O senso comum não é bolsonarista

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Por Caio Gontijo – Aquilo que corretamente chamamos de “senso comum” é formado pelo decantamento de diversas “teorias” implícitas ou explícitas. Há filosofias inteiras, mesmo implicitamente, no critério mesmo que o senso comum impõe a si próprio para a distinção entre verdadeiro e falso, bom e ruim etc. No senso comum, a título de exemplo, reside certo kantianismo “popular” que afirma que se deve agir em direção a outrem como se gostaria que os outros agissem em direção a si mesmo. Esse “critério” para a ação, por mais redundante, o senso comum retira dele mesmo sem saber e o universaliza como se não fosse uma particularidade histórica.

É evidente, no entanto, que o senso comum não é algo rígido e imóvel, mas que se transforma continuamente, enriquecendo-se com “novas” filosofias. Em cada momento, ele é documento de sua realidade material e histórica.

Aquilo que não é o senso comum, isto é, que se apresenta como sua negação, é logo marcado por ele mesmo com um sinal negativo de ridículo. Hegel observou na imediaticidade da percepção “eu sou eu” uma tautologia sem movimento. No senso comum, que também quer ser idêntico a si mesmo e negar aquilo que não é ele como ridículo, no entanto, há movimento. Isso, o senso comum não sabe, mas ainda assim age de acordo. O senso comum apenas suspeita do movimento, o que significa dizer que dele sabe implicitamente, ao observar as sucessões geracionais, os conflitos de costumes entre elas etc., como se apenas tivessem a ver com a vida natural, a realidade do mundo exterior natural, e dela fosse um fato simples. O ridículo ao qual o senso comum condena os desviantes é o que mantém a unidade do senso comum consigo mesmo.

Mas isso, evidentemente, não significa que não haja mudanças possíveis no senso comum. Como disse, ele está sempre em movimento. Também não significa que o senso comum seja em si mesmo generalizável de maneira valorativa (bom ou ruim). A ‘gente comum’ que o pratica (aí também estamos nós) possui potência para ser e isso lhe confere liberdade, ainda que mediada. Assim, também é livre o senso comum.

Falsa negação

Contra essa percepção, mesmo que não saiba, se ergue uma variação de ‘esquerdismo’ que fetichiza o senso comum, nele projeta todo seu ‘sistema de pensamento’ como se fosse dele (ou pior, como se as ‘sabedorias’ comuns tendessem a alguma homeostase social). O trata com o exagerado respeito que logo desliza para a desconfortável condescendência que retira da ‘gente comum’ toda ação (louvável ou deplorável). Essa tendência opera hoje na vida política brasileira reivindicando-se, primeiro, como ‘esquerda’ política, segundo, como ‘popular’.

Mas ela é cada vez menos popular. Em outra ocasião devemos discutir exatamente o passado e presente do ‘popular’. Ainda assim, é herdeira, de certa forma, de todos aqueles que, no passado, também se reivindicavam populares: comunistas, socialistas, desenvolvimentistas, trabalhistas etc. No entanto, estes últimos, anteriores a uma série de mudanças sociais, políticas, econômicas e até culturais iniciadas entre os anos de 1960 e 1980, à qual se dá o nome de ‘neoliberalismo’ (o que às vezes o mistifica), operavam diferentemente. Eles buscavam ao senso comum como ponto de partida, a ele se incorporavam para levá-lo a um ponto de chegada outro, e não o contrário; como essa tendência atual, que parte do lugar imaginado, fruto da liberdade ‘estoica’ do pensamento, para acreditar ter chegado, com ele, na ‘gente comum’.

É um resultado inevitável que, de tempos em tempos, os adeptos dessa tendência se frustrem e às vezes até se prostrem a um viralatismo implícito que regurgita um tipo preguiçoso de dependentismo que afirma que nada nunca é possível no Brasil (apenas a revolução verbal, simulacro militante). Isso ocorre pois o ‘tempo’ do senso comum não é o mesmo ‘tempo’ das vontades militantes. O senso comum não tem pressa.

Para essa tendência, o bolsonarismo (anterior ao Bolsonaro e que talvez sequer mereça exatamente seu nome), é doença crônica, e, na impossibilidade de curá-lo, deve-se recorrer ao tratamento (precoce) do adesismo apressado a qualquer coisa contrária. É evidente que qualquer coisa é preferível ao bolsonarismo e, assim posta, temos aí uma não-questão. O bolsonarismo, assim como o ridículo, sobre o qual comentávamos, sempre foi uma força negativa. Tendo chegado ao poder, Bolsonaro foi obrigado a converter essa negação em afirmação. Esse lento trânsito de negação a afirmação é também a ‘lentidão’ relativa (às vontades militantes) do senso comum. Mesmo que não notemos, ainda assim se move (Eppur si muove!).

Passado e presente…

Vejamos mais de perto com um exemplo histórico. Antonio Gramsci observa no filosofia fascista (original, italiana) de Giovanni Gentile, uma concepção de ‘natureza humana’ a-histórica e suposta ‘verdade do senso comum’, como se no ‘senso comum’ existisse ‘um só’ senso comum, eterno e imutável (Q8 §175); dele se subtrai a ação. Também aqui se trata de uma espécie de projeção e o erro se mostra, de fato, comum. Mas, como afirmei, o senso comum sabe implicitamente de sua ação e, ao que parece, não lhe agrada que dele seja retirada. Gramsci finalmente nota que a filosofia de Gentile é ela mesma totalmente contrária ao senso comum, que detesta qualquer forma de idealismo subjetivista (Q11 §13).

Olavo de Carvalho está para Giovanni Gentile assim como Bolsonaro está para Mussolini. Ambos ‘negam’ com a corrosão do ridículo e, não obstante, ambos logo são negados pelo senso comum. Diferentemente do fascismo brasileiro original, o Integralismo de Plínio Salgado de forte base social e cuja proposta, pelo menos, resultava atrativa no nível econômico-corporativo (imediato) até para as classes mais baixas, o bolsonarismo perde sua chance ao largar o auxílio emergencial, o pouco que tinha. O que restou da negação ridícula foi a gradíssima apresentação da filosofia bolsonarista, debitária de Olavo de Carvalho, como filosofia prática.

Resultou em total desencantamento. Desta filosofia, o senso comum retirava apenas a superfície que lhe servia como explicação imediata para sua desgraça (o ‘desvio moral’ da juventude nas escolas, meios de comunicação, burocracias etc.). Aí ainda era apenas negativa. Mas quando se afirmou, no 1º de janeiro de 2019, essa filosofia implícita se tornou explícita e logo veio abaixo. Não poderia ser diferente. Olavo de Carvalho é um “místico” da Tariqa, astrólogo, crente em sua intuição transcendente e nem sequer é, pessoalmente, o conservador que gostaria de ser e que defende. Bolsonaro é uma figura, além de todos os adjetivos, profundamente infantil e insensível. É um grande ‘birrento’, ‘do contra’, apenas, mas isso não serve para afirmar. Ao tratar o medo da morte por Covid, por exemplo, como ‘frescura’, assim como Gentile, também está completamente contrário ao senso comum que, ainda que em seu interior, teme ao Covid assim como teme à morte. Na verdade, não há nada mais contrário ao senso comum que essas duas figuras e sua filosofia.

Por: Caio Gontijo.