Moïse Kabagambe: A dor do povo negro

Moïse Kabagambe A dor do povo negro
Ivana Lay, a mãe de Moïse Kabagambe com uma foto do filho.
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O pensador W.E.B. Du Bois afirma em sua obra “As Almas do Povo Negro”, publicada pela primeira vez em 1903, que a sociedade é formada por um véu que evidência a linha de cor, ou seja, a apartação entre brancos e negros racionalizada pela estrutura social, política e econômica, a tal ponto que os negros do mundo todo estão do mesmo lado do véu.

A partir da realidade de formação da sociedade brasileira, constata-se que o país é caracterizado pela violência contra os negros estruturada pelo racismo, a ponto de ser normalizado e naturalizado a inferiorização da população negra. A sofisticação da estrutura do Brasil está alicerçada na falácia da democracia racial, que insiste em negar que a discriminação racial faz com que os negros sejam vistos como corpos matáveis, incapacitados, criminosos e tudo que esteja relacionado a negatividade, e o branco o oposto.

Silvio Almeida, em “O que é Racismo estrutural?”, afirmou que o racismo atribui vantagens e desvantagens a depender do grupo a qual pertença com fundamento na raça. Desta forma, o poder concentrado nas mãos dos brancos reproduz consensos ideológicos conscientes ou inconscientes que inferiorizam os negros e impedem a materialização da igualdade tal qual como a dos brancos.

Em que pese o Brasil ser conhecido pela recepção de imigrantes, com certeza, nesta sociedade racista há uma seletividade sobre quais os imigrantes são bem-vindos. Por causa do racismo, os imigrantes negros possuem mais dificuldade para inserção no mercado de trabalho, bem como para a concretização de todos os direitos e garantias que fundamentam o Estado Democrático de Direito.

A Lei de Imigração (Lei n. 13.445/2015), que dispõe sobre os direitos e os deveres do migrante e do visitante, regula a sua entrada e estada no País e estabelece princípios e diretrizes para as políticas públicas para o emigrante, prescreve dentre muitos princípios e diretrizes o “repúdio e prevenção à xenofobia, ao racismo e a quaisquer formas de discriminação” (art. 3º, inciso II), assim como “a garantida no território nacional, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (art. 4º, caput), assegurada  a “garantia de cumprimento de obrigações legais e contratuais trabalhistas e de aplicação das normas de proteção ao trabalhador, sem discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória” (art. 4º, inciso XI).

Importante mencionar também que a condição do refugiado também é assegurada pela Lei n. 9.474/1997, que define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina outras providências, de maneira que prescreve no artigo 1º sobre a pessoa que será reconhecido como refugiado.

Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que:

  • devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país;
  • não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior;
  • devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país

Segundo os dados da Agência da ONU para Refugiados, registrou-se um aumento de solicitações de refúgio de 1.872%, se comparado ao ano de 2011, primeiro ano da série analisada, de maneira que das 1.464 solicitações em 2011, recebeu 28.899 solicitações de reconhecimento da condição de refugiado em 2020. O relatório aponta que em 2020, pessoas de 113 países solicitaram o reconhecimento de refugiado, sendo que destacam-se pelo elevado número de solicitações pessoas da Venezuela, Haiti, Cuba, China, Angola, Bangladesh , Nigéria, Senegal, Colômbia e Síria. A nacionalidade com maior número de pessoas refugiadas reconhecidas, entre 2011 e 2020, é a venezuelana (46.412), seguida dos sírios (3.594) e congoleses (1.050).

O Relatório do Observatório das Migrações Internacionais, apontou que os imigrantes de longo termo, que são os que permanecem por um tempo superior no Brasil tiveram os maiores registros entre os nacionais da Venezuela (142.250), Paraguai (97.316), Bolívia (57.765) e Haiti (54.182), representando 53% do total de registros.

Os dados revelam que o número de imigrantes e refugiados negros de países africanos e latino-americanos é elevado, motivo pelo qual ao se analisar as condições que são recepcionados no Brasil por raça e cor, eles integram o grupo que mais carece da efetividade das leis supramencionadas, ou seja, são essas pessoas que não tem os direitos à igualdade, dignidade e à vida garantidos. O fato de ser um imigrante negro, de países africanos ou da américa latina, é uma condição que coloca mais obstáculos para ser integrado à sociedade brasileira, pois no imaginário social, apenas os europeus são constituídos de confiança, inteligência e capacidade.

Ainda, muitos dos imigrantes desconhecem as leis brasileiras, de modo que são enganados por empregadores que usam a mão-de-obra imigrante, mas sem o pagamento dos direitos trabalhistas corretos. Se para os nacionais há diversas violações das leis trabalhistas, não restam dúvidas que a condição dos imigrantes e refugiados é ainda mais precária.

