução a ser encaminhada na próxima eleição não é a remoção, já praticamente garantida, do virtualmente derrotado Bolsonaro, mas apontar saídas para esse neoliberalismo que nos assola há décadas e cujo aprofundamento desde 2015 arruinou o país.

Com efeito, as circunstâncias vividas pelo Brasil hoje apontam enormes dificuldades para a repetição do governo praticado por Lula entre 2003 e 2010, estruturalmente neoliberal e pontualmente social e investidor. Constatação que dispensa maiores comprovações, somos hoje um país muito mais fragmentado do ponto de vista social e político. Também muito mais fragilizado no que diz respeito às capacidades estatais. Nos últimos anos, praticamente tudo o que ainda restava da legislação trabalhista foi destruído; os gastos públicos foram congelados por vinte anos em termos reais; as estatais foram sucateadas para serem vendidas; a Petrobras foi dilapidada e transformada numa máquina imensa e implacável de tributação da sociedade; concedeu-se a “autonomia” para o Banco Central, entre diversos outros “feitos”. Os instrumentos à disposição do próximo governo para romper o quadro colocado serão muito mais limitados que há 10 anos, que dirá em 2003.

Na seara internacional, o cenário também é muito mais adverso. A “nova Guerra Fria” entre os Estados Unidos e a China e seus respectivos aliados já é uma realidade, aparentemente, irreversível. Somos um dos seus pontos fulcrais: país de grande importância estratégica tanto para os EUA, por sermos o segundo maior país do “Hemisfério Ocidental” que eles não admitem não controlar; quanto para a China, da qual somos um dos maiores fornecedores de matérias-primas e o principal de alimentos, pilar da sua segurança alimentar. Nesse sentido, estamos numa situação muito complicada: de enorme importância pelas nossas dimensões, altamente cobiçados pelos nossos vastos recursos humanos e materiais e extremamente vulneráveis pelas nossas muitas incapacidades.

Não há, por outro lado, perspectiva de “boom de commodities” como o de duas décadas atrás capaz de proporcionar ao próximo governo grandes folgas nas contas externas, lhe possibilitando investir e sustentar elevados níveis de consumo com base em bens industrializados importados como fez Lula. Dificilmente será possível voltar a praticar a valorização cambial irresponsável que se viu naqueles anos, produzindo sensação de riqueza e afluência para os brasileiros ao mesmo tempo em que praticávamos, passivamente, uma economia política orientada para a desindustrialização, a reprimarização e a perda de capacidades produtivas.

Portanto, há fortes evidências de que estamos nos aproximando de uma encruzilhada histórica. Não parece haver outro caminho para o Brasil nos próximos anos que não apostar na reconstrução das capacidades do Estado, na retomada da industrialização e dos investimentos públicos maciços, da renovação e ampliação das nossas infraestruturas obsoletas, arrasadas pelos menores níveis de investimento da história. Se não formos capazes de fazer isso, continuaremos seguindo o atual caminho da desagregação nacional no qual nos encontramos com contingentes gigantescos e crescentes de subempregados, desempregados, pobres, miseráveis e desalentados de todos os tipos, massa fértil para o crescimento de todos os tipos de crimes organizados e a desestabilização social.

Em suma, o próximo presidente terá que propor algum caminho para que o Brasil se liberte do garrote neoliberal que lhe estrangula. Para isso, não pretendo a ingenuidade de defender qualquer chapa “pura”, “de esquerda”, que acene para eleitorados restritos e já cativos e que seja incapaz de produzir “governabilidade” a posteriori. A construção a ser buscada deve ter viés partidário e caráter ideológico amplo. Devemos buscar a construção de uma coalizão que reúna, sim, os setores “democráticos” contra a excrescência representada e praticada por Bolsonaro, mas também aqueles decididamente comprometidos com a proposição de saídas práticas ao neoliberalismo, de defesa do que restou e de recuperação do nacional. É isso que será viabilizado por uma aliança com Alckmin?

Se derrotar Bolsonaro – o que qualquer outro candidato terá grandes chances de fazer nas atuais circunstâncias – para, em seguida, fracassar em tirar o Brasil desta década de crise, Lula, pelas expectativas populares que necessariamente carrega, produzirá a maior decepção da história brasileira recente. A seguir nesse caminho, Lula correrá grandes chances de desmoralizar a “esquerda” e pavimentar o caminho da extrema direita ao governo. Mais uma vez.