O governo do Mercado

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Christiane Laidler – A primeira reforma do governo do Golpe de 2016, aprovada em dezembro por um rolo compressor na Câmara e no Senado, foi o teto de gastos, a Emenda Constitucional 95. A Constituição brasileira foi rasgada ali na definição da soberania do orçamento público, sequestrado por 20 anos – 5 legislaturas. Se o crescimento tão prometido acontecesse, não poderia haver distribuição das riquezas por meio de bens públicos; se, como fora planejado, a exploração do pré-sal garantisse uma fonte de poupança e investimento público em saúde e educação, este não poderia mais ser realizado. Toda riqueza que, porventura, fosse adicionada ao PIB, não poderia chegar ao povo. Mas, essa excepcionalidade brasileira do teto não surpreendeu. Foi um assalto à soberania que contou com articulação dos Poderes da República, com apoio uníssono dos meios de comunicação financiados ou de propriedade do Mercado.

O detalhe diferencial da aprovação desse sequestro da soberania foi a participação direta do STF. Sua tramitação dependia da máquina das Mesas Diretoras do Congresso azeitada. Porém, Renan Calheiros fora afastado da presidência por liminar do Ministro Marco Aurélio. O Supremo decidira, com seis votos já dados, que réus não podiam estar na linha de sucessão da Presidência da República, e, por isso, o ministro aceitou pedido de afastamento de Renan feito pelo Rede Sustentabilidade. A decisão foi revertida numa votação do Plenário, no jeitinho. Renan reassumiria, com o impedimento excepcional de assumir a Presidência da República. A presidente do STF contrariou o voto anteriormente dado para não atrapalhar as reformas. Quantos ministros do STF nós ouvimos dizer que o Brasil precisava fazer as “reformas”? Fazer as reformas, para nós, tem aquele significado de dogma, que a gente ouve desde o fim da ditadura.

O resultado da concentração da riqueza na forma de estagnação ou recessão não afeta o Mercado. Ele se apropria de mais e mais ativos, produzindo ganhos espetaculares em tempos de crise, uma riqueza que escoa de toda a sociedade para os cofres do Mercado, este deus privado. Quando a República – seus Poderes – se aconselha com o Mercado, aprende com o Mercado, e é governada pelo Mercado, ela acabou. E, se a justificativa da transferência do poder soberano para o Mercado é a melhor alocação de recursos, vejamos como o Mercado os aloca.

O lucro líquido do BTG pactual no 2º trimestre de 2021 foi de 1,7 bilhão, contabilizando aumento de 43,6% em relação ao trimestre anterior. O patrimônio líquido chegou a R$35 bilhões, resultado que o presidente da empresa, Roberto Sallouti, comemorou como “o melhor trimestre da nossa história” com “métricas de capital acima da indústria”. A XP, outro banco de investimento, teve lucro superior a R$ 1 bilhão no mesmo trimestre, com 22% de aumento em relação ao trimestre anterior. O Itaú lucrou 6,5 bilhões, com aumento de 2,3% em relação ao primeiro trimestre do ano e 55% em relação ao ano anterior. Se o leitor imagina que este lucro pode ser uma recuperação de uma queda em período de pandemia, se engana. O lucro do BTG em 2020 foi de R$ 4 bilhões, o da XP de R$2,27 bilhões, e o do Itaú, que caiu 35%, foi de apenas R$ 18,5 bilhões. Quem você conhece que ganhou no ano da pandemia? Agora você já pode responder a essa inoportuna questão. O Mercado ganhou. Mas, de onde saiu essa riqueza se o país produziu menos? A resposta é que saiu de todos nós que perdemos ou estagnamos. Esse processo de transferência não para por aqui. Essas empresas têm comprado ativos públicos que estão sendo liquidados como xepa. Alguém ouviu falar do negócio da BR Distribuidora? Segundo a Agência Brasil, 57% das ações ofertadas foram compradas por fundos de investimentos. O filé mignon da Petrobrás, a bomba de distribuição – onde o investimento já foi todo pago e o lucro se realiza – agora é propriedade de fundos. O que isso nos diz sobre a melhor alocação de recursos? Quanta produção o negócio gerou? Quantos empregos? Nenhum. A alocação é a dos lucros para a pequena oligarquia que detém os excedentes produzidos. Talvez aquele 1% dos que detêm mais de 50% das riquezas do mundo. Esta é a alocação que o Mercado faz.

A absoluta falta de investimentos e a preferência das empresas por ativos financeiros já foi amplamente demonstrada por Belluzzo e Galípolo, em Manda quem pode, obedece quem tem prejuízo, por Mariana Mazzucato, no livro O valor de tudo e por muitos bons economistas, sociólogos do trabalho, geógrafos, jornalistas e outros observadores do tempo presente. Esse Mercado reverenciado pela burocracia e partidos políticos do Estado brasileiro é um pequeno círculo de fundos atuando num jogo de troca de ativos de mãos, fusões, desmembramentos, endividamento de empresas que na sequência são esquartejadas com a liquidação das partes podres e com os CEOs embolsando bônus milionários. Este é o jogo. A tragédia é tão devastadora que o FMI vem recomendando há quase uma década que os Estados entrem em cena para investir, porque todo o dinheiro que o FED e BCE colocaram no mercado para dinamizar as economias após as crises de 2008 e 2011 empoçou no sistema financeiro, ou seja, no Mercado.

Se é desses fundos que depende a alocação dos recursos, então estamos acabados como sociedade. Esse Mercado se autonomizou. Hoje ele é aquele sujeito das orações dos meios de comunicação – o maestro de tudo. O Mercado está estressado, está nervoso. O Mercado não gostou. O Mercado quer as reformas. Ah! As reformas! Mas, quais reformas? Por que nunca são suficientes, nunca acabam? Todas as respostas são genéricas e imprecisas, verdadeiros nevoeiros que se resumem, em qualquer caso, a diminuir gastos públicos e eliminar direitos sociais. Dane-se o pacto de 1988. Direitos? Esse vocábulo não existe, nem mesmo para tratar dessa liberdade absoluta de criação, apropriação e transferência de ativos, porque isto é simplesmente a natureza.

Se você fosse um banqueiro de investimentos, capaz de financiar, com folga, partidos e candidatos, garantindo maiorias para aprovar sua agenda de transferência das riquezas de um povo inteiro, mas tivesse que aceitar um sistema presidencial com eleições periódicas, qual seria sua prioridade? Sua resposta seria eleger um representante da sua agenda, é claro. E se essa tentativa fracassasse sistematicamente? Talvez um golpe resolvesse. Mas, sabendo que não seria possível fugir das eleições, e sem candidatos competitivos, quem sabe poderia investir num outsider. Melhor que fosse um estúpido, deslumbrado com o poder, que pudesse ser comandado, melhor ainda se trouxesse consigo o exército “nacional”. E, de bônus, um passado sombrio para que pudesse ser chantageado e dependesse vitalmente da relação que o mantém no poder. Alguém pensou no Brasil hoje? Talvez todas essas inferências respondam à questão que nos incomoda tanto há três anos. Como pudemos ter chegado até aqui, naturalizando a barbárie, a ofensa, o vexame, o charlatanismo, a corrupção, e todas as mortes da cloroquina? Pois bem, tudo isso é ativo para o Mercado.

No entanto, não é para os 14% de desempregados, nem para os empreendedores de si que trabalham precariamente para aplicativos, nem para a maioria que perdeu 7% em média da renda salarial em 2021. Nenhum de nós entra no STF para tratar de nossos ex-direitos, ou para ensinar aos ministros sobre a economia parasitária dos fundos que concentram a propriedade dos ativos e a renda do nosso trabalho. Ou para explicar aos ministros que decisões de política monetária são políticas e correspondem às necessidades de regulação de condições econômicas para o desenvolvimento ou para o posicionamento de um país no sistema global. E são também políticas quando a escolha é roubar a soberania governamental, com uma suposta independência (para se submeter ao Mercado e lhe dar as pistas para os ganhos com taxas de juros), como foi antes roubada a soberania orçamentária. Alguém já conversou com os excelentíssimos sobre isso? Alguma associação ou partido? Aliás, alguém foi informado de que o Judiciário passaria a arbitrar a agenda política? Com certeza, não.

No último final de semana, vimos o poder que move a mão invisível. E quando a mão emerge sob nossas vistas, é para nos dar um golpe definitivo. Sem o verniz de seus articulistas panfletários da grande imprensa, sem o discurso hermético da “economia”, sem a construção retórica que vende a liberdade de monopólios como liberalismo, ela nos mostra que os Poderes, pagos por nós, servem à predação financeira das riquezas do país. É um golpe contra a humanidade, contra cada um de nós que acreditou na democracia eleitoral. As instituições da democracia de massas são, hoje, uma máquina (vendida) de disputa permanente pelo poder, sem nenhuma relação com programas, projetos e ideologias. Ela combina o ciclo eleitoral com o pragmatismo do Mercado e acaba por representar um pequeno grupo de financiadores que garantem, assim, o domínio total dos Poderes e de sua liberdade de se apropriar de todas as riquezas produzidas pelo conjunto da sociedade. Eles se locupletam enquanto jogam nossas vidas, nosso trabalho, nossa criatividade e nossos sonhos de sujeitos modernos, que desejam construir seu futuro, nos cassinos financeiros. Quem sabe com 400 reais para nosso “auxílio” eles compram a sua paz social e moral.

O mundo está de ponta-cabeça. Não é mais apenas a mediação dos monopólios de comunicação que cria um enredo farsesco para nos enganar; também as instituições se transformaram em personagens da pantomima que nos ilude. Não temos nenhum poder, soberania ou cidadania. Tudo é jogado no cassino financeiro. E tudo quer dizer: nossas vidas.

Por Christiane Laidler