O Relatório do Observatório das Migrações Internacionais também constatou que “os imigrantes de cor ou raça amarela, em maioria asiáticos, e branca, em maioria europeus e norte-americanos, receberam rendimentos muito superiores aos de cor ou raça preta, de origem centro-americana ou caribenha e africana em geral, e também parda, estes em grande parte originários da América do Sul”.

Nesta realidade que fomos, mais uma vez, brutalmente agredidos com o assassinato de Moïse Mugenyi Kabagambe, congolês, com 24 anos, refugiado político desde 2012 com seus familiares e trabalhador informal no Quiosque Tropicália, na Praia da Barra da Tijuca, onde foi espancado com socos e pedaços de pau até à morte por cinco homens, no dia 24 de janeiro de 2022. As imagens gravadas no momento do crime revelam que Moïse foi agredido, no mínimo, com 30 pauladas, sendo que já estava imobilizado e sem chances de defesa.

A cena presente nas gravações parece aquela de linchamentos que aconteciam no Sul dos Estados Unidos ou na África do Sul nos séculos XIX e XX. Para aquelas pessoas que insistem em dizer que nesses países que havia racismo, porém no Brasil não, no mínimo, cabe a elas reconhecerem o racismo no assassinato de Moïse. Infelizmente não são cenas de um memorial do regime apartheid, mas uma cena real; uma cena do Brasil na segunda década do século XXI; uma cena em 2022. Este é o Brasil: elitista, racista, xenófobo e misógino. Um país violento para o povo negro.

Não devemos nos iludir que a violência não é fruto do racismo. Não podemos nos iludir que foi uma briga para não pagar o salário de dois dias de trabalho de um jovem negro no Rio de Janeiro. Não! Quantos imigrantes negros estão inseridos no mercado de trabalho? Quantos negros estão em trabalho informal? Quantos negros estão desempregados? Quantos negros são professores, médicos, empresários e políticos? Quantos jovens brancos estão trabalhando na informalidade nos quiosques das praias do Rio de Janeiro?  Por fim, quantos casos de jovens brancos espancados até a morte vocês conhecem?

Houve racismo neste terrível crime porque, se fosse um homem branco, isso JAMAIS teria acontecido. É desonesto alegar que não há racismo neste caso. Importante destacar que a Constituição Federal estabelece o repúdio ao racismo (art. 4º) e que ele é um crime imprescritível e inafiançável (art. 5º, inciso XLII).

Para além disso, o assassinato de Moïse Mugenyi Kabagambe foi repercutido na mídia uma semana após os fatos, e somente a partir disso que as autoridades se sentiram pressionadas para investigar o brutal e cruel crime apresentado.  Até o momento, sabe-se que Fábio Silva, Aleson Cristiano de Oliveira Fonseca e um terceiro homem cuja identidade não foi divulgada tiveram a prisão temporária decreta por homicídio duplamente qualificado. Além disso, a licença do Quiosque foi suspensa pelas autoridades até o final das investigações.

Silvio Almeida afirma que “o olhar estrutural sobre as relações raciais nos leva a concluir que a responsabilização jurídica não é suficiente para que a sociedade deixe de ser uma máquina produtora de desigualdade racial” (ALMEIDA, 2018, p. 39).

O assassinayo de mais um jovem negro não deve virar mais uma estatística. O nosso grito de Justiça para Moïse Mugenyi Kabagambe não será satisfeito enquanto seus assassinos não forem punidos com o rigor previsto na legislação, bem como enquanto o Ministério Público do Trabalho não investigar todos os estabelecimentos comerciais da mesma natureza do referido quiosque, com o objetivo de reprimir o trabalho precário, as violações à Consolidação das Leis Trabalhistas e aos acordos internacionais que prescrevem sobre trabalho decente.

Casos análogos foram repercutidos na mídia e nas redes sociais, e também pugnaram por Justiça como o de João Alberto Silveira Freitas, brutalmente assassinado no Supermercado Carrefour, em 19 de novembro de 2020, de modo que a comoção não é suficiente para mudar essa realidade. O nosso problema é estrutural. Nunca vamos ter justiça se não entendermos e relação econômica, ideológica e política, e a partir disso nos aquilombarmos, no sentindo de organizarmos um movimento social capaz de romper com o véu que é construído pelo racismo.

Portanto, por Moïse, João Alberto, Marielle Franco e tantas outras pessoas negras, negros e negrxs, gritamos: JUSTIÇA!

Referências:

ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é Racismo estrutural? Belo horizonte: Letramento, 2018.

DU BOIS, W. E. B. As almas do povo negro. Tradução de Alexandre Boide. Ilustração de Luciano Feijão. Prefácio de Silvio Luiz de Almeida. São Paulo: Veneta, 2021.