Entre Dostoiévski, na Sibéria, a Fazenda de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, e um 2022 cheio de andorinhas

Botão Siga o Disparada no Google News

Entre os dias 8 e 10 de dezembro, fui convidada para participar do I Encontro de História e Patrimônio da Fazenda de Santa Cruz. Como o convite foi para fechar o evento, tive de assistir a todas as apresentações. Realizado pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e pela Universidade da Zona Oeste do Estado do Rio de Janeiro, respectivamente, UFRRJ e Uezo, o objetivo era que estudantes de mestrado e doutorado apresentassem suas pesquisas sobre memória e, um de seus braços, o patrimônio. Sintetizando: sobre gentes, lugares e culturas.

Localizada na zona oeste do Rio, em bairro que dá seu nome, a Fazenda de Santa Cruz conta nossa História, desde a colonização. Em 1556, pertenceu aos jesuítas, expulsos pelo marquês de Pombal, em 1759. Com a chegada de Dom João VI, em 1808, transformou-se o local em estância de veraneio para a família real, recebendo outra denominação: Fazenda Real de Santa Cruz. Com Dom Pedro I, nova mudança: Fazenda Imperial de Santa Cruz. O golpe da República batiza o local com outro nome: Fazenda Nacional de Santa Cruz.

Mas, antes, ainda no Segundo Império, sediou o Matadouro de Santa Cruz, que abastecia de carne toda a cidade do Rio de Janeiro. Com a extinção do Matadouro, passaram a funcionar ali uma escola técnica federal, um ecomuseu e uma unidade da Aeronáutica. Haja História para contar.

A maioria dos estudantes que apresentou suas pesquisas ou mora em Santa Cruz ou tem uma relação de afetividade com o lugar, um dos bairros mais populosos e pobres da zona oeste do Rio de Janeiro. Pois foi, ali, durante aquele encontro, que pude testemunhar projetos de qualidade, muita esperança, muito otimismo, bem como ares de mudança, desencadeados por seriedade, afinco no estudo e na pesquisa desenvolvidos. Na Ciência.

Aquela garotada tem mais do que simples vontade de mudar: tem garra, coragem, além de objetivos definidos e claros: transformar — pelo conhecimento — a história de vida deles e do lugar. Uma andorinha pode até não fazer verão. Mais de uma, contudo…

MATADOURO E DOSTOIÉVSKI

E é aqui que entra o russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881), completando-se dois séculos de seu nascimento, neste ano de 2021 que finalmente se despede. Pude recordar sua obra Memórias da Casa dos Mortos, de 1861, ao assistir a uma doutoranda falar do Matadouro de Santa Cruz: do sofrimento, da exploração dos trabalhadores do matadouro. Da falta de higiene do lugar, de material. Faltas que causaram perdas de membros dos trabalhadores e, por consequência, os levaram para o olho da rua. O sofrimento destas pessoas, dos bichos.

Aquela moça se apropriou do relato e da descrição de sua pesquisa como formas de resistência. Dostoiévski descreve, por intermédio de um personagem que cria, toda a crueldade feita com os presos em uma das piores prisões da Sibéria, onde ele mesmo ficou encarcerado por quatro anos, por defender o direito à liberdade, contra as atrocidades de um czar. Os prisioneiros podiam levar até seis mil varadas, por qualquer motivo que fosse. Quando um médico atestava que estavam à beira da morte, o suplício era interrompido, o martirizado ia para enfermaria até se curar ou morrer. Caso sobrevivesse, voltaria para receber o restante das varadas.

O magistral escritor deixa-nos suas memórias, pela literatura, na História de sua história. Os trabalhadores do Matadouro feriam-se gravemente. Havia quem morresse. Os escravos antes deles, também. Os índios escravizados, igualmente. Açoitados, tais quais os presos de Dostoiévski. História, literatura contadas pela linguagem, que permite o contato com o mundo, com a significação emotiva das palavras, que nos servem de instrumento de lembrança e reflexão.

NOMES

Houve a dupla de mestrandas que contou dedicar-se à procura de nomes de escravas da Fazenda Santa Cruz. Nomes de quem não teve exatamente um nome e, por conseguinte, uma identidade. Não foi Primo Levi quem escreveu É Isto um Homem? Levi, um químico torturado pelo nazismo e prisioneiro em campos de concentração, afirma na obra que a exterminação física começa pela de-nominação (a retirada do nome). Escravos não eram considerados peças e prisioneiros, números? E indígenas? Não-gentes.

Em meio àquelas apresentações, foi-me ofertada a lembrança de duas, das sete filhas de Mnemosine: Clio – a musa da História, instrumento de trabalho e resistência daquela garotada; e Calíope, musa da poesia, das Letras, da literatura.

Mnemosine é a deusa da memória e da lembrança. Era considerada uma das deusas mais poderosas para os gregos porque eles consideravam que a memória era o catalisador da razão, o que diferenciaria os seres humanos dos outros animais. A deusa tinha o poder de nomear tudo e todos. Segundo os gregos, Mnemosine concedeu a nós a responsabilidade e o poder de memorizar, isto é, de reter conhecimento e de transmiti-lo. Filha de Urano, o céu, e Gaia, a Terra, Mnemosine é considerada aquela que tudo se lembra, e, por isso, teria sido a criadora da linguagem. Por quê? Porque quando falamos e nomeamos (tais quais aqueles estudantes se puseram a fazer) damos vida e voz a quem não tem mais como fazê-lo, como escreveu Eclea Bosi, em seu livro A Memória dos Velhos.

O papel da memória, contudo, é mais do que reviver o passado. É nos tornar dignos de nós mesmos, olhando o passado e avaliando o que merece ser revisto ou não. Mantido ou não. Naquele encontro sobre um patrimônio, numa região que guarda tanto da nossa História e do sofrimento de tantos, havia desejo de deixar falar a memória. A memória que compartilhamos com a língua que falamos: a linguagem. No que vemos. E como vemos.

Assim, a cidade é lugar de memória, de patrimônio e, por isto, lugar de disputa de poder. Na época de Dom João VI, por exemplo, o Matadouro ficava na Praia de Santa Luzia, no centro do Rio de Janeiro. Mas Dom João era devoto da santa, visitava sua igreja em frente à praia com frequência. Carne, sangue, sofrimento, cheiro de morte, decomposição. Muda-se de lugar o Matadouro para a Praça da Bandeira, bairro da zona norte. Começa-se, então, a alegar o perigo de miasmas, tal qual fizeram para derrubar o Morro do Castelo. Muda-se, então, o Matadouro para Santa Cruz.

Não por acaso, o historiador Afonso Marques dos Santos, no livro Memória, Cidade e Cultura classificou como documentos de cultura o que inclui a cidade, sua topografia. Neste rol, também estariam a literatura e a música.
Música, festa, carnaval. É sobre este temário que nos falou outro mestrando. Mais especificamente sobre os bate-bolas. Também conhecidos como Clóvis ou Clows (palhaços), que brincavam durante o carnaval e batiam forte com suas bexigas barulhentas. Muitas delas feitas de quê? Das bexigas dos bois do Matadouro.

Michel Pollack, em um artigo chamado Memória e Identidade Social, se não me engano, vai nos dizer que a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva. Memórias convivem entre si. Dado ocuparmos vários papéis sociais: filhos, pais, avós, alunos, professores. Somos, então, atores ativos de construção de memória, mas também passivos, de recepção de memória, muitas vezes à nossa revelia.

Registrar, como aquela garotada está fazendo em suas pesquisas — os seus documentos de cultura — é criar memórias da e na história humana. É tornar possível que cada geração se aproprie da bagagem cultural produzida ao longo de todo o desenvolvimento de nossa espécie. A memória é socialmente construída, é polifônica. In memoriam, isto é, o que se impede de esquecer. Recordar, que vem do latim recordare, é voltar a passar pelo coração. Cor, também palavra latina, significa coração. Daí a expressão “saber de cor”: saber de coração.

Toda a ideia de civilização baseia-se, sobretudo, em marcas de memória. Não é a memória o lugar da retenção do conhecimento, da aprendizagem? Não é a memória o lugar onde se inicia a elaboração do conhecimento científico? A memória liga o presente ao passado, em busca de um futuro.

Desejo, então, um futuro 2022 com muitas e muitas andorinhas. Para que se somem àquelas jovens andorinhas. E que universidades — espaços benfazejos de civilização, civilidade, cidania, de abrigo e formação de andorinhas — sejam respeitadas e valorizadas como devem.