Lula e o identitarismo: sintomas de um abandono eleitoral

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Todos têm acompanhado o desempenho da pré-candidatura de Lula às eleições de 2022. Ele tem figurado nas pesquisas eleitorais como favorito e tem aproveitado algumas oportunidades de entrevistas e pronunciamentos para sondar, com declarações de aceno, possíveis parceiros e alianças. No bojo de seus movimentos recentes, contudo, chamou a atenção os ruídos que ele provocou ao prestar declarações estranhas, pouco sensíveis ao politicamente correto e ao identitarismo, e certamente destoantes de sua personagem política.

Primeiro, uma polêmica em defesa do Pastor Sargento Isidório, quando disse em um bate papo com Linn da Quebrada, ativista social LGBTQI+: “Se eu puder dar uma contribuição para que o pastor Isidório não tenha preconceito com vocês, eu vou fazer, e se eu puder convencer vocês a não ter com ele, eu vou fazer”, arrancando a indignação da comunidade ali representada por Linn. Depois, a Mano Brown: “Há uma evolução política dos negros, tanto homens como mulheres, um grande número de gente está adquirindo consciência de que não basta ficar achando que é vítima…”, palavras que chegaram como ofensa a militantes do movimento negro. Insinuar preconceito invertido por parte dos LGBTQI+ e sugerir vitimismo por parte dos negros são dois golpes muito duros para serem dados em tão pouco tempo pelo candidato querido da maioria dos identitaristas. Tento interpretar o porquê disso.

Apenas para fins de organização das ideias e começo de conversa, proponho uma definição provisória e porosa do que chamarei de identitarismo. Trata-se de um amplo conjunto de atores, interesses e visões de mundo para os quais a prioridade política deve ser superar as desigualdades residuais que oprimem aqueles que, no escopo total dos assuntos nacionais, permanecem, de alguma forma, sub-representados e aquém dos poderes decisórios capazes de determinar a agenda brasileira. Esses grupos constituem uma vanguarda social emergente, sobretudo na transição dos séculos, após o lugar de agente da transformação social ter sido paulatinamente abandonado pelos trabalhadores dos setores intensivos em capital. Caracteriza-o, não um lugar na divisão social do trabalho, mas o compartilhamento de uma identidade de grupo. As representações emblemáticas para tais grupos foram os movimentos sociais dos negros, das mulheres e dos pautados por orientações ou identidades sexuais. Apesar de ainda não terem alcançado o centro do poder praticado nas instituições políticas, já são relevantes na elite intelectual acadêmica – e nos domínios do ensino público como um todo – e nos ramos das telecomunicações.

A influência gradativa que os identitaristas têm adquirido no país revela-se sobretudo na repercussão das denúncias que notabilizam as formas explícitas ou sibilinas de opressão contra aqueles grupos, denúncias que agitam os ambientes virtuais de interação e que reivindicam desfechos com sanções jurídicas. A capacidade de mobilizar pelos objetos da fala atraídos por uma empatia quase irresistível, dado o caráter chocante com que são expressos, é um trunfo identitarista que não recebe qualquer objeção por parte da fração acadêmica e midiática que não concorda com seus métodos e procedimentos nem com a substância de suas teses, ainda que reconheça a nobreza e a urgência da defesa a que elas se prestam. E é assim que prosperam: com disposição ao barulho e com a complacência dos outros. A prosperidade do discurso identitarista em alguns domínios da vida social brasileira reside não em uma unificação das pautas identitaristas, mas em uma cultura identitária, algo difuso, mas pregnante. Se a influência ainda não é a desejada pelos porta-vozes dos movimentos, já é bem mais expressiva do que o fora em passado recente. O ponto de inflexão entre o completo desamparo social e o status de incontestável força ideológica deu-se justamente nos anos do lulopetismo no poder.

Lula foi o grande propiciador político de uma agenda identitarista. Foi também o galvanizador de uma elite pensante e atuante capaz de dar texto e disseminar para o país todo uma sensibilidade à opressão ocorrente nos detalhes de nossas relações sociais. Nos anos Lula, a parada Gay adquiriu caráter de evento nacional unificado, o abuso contra mulheres viu-se ameaçado por leis como a Maria da Penha e pela legalização das condições de trabalho doméstico, os negros adquiriram a faculdade de gozar dos benefícios públicos sendo menos estrangulados pelas desigualdades com o instituto das cotas, só para dizer algumas conquistas. Não é absurdo que haja gratidão, senso de parceria e mesmo lealdade em relação ao petista.

Contudo, a memória de um 2018 inteiramente hostil parece fazer Lula reorientar a sua biruta eleitoral. A força política que foi capaz de definir aquele ano foi a rejeição à sua presença e à de seu partido, um complexo de hostilidades à corrupção denunciada durante os governos petistas, ao desarranjo econômico produzido nos anos finais de Dilma e à agenda cultural difusamente identificada com os valores e o ativismo das minorias políticas identitárias. A vitória eleitoral dessa força revelou uma série de coisas que Lula certamente já intuía, uma delas é que as agendas identitaristas não têm lastro massivo e que, a rigor, não constituem o centro dos dramas populares nacionais. Não é que o identitarismo constituísse esperanças eleitorais frustradas do ex-presidente. É que o identitarismo representou ali justamente a apoteose do que uma fatia expressiva e poderosa do eleitorado dizia repugnar. E, aos olhos de Lula, essa carga representativa ainda não se dissipou.

A vitória de Bolsonaro enalteceu a figura do evangélico como peso social e eleitoral. Foram os evangélicos os que se viram no discurso da força, da família e da fé entoado pelo capitão – chamado de mito quase apenas por desdenhar das preocupações e dos apelos identitários. Naturalmente, os evangélicos não foram os únicos a eleger Bolosnaro, mas foram a surpresa eleitoral mais assustadora para a esquerda petista. Como puderam ser os petistas tão desatentos no discurso dirigido a eles? A cooptação temporária de grandes pastores com cargos ministeriais nunca seria suficiente para aninhar essa volumosa massa de brasileiros. Em relação aos evangélicos, 2018 revelou que Lula não investiu onde mais deveria, no simbólico.

Vendo a derrota como algo fatal, Lula resolveu fazer as escolhas para o longo prazo. Deixar Bolsonaro vencer e governar e retornar depois nos braços do povo. Primeiro, escolheu Manuela D’ávila de vice – sim, essa foi uma escolha para a derrota, afinal, sempre que Lula levou a eleição a sério, figuras mais conservadoras e representantes de interesses da direita tiveram prioridade ao cargo de vice-chefe da nação, vide José de Alencar e Michel Temer. Segundo, cooptou a esquerda-satélite do PSOL, para conservar o engajamento nas universidades e nos sindicatos, e neutralizar a centro-esquerda pedetista crescente e promissora de Ciro – é evidente que a ida de Ciro a Paris como pretexto para explicar a derrota já anunciada e consumada do PT é parte do plano de macular a figura (imagine se Ciro tivesse optado por subir ao palanque com Haddad: os petistas obviamente teriam usado o fato como causa da derrota, uma derrota em consequência da presença leprosa do cearense.)

Mas, agora, longe de 2018 e da prisão, Lula encara o retorno ao favoritismo. Ele sabe, porém, que não irá consumá-lo se não fizer a escolha eleitoral certa. Entre os atores políticos, isso provavelmente ainda está se desenhando em sua mente calculista e genial; mas, no plano dos grupos sociais, Lula já escolheu o seu alvo. Ele quer os evangélicos. E está disposto a cometer os mais ingênuos preconceitos para tanto.

Sim, eu quero dizer que há bons indicativos para crermos que, ao falar o que falou para Linn da Quebrada e para Mano Brown, Lula não se revela um velho que perdeu o diapasão da política, ele é um gênio do ramo, e suas “gafes” são inexplicitamente intencionais. Defender o Pastor Sargento Isidório, o homem que se diz ex-gay, ante interlocutores que representam aos olhos de Isidório o desvio da conduta desejada por Deus, e insinuar que haveria um preconceito desses para com o pastor não é um mero deslize. Ele não está falando para a comunidade LGBTQI+. Ele está, num programa da comunidade LGBTQI+ – o que confere à sua intervenção uma dignidade cristã ainda maior –, se dirigindo a evangélicos. Da mesma forma, sugerir que há um vitimismo negro, discurso que poderia ter sido emitido por um bolsonarista como Sérgio Camargo, é acenar para a massa negra que frequenta as igrejas neopentecostais; que não milita em grupo algum, mas encontra nos templos a energia necessária para individualmente buscar suas oportunidades de soerguimento. Lula se dirige a evangélicos, sem os quais não haverá de se eleger, e diz: eu sou um dos seus.

E aquelas lideranças identitaristas que foram amparadas e coroadas por Lula em seus mandatos? O que elas farão diante desses sinais? Vão se escandalizar? Vão procurar corrigir a desatualização vocabular do candidato? É incontornável a incompatibilidade entre o discurso da maior parte dos pastores e o da maior parte dos líderes do ativismo identitário. Ao que parece, aqui também há um movimento genial de Lula, embora venha a ser algo trágico para os identitaristas. Na tensão que começa a surgir entre eles, quem mais sofre são os últimos. A razão é simples: para eles, ao menos até aqui, só Lula serve; mas, para Lula, serve qualquer um. Lula não luta primeiramente por uma coisa abstrata como o fim das opressões. Ele luta por algo concreto: o voto. E se move pelo princípio básico de uma estratégia eleitoral: definir o público que mais importa e, se preciso, abandonar outro.

O que seria o voto do álibi moral, o voto no PSOL, também se mostra, ao menos aqui, inviável para o identitarismo. Boulos, o mais forte candidato ao cargo no partido disse que, se Lula estivesse entre os candidatos de 2018, ele não precisaria estar. Não é difícil concluir que o PSOL aceitará atuar como satélite do PT mesmo em 2022, com novos interesses estaduais e congressuais sendo definidos pelos líderes psolistas.

A política é feita dessas coisas. Os identitaristas terão que engolir todas as pseudo-gafes que Lula cometerá, ou terão que procurar alternativas eleitorais se quiserem ao menos um candidato que não seja reincidente em acintes contra seus valores e premissas. Com a derrocada gradual do bolsonarismo, os evangélicos já começaram, ainda que timidamente, a fazer esse movimento de despedida do mito. Oxalá os identitários, ao menos em política, aprendam com os cristãos!

  1. Lendo esta reportagem, deu a entender que, enfim, Lula percebeu o grande erro que ele e o seu partido, o Partido dos Trabalhadores, cometeu, sobretudo no fim de seu governo e no início do governo Dilma Rousseff: o abandono das necessidades essenciais do povo, do pessoal mais pobre e sofrido, dos subúrbios, periferias e zonas rurais das capitais e interiores do Brasil. A turma do PT resolveu, durante este período, cuidar de questões identitárias – como bem ilustra esta matéria, achando que contava com o apoio consolidado do lado social mais baixo, que poderiam fazer qualquer coisa que teriam respaldo. Ledo engano!! Preferiu ocupar tempo e espaço nas universidades e sindicatos com causas feministas, LGBTs, negras, indígenas e outros identitarismos. enquanto isso, a crise começava a aparecer durante a passagem da “presidenta”, como desemprego, falta de saúde, de educação, de infraestrutura e saneamento, aumento da violência e outras mais. A lacuna deixada pelo abandono da esquerda do PT foi ocupada pelas igrejas evangélicas – pentecostais e neopentecostais – que se espalharam como pragas por estes lugares e que acabaram propagando suas ideias e ideologias, ao mesmo tempo mostrando as falhas das políticas do governo dito de esquerda. De carona, veio a turma da direita, da extrema-direita e ali ficou. Quando o PT e seus apoiadores perceberam, era tarde demais. As manifestações de 2013 foram o recado dado. O PT ainda venceu 2014 de forma apertada no segundo turno, mas em 2018 só apareceu um candidato que sintetizou o sentimento do povo abandonado pela esquerda e convertido a direita, atacou o PT, Lula, para que o antipetismo viesse à tona e decidisse a eleição em favor de Jair Bolsonaro. O texto está certo quando fala que o evangélico agora é um peso social e eleitoral forte. Lula, pensando na sua campanha presidencial, está tentando um jeito de consertar este erro fatal, conversando com setores conservadores e ideológicos contrários ao que ele pensa, ainda que ele traia o apoio certo e devoto dos identitários que ele tanto cultiva e menciona. Infelizmente, somente muito tempo depois e quando a extrema-direita bolsonarista tomou o poder, que percebeu onde errou. Desta vez, a culpa – palavra preferida do petismo – não é da mídia, da justiça, da oposição, das estrelas e etc. É do próprio PT.

